2x01 - Do Balacocabo
de Nilton Silveira
VERDADE SEJA DITA, DEVO ADMITIR: da mesma
maneira que não sei como dar início a esta história, na qual, com eventuais
expressões arcaístas, descreverei (fiel e respeitosamente) apenas uma página da
minha vida, também não me passa pela cabeça como e quando começou o vínculo
afetivo sucedido entre mim e Cesar, um colega de classe do nono ano do Ensino Fundamental, com quem,
certo dia do mês de fevereiro dos idos de 2019, eu topei, e o dito, muito eloquentemente, sugeriu:
“Brother, como meus pais estão fora e
retornarão somente amanhã, que tal tu
dormires lá no meu cafofo... só nós dois? E a gente também pode dar uma jogada
de Playstation 4; tenho games muito
irados, mano!”.
Aceita a proposta, liguei para
minha mãe e a avisei que iria pernoitar na casa de Cesar. Ela o conhecia e,
como de costume, após fazer uma série de recomendações, acabou consentindo.
Mas, voltando à vaca-fria: também cheguei a aventar a possibilidade de começar a narrativa descrevendo as nossas incessantes trocas de olhares; porém, se isso conta, em que momento aconteceu a primeira delas? Igualmente, existiu muita bolinação nos jogos de futebol e em outras atividades esportivas, pegações essas intencionais, claro, mas tudo superficialmente. De modo que, em última análise, prefiro considerar como início, mesmo, a nossa primeira vivência mais íntima.
NAQUELE TEMPO, EU E CESAR ESTÁVAMOS COM CATORZE ANOS. Todavia, embora a idade fosse a mesma (com diferença de apenas cinco dias), nossas características físicas eram bem diversas: ele era másculo, alto e forte, tinha uma voz grave; ao passo que eu era franzino, de estatura média e, embora meus modos fossem bastante rudes, frequentemente era tido como menina, tal a delicadeza dos meus traços fisionômicos. Ademais, uma vez que meu timbre vocal se destacava pela agudeza (ao falar e cantar), fui incentivado a ingressar no coral de uma escola de música, onde comecei a estudar canto lírico e atuar como contratenor, que, trocando em miúdos, nada mais é do que uma espécie de intérprete cuja voz ultrapassa a tessitura de tenor.
Bem, porquanto esses últimos
detalhes não vêm ao caso agora, volto ao ponto em que, já na casa de Cesar,
após banhos e refeições, o Playstation
foi acionado.
Jogávamos animadamente quando,
no meio da disputa, deu pane no joystick que eu manuseava. Foi então que, tendo
um ridículo piti, levantei-me, protestei, dei pontapés no ar, esmurrei a
parede... E,
somente depois de passado o chilique, voltei a me sentar no pufe em que estava
antes. Naquele momento, mostrando-se bastante calmo e atencioso, Cesar se
aproximou de mim e deu uma olhada no dispositivo de controle do videogame. Ele
fuçou daqui, fuçou dali e, sanado o problema, passou a me dar instruções de
como evitar danos no joystick. Ato
contínuo, pediu que eu reassumisse o controle do dispositivo e, a fim de me
instruir na manipulação, sentou-se no mesmo pufe em que eu estava (que era
grande) e me enlaçou por trás. Desse modo, segurando minhas mãos, foi dado
prosseguimento ao jogo. Nada fiz para evitar a quentura de seu corpo. Contudo,
embora ele se mostrasse bastante afetivo, e eu estivesse adorando tudo aquilo,
não me deixei levar a ponto de permitir que transparecesse uma reação minha
compatível com o seu incitamento.
Cesar
falava com a boca encostada em minha orelha, enquanto eu, sentindo o seu hálito
indescritivelmente perfumado, fui às nuvens.
Meu nervosismo era notório.
Nada obstante, Cesar continuava grudado em mim, levando-me a crer que se
empenhava em me fazer senti-lo, não só física, mas também emocionalmente,
porquanto seus movimentos iam além de suas mãos nas minhas. Houve um momento em
que, a pretexto de me orientar ainda melhor, ele se movimentou de tal modo que
eu sentia o fogo de suas fortes pernas aquecendo-me os quadris. Em sequência,
ao realizar uma façanha de mestre (no jogo e na vida), vibrou dando um grito
mesclado a uma prazerosa ofegância. Resultou que uma morna expressão de prazer
ungiu minha roupa, penetrou meus poros e tangeu-me a essência, deixando
gravados, assim, momentos os quais eu jamais esquecerei.
Após o ocorrido, sem tecer
comentário algum, Cesar usou qualquer pretexto e, tentando esconder o sinal do
prazer evidente em sua bermuda, afastou-se. Ao retornar, porém ― enrolado em
uma toalha ―, olhou-me de modo estranho, e eu lhe perguntei: E aí, mano, vamos
continuar jogando, ou você prefere dormir? Sem nada responder, ele apenas
aproximou-se de mim e, acariciando meu rosto, disse: “Sabe, garoto, eu gosto de
você”. Eu apenas sorri e, sem mais delongas, apenas nos deitamos.
Passava da meia-noite, e eu
não conseguia dormir. A luz do quarto estava apagada, mas o clarão da Lua
penetrava os orifícios da persiana e me permitia contemplar o rosto de Cesar,
que, na cama ao lado da minha, dormia serenamente, enquanto eu, entre
deslumbrado e confuso, deixava-me levar por lucubrações e fantasias. Assim
sendo, leitor contumaz e admirador dos deuses da mitologia grega, pensei logo
em evocar Afrodite; todavia, ao lembrar que seu filho era homem, resolvi mudar
de ideia e escolhi entregar-me ao sono sob a égide de Eros, o belo deus do
amor. Então, adormeci e, pela manhã, despertei sentindo a mão de Cesar a
acariciar minhas costas. Deitado de bruços, eu fingi que continuava dormindo.
Entretanto, ele percebeu e brincou:
― Olhe, se você não se
levantar agora, eu não vou resistir e...
Não sei o porquê da minha
reação, mas fiquei assustado e, saltando da cama, corri em direção ao banheiro.
Antes de adentrar, porém, segurei a porta e, sensualizando-me sorridente, fiz
questão de mostrar a Cesar o quanto eu estava excitado. Logo, sem deixar por
menos, ele imitou meu gesto lascivo e correu para me agarrar; contudo, uma vez
que bati a porta da toalete, ele nada conseguiu.
Eu estava realmente receoso,
mas Cesar parecia não levar a sério o meu estado. O medo do inusitado
perseverava e, mesmo me sentindo inebriado com seus argumentos suplicantes, eu
não tive coragem de permitir que algo mais, além da amizade, persistisse entre
nós.
Enquanto isso, ele, rindo,
insistia:
― Ah! Abra esta porta, vai, garoto!... Eu sei que você está morrendo de
vontade!... E se eu lhe prometer que vou com calma, você sai ou me deixa entrar
aí?
Não dei o braço a torcer e, de acordo com o dito popular português, “tudo seguiu como dantes no quartel de Abrantes”.
A CUMPLICIDADE, porém, fortalecia-se cada vez
mais entre mim e Cesar, mas nunca comentamos os fatos ocorridos naquela noite.
Sobre esse assunto, aliás, sequer foi feito qualquer outro tipo de insinuação.
Mas quis o destino, que meus
pais precisassem fazer uma viagem de negócios e, em vista disso, tomando as
devidas precauções, deixaram-me sozinho em nosso apartamento. Eles se
ausentariam por apenas três dias, mas estes foram suficientes para novas
descobertas, minhas e de Cesar, que, tão logo soube, prontificou-se a me fazer
companhia.
Preparamo-nos para as
aventuras do fim de semana. Na primeira e na segunda noites, nada de mais
aconteceu. Já na terceira, o clima foi um tanto quanto tenso. Afinal, éramos
dois quase meninos sozinhos em um apartamento gigantesco, no vigésimo primeiro
andar de um prédio onde eu não conhecia ninguém, pois havíamos acabado de nos
mudar.
À chegada de Cesar, confesso
que fique mais nervoso do que nunca. Ainda assim, custando a ficar à vontade,
levei-o ao meu quarto e apresentei-lhe algumas coisas das quais eu gostava;
entre elas havia um álbum de fotografias, uma coleção de automóveis
miniaturizados e muitos livros. Em sequência, após um lanche feito na cozinha,
fomos para a sala de estar e, acomodados em um dos sofás, acompanhamos partes
de programas de tevê. Por último, assistimos a um longo filme de terror e,
findo este, como passava da meia-noite, eu, o inveterado medroso de sempre,
sugeri dormirmos com todas as luzes acesas. Já havíamos tomado banho ―
separadamente, claro ―, e supus que Cesar evitaria a higiene bucal. Mas me
enganei: ele não só escovou os dentes, como fez uma verdadeira e alegre
demonstração de como se deve utilizar o fio-dental. Quando chegou minha vez,
ele, novamente, veio por trás de mim e, olhando-me, sedutoramente, através do
espelho, perguntou: “Precisa de ajuda?”. Estremeci mais uma vez e, inventando
que não gostava de escovar os dentes na presença de outra pessoa, pedi que
saísse. Fui cortês; mesmo assim, notei-o um pouco chateado.
Quando retornei ao quarto,
vestindo um pijama vermelho, o meu favorito, Cesar já estava deitado em uma das
camas. Com os olhos fechados, sorridente, de barriga para cima e com as mãos
cruzadas atrás da cabeça, ele usava os fones de ouvido do seu smartphone. Ao perceber minha presença,
ele me olhou de rabo de olho e nada disse. Pensei que o havia magoado mesmo.
Logo, no intuito de fazê-lo voltar às boas, pensei em beijar-lhe o rosto e
deixar que, de uma vez por todas, a entrega total se consumasse. Contudo, ainda
que repentinamente eu tivesse mudado de ideia e estivesse pronto a entregar-me
por inteiro, consegui me conter. E, ainda pensando nas cenas assustadoras do
filme ao qual acabáramos de assistir, disse: “Brother, eu quero me deitar, mas, como ainda estou
tremendo de medo, vou deixar todas as luzes acesas, tá ligado? ”.
Não tendo me escutado, Cesar
retirou os fones e pediu que eu repetisse o que havia dito. Após me ouvir,
então, ele fixou seu olhar no meu e, irradiando uma encantadora delicadeza,
sentenciou:
― Nada disso! Vamos dormir com
as luzes bem apagadas! De hoje em diante, eu serei seu anjo da guarda. E, para
que você se sinta protegido e nada tema, vai dormir aqui, junto a mim.
Após me deixar fascinado mais uma vez, Cesar, que até então se mantivera coberto até a altura do peito, levantou, suavemente, o edredom e, convidativo, presenteou-me com sua estonteante nudez. Naquele momento ― e para sempre ―, a nossa eterna aliança era tudo o que eu mais desejava.
FORAM QUASE VINTE ANOS de um envolvimento
amoroso secreto. De minha parte, fui incondicionalmente fiel, sempre. Em
contrapartida, Cesar, por imposições sociais e de família, tinha lá seus casos
amorosos com mulheres. E não foram poucos.
No entanto, como tudo na vida
passa, na primavera pertencente aos idos do ano de 2027, nós dois estávamos na
França. Eu, cantando em ensaios e apresentações no Olympia, a mais antiga sala
de espetáculos de Paris; ao passo que Cesar aproveitava conhecendo pontos
turísticos... e francesas.
Não tardou e, vendo-me obrigado a cancelar
minhas restantes apresentações, voltei ao Brasil sozinho... e arrasado.
Neste ponto, prefiro ser breve, pois não me agrada relembrar tamanha tristeza. Vou dizer apenas que, depois dos trâmites burocráticos necessários, uma semana depois o corpo de Cesar foi trasladado para o Brasil e sepultado sem a decifração do grande enigma. Afinal, qual foi o motivo de seu assassinado em pleno Bois de Boulogne?
NA ATUALIDADE, estou com sessenta e nove anos.
E, acreditem ou não, depois da morte do grande amor da minha vida, nunca mais
me relacionei de maneira conjugal com ninguém. Nesse tempo, sequer cogitei a
possibilidade de arranjar um novo affair.
Contudo, surpreendentemente, acaba de se mudar para o apartamento contíguo ao
meu um elegante cavalheiro. Ele é um pouco mais jovem do que eu (ou menos
velho), e está provocando em mim sentimentos há muito adormecidos. Inclusive,
hoje, no corredor do prédio, sabendo que sou seu vizinho, ele veio até mim e se
apresentou:
― Olá! Muito prazer, meu nome
é Cesar. Sou o novo morador do apartamento cento e dois...
Fiquei bastante abalado com a
coincidência do nome, mas procurei manter a calma. Assim, eu disse que me
chamava Valfredo e, ousadamente, logo deixei sair a proposta: Então, meu novo amigo Cesar, que tal nos
conhecermos melhor, tomando um chá na sacada do meu apartamento? Lá, poderemos
contemplar o pôr do sol, que está prestes a acontecer!
Ele aceitou. Eu vibrei. Só que, como já bastava meu desplante de segundos antes (admito), procurei me conter, claro; mas, (juro) que quase saltitei, de tanta empolgação.
TRANSCORRE O ANO DE 2074. Do meu bel canto,
lamentavelmente, além das afecções nas minhas cordas... ou, conforme as regras,
pregas vocais ― que até os dias de hoje me impedem de cantar ―, restaram apenas
as gravações e gratas lembranças, como a da reportagem de um importante jornal
europeu, na qual eu fui apontado como o novo Farinelli. Não quero me exibir,
mas sempre vale lembrar que Farinelli é o pseudônimo do italiano Carlo Maria
Michelangelo Nicola Broschi ― Il Castrato
(1705-1782), o mais notável cantor de ópera em sua época.
Falar sobre isso me emociona,
pois, a despeito do meu permanente protesto, a inexorabilidade do tempo segue a
deixar marcas profundas em mim, e não há como esquecer as inúmeras experiências
e aventuras vividas. Muitas delas, aliás, foram escolhas minhas das quais não
me arrependo, pois, agradáveis ou não, proporcionaram significativos frutos de
aprendizado e...
Ah, chega de ficar nesse chove
não molha! E como também não pretendo continuar aqui choramingando, deixarei
esse assunto reservado para a narrativa de uma nova página da minha vida,
porque agora preciso dar uma saída. Vou fazer comprinhas básicas: sapato de
plataforma, metros de lamê dourado, bastante maquiagem, dúzias de plumas e
quilos de paetês. Ah! Não posso esquecer meus preferidos: os arrasantes
cristais swarovski, pois almejo
deslumbrar a plateia no desfile do concurso “Musa Drag Queen da Melhor Idade”! Além do mais, estou precisando
espairecer as ideias... Tenho passado as noites em claro, só pensando em Cesar.
O vivo, naturalmente. Mas, juro, nunca me esqueço de desejar que o falecido
esteja em paz e me proteja!
Ai, esse novo Cesar é tão lindo!... Será que, se eu o convidar, ele aceita ir como meu escort a esse forrobodó? Oh, my God! Isso seria do balacobado!
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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