AdLib
de Carol Peace
A
noite estava úmida em Manaus; a chuva do dia tinha molhado tudo o que pudera
tocar e a friagem da noite fazia questão de manter as gotículas no ar. Respirei
o ar levemente mais frio trazido pela brisa do rio. Hoje era a noite perfeita. Continuei andando até chegar à entrada
do porto e observei as pessoas indo de lá para cá. Tão ocupadas em suas vidas
elas estavam! Encostei-me à parede colorida do Boothline enquanto passavam por mim. Nenhuma delas parava para falar comigo até que
uma delas pousou os olhos em mim. Eu sorri, como sempre fazia quando me
notavam. Esperei a pessoa se aproximar de mim. Não precisava me antecipar, as
coisas sempre aconteciam conforme o destino ditava. A pessoa finalmente
aproximou-se de mim e recostou-se na parede ao meu lado.
— Tem fogo?
Era uma pergunta simples,
ideal para começar uma conversa que não levaria a lugar nenhum. Ofereci um
breve sorriso e tirei o isqueiro do bolso, acendendo o cigarro da pessoa.
— Vai viajar para o interior? – Perguntei.
— Não, estou chegando. –
Foi a resposta.
Continuamos parados ali por
algum tempo, a pessoa insistia em encostar-se em mim a cada oportunidade que
encontrava; pequenos toques despretensiosos aqui e ali. Olhei brevemente meu
relógio e vi que já passava da meia noite. Logo o último barco iria partir
antes do recesso da madrugada. A pessoa continuava parada ao meu lado, como se
esperasse por alguém que nunca iria chegar.
— Você já tem um lugar para
ficar? – Indaguei
sem olhar a pessoa nos olhos.
— Não.
— Melhor procurar um
pardieiro. Depois da meia noite fica mais difícil...
— Não tenho dinheiro e nem
lugar onde ficar.
— Entendi. –
Respondi. – Moro
aqui perto. Amanhã, ou melhor, hoje mais tarde, você pode procurar outro lugar
para ficar.
A pessoa concordou com um
balançar de cabeça e me seguiu até minha casa. Tratava-se de um prédio antigo
nas intermediações do porto, com dois pavimentos e uma escada lateral interna,
com janelas para rua. Do segundo andar era possível avistar o Rio Negro, uma
vista bem bonita nos momentos
certos do dia. Entramos em minha casa e a pessoa colocou a mochila rapidamente
no chão. Em poucos segundos começou a despir-se e eu a impedi com um gesto.
— Não faça isso. –
Disse com meu tom mais compreensivo.
— Então, como posso pagar?
— Apenas durma. Pode descansar
no segundo andar, tem uma cama lá em cima. É um único cômodo espaçoso e
confortável só não tem portas, como quase todas as casas dessa idade.
— E você?
— Prefiro meu próprio quarto. – Repliquei.
A pessoa não questionou mais
nada, então deixei que ela subisse as escadas. Desci-as e me arrumei em minha própria cama, um
espaço grande, com algumas cobertas e um ventilador. Desliguei as luzes e
fiquei deitado esperando o sono chegar. Antes que pudesse cair nos braços dos
sonhos, senti alguém chegando perto de mim em minha cama. Por certo era a
companhia da noite; deixei que viesse até mim e continuei parado.
— Você não tem medo?
Era uma pergunta muito
estranha para me fazerem durante a noite. Poucas pessoas me conheciam de fato e
todas as pessoas que chegaram perto demais sabiam
que medo não era um sentimento comum para mim. Fiquei em silêncio esperando
a pessoa falar mais alguma coisa; continuava fumando, deixando meu quarto impregnado
com o odor de nicotina.
— É a primeira vez que me
deixam entrar sem que eu precise oferecer alguma coisa antes.
Enquanto a pessoa continuava
falando, pensei nas palavras. Eram quase vampíricas em sua essência, afinal era
eu que geralmente oferecia ajuda às pessoas. Muitas vezes a ajuda era
prontamente recusada, mas não nesse caso em específico. Eu sempre tinha uma
carta na manga; dedilhei meu travesseiro pegando uma de minhas facas no
processo. Não seria a primeira vez que eu a usaria e também não seria a última.
Não havia qualquer remorso nisso.
— Não se preocupe. Não vou quebrar seu coração no escuro.
Sorri para mim mesmo ao ouvir
essa frase. Era terrível e excitante, como um jogo proibido. Essa pessoa tinha
coragem, eu devia admitir. Essa noite estava ficando cada vez melhor. Senti as
mãos tocarem meu peito com uma calma que eu só tinha visto em mim; o equilíbrio
do contato era invejável. Eu não tremi, eu não recuei. A escuridão era meu lar,
meu aconchego e meu porto seguro.
— Cada coração que eu toquei fugiu para muito longe de mim. Não vou
roubar seu fôlego, seus pulmões estão muito longe de meus dedos tão, tão
gelados.
Assim que senti algo frio
tocar a pele de meu peito, fechei meus olhos momentaneamente para acender a luz
e revelar que ambos estávamos com armas em punho. Cada qual com sua lâmina e a
pessoa estava muito surpresa por alguns breves segundos.
— Talvez meus planos para você
não fossem esses. –
Expus, com sinceridade.
— Você... Eu devia ter imaginado que ninguém podia ser tão gentil a ponto de deixar qualquer um
entrar assim na própria casa!
— Você fala como se minha
gentileza fosse grave falta. –
Levantei e tomei a faca da mão da pessoa.
A pessoa me olhou diretamente
nos olhos, como se esperasse por um ataque. Não eram os olhos de uma presa,
muito pelo contrário, eram olhos de um tigre prestes a desferir o primeiro
golpe. Sentei-me na frente da pessoa, esperando as próximas reações de minha
companhia.
— O que você vai fazer agora?
— Acredito que a pergunta deva
ser, o que nós vamos fazer a partir de
agora. — Lancei a oferta sem esperar uma resposta positiva.
A pessoa mostrou-me, uma vez
mais, a expressão taurina, dessa vez com uma curva positiva nos lábios,
demonstrando a alegria de ter encontrado outra pessoa que compreendia suas
vontades e seus desejos mais profundos.
— Precisamos de um novo alvo, não é mesmo?
Eu
curvei minha cabeça em regozijo e ela recostou-se em minha
cama e convidou-me para o leito. De fato, era um momento único e esplêndido. Por tanto tempo
eu tinha vivido a desilusão, isolado em um mundo em que a violência era
encarada como ardilosa e terrível... Um mundo que jamais tinha sido meu, em
momento algum tinha sentido tanto acolhimento.
Quando despertei do melhor
sono que tive em muitos anos vi que minha companhia continuava ao meu lado.
Dormia silenciosamente com a tranquilidade que só se via em pequenos animais
que repousavam com suas mães no ninho. Passei minha mão sobre os cabelos e
depois subi para minha cozinha. Preparei o café-da-manhã para dois, como nunca
tinha feito antes. Duas tapiocas com tucumã e um café bem forte, com uma pequena jarra de leite à
disposição. Eu era mais afeito ao café puro, mas não sabia se meu afim tinha
sabores diferentes dos meus. Agora tudo
era possível!
— Nossa, esse deve ser o
melhor café-da-manhã que já vi!
— É meu deleite poder servir
bem.
O sorriso sincero foi por mim
retribuído. Era algo novo, uma situação insólita que jamais passaria por meus
pensamentos. Tomamos o café e seguimos o dia como se fosse nossa rotina desde
tempos que mal nos lembrávamos. Às dezoito horas arrumei-me para sair, minha
companhia não deixou-me só, seguindo meus passos por alguns metros até que nos
separamos. Cada qual ao seu estilo de caça, eu sabia que o resultado da noite
seria positivo. Observei à distância percebendo que as habilidades de atração
de minha parceria eram muito singulares. Logo, um homem estava acompanhando os
passos enquanto me mantinha à distância segura. Quando chegaram até nossa casa, esperei por alguns minutos
antes de entrar.
— Ah, meu amor, para de fazer
doce. Anda logo. –
O homem tinha uma voz grossa e seca. Era uma visão abominável sobre minha singular
preciosidade.
Estalei os dedos das mãos e
logo depois o derrubei laçando-o pelo pescoço com meu antebraço. Ele se debateu
um pouco, mas fechei a passagem de ar com habilidade unicamente adquirida pela
experiência. Assim que o oxigênio findou-se em seus pulmões, ele desmaiou sobre
minhas pernas. Olhei para minha companhia e sorri levemente, esperando para
saber quais eram seus desejos.
— O que você faz quando pega
esses tipos? –
Perguntou bastante curiosa.
— Depende muito das circunstâncias. Mas, hoje esse é meu presente
para você. –
Esclareci.
Houve genuína alegria naqueles
olhos negros que aprendi a apreciar. Com um sorriso, estalou a faca e começou a
cantarolar enquanto rasgava a roupa do homem:
— Onde está seu coração? Onde está meu coração?
Era a mais bela de todas as
sinfonias. Ajustei minha pegada no pescoço do homem quando ele se mexeu um
pouco, eu deixei minha perdição fazer com ele o que melhor desejasse. Continuou
a cortar a carne de nossa vítima, com astúcia e uma perfeição que eu julgava
impossíveis em um ser humano. Cortou o peito e revelou a carne, pintando parede
de nossa cozinha com o mais puro carmesim. Senti a doce alegria resvalar em
mim, como a iluminação presente na epifania dos antigos poetas.
— Acho que me falta força. – Minha inspiração comentou.
— Ajudar-te-ei com todo
prazer, minha vida. – Larguei o corpo
moribundo no chão e peguei meus instrumentos na cozinha.
Retornei e abri o tórax do
exânime com alguma facilidade, afinal a prática leva à experiência! Assim que
terminei, minha escuridão tomou o coração quente em suas mãos. A alegria
contagiou-me e gargalhei ao ver que minha companhia mordeu o coração e sorriu com
leveza para mim. Era, de fato, a perfeição encarnada. Cada uma de suas
pinceladas violentas sobre a carcaça eram a expressão de nosso infinito amor.
— Eu acho que já estou te amando para sempre. — Continuava a
cantarolar. — Cada verso que recito tem toda minha paixão por cada coração que
espero devorar.
Tomei-lhe uma das mãos e a
beijei. Minha companhia sorriu para mim e deu-me um abraço em seguida. Procurou
os lábios meus e os beijou com intensidade, oferecendo-me toda sua alma, com
pleno regalo. Eu retribui o gesto, sabendo que tinha, finalmente, encontrado
uma casa nesse mundo.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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