O Crime de Leonora
de Paulo Luís Ferreira
“Quem
sabe um dia;
Quem sabe um seremos;
Quem sabe um viveremos;
Quem sabe um morreremos!”
(Mário Quintana)
O
remorso é o maior delator de um crime. Nesse instante sinto a morte invadindo
meus sentidos, e esse sentir me aterroriza. Faz dias que eu não me alimento e
não durmo. O remorso dói como uma ferida aberta
a sangrar pelos móveis, pelo teclado do computador, de onde escrevo
agora. Pelas pernas, encharcando as meias de sangue. Eu fico olhando as paredes
que eram brancas, vendo imagens
que correm de lado a outro;
com as partes separando-se em tronco, pernas e braços, como se fossem pétalas
mortas. Quando deparo com manchas de escarlate seiva desenhando a cara
dela. Caminhando de cabeça para baixo pelo teto. A boca
aberta. A língua, ora serpenteando, ora estirada, tesa,
apontando para mim, acusando-me. Falando
coisas terríveis dentro
do meu ouvido. Eu mando que cale a boca, mas ela não cala. Estou com a
boca seca, o peito mole, doendo. Difícil é engolir a noite sem luz, mastigá-la e sentir seu gosto amargo.
Ouvir a campainha tocando sem parar. A angústia fazendo
do desespero uma faca
silenciosa
cortando as fatias do medo e saber que serei a próxima vítima de mim mesmo.
*****
A
ideia persiste, tenho que escrever sobre Leonora. Tantas vezes tenho pensado durante este último ano tão penoso e
vazio para mim. Preciso ocupar o espaço físico de Leonora, dando-me um sentido maior. É necessário que se
faça um outro ser dentro de mim. O rumor de suas palavras, durante a
noite, já não é o suficiente para consolar
meu espírito que sofre tantos sobressaltos.
Sim,
muito eu teria a dizer sobre o modo de ser de Leonora. Embora tenda a acreditar
ser muito difícil falar sobre Ela. Sua forma frágil e imperatriz de ser, seus devaneios e sua mansidão, o
pacato e o agressivo do olhar. Creio, pois,
desnecessário salientar a dificuldade que tenho de formular conceitos, sejam eles quais forem sobre Leonora.
Há nas minhas
lembranças estranhos hiatos.
Fixaram-se, ao mesmo tempo,
coisas insignificantes e extraordinárias. Depois vem um esquecimento quase que total. E
essas recordações aparecem-me sempre
emaranhadas e esmaecidas. Nada se organiza em minha memória.
Daí o motivo de nada poder escrever sobre Leonora. Então...
Pego seu retrato
e olho-o com zelo, e observo que meia metade, um quarto daquilo que houvera sido já está retraçalhado pela traça. Essa descoberta me confunde,
me assusta. Foi sob esse
profundo horror
que repus o retrato onde estava. E percebo que não tenho mínima capacidade de escrever
sobre Leonora.
É quando um remordimento e a dor tomam conta de minhas entranhas, logo choro convulsivamente a
melancólica lembrança Dela. Então imploro
aos deuses que devolvam minha Leonora. Mas eles nada me dizem como resposta. Eu
sei desta impossibilidade, então volto a cair em um pranto ainda maior e durmo
numa inconsolável tristeza. E quando acordo estou mais triste ainda e decido
que escreverei de Leonora o que Shakespeare escreveu de Desdêmona; Cervantes divagou sobre a Dulcinéia del Toboso para
o seu Quixote e Rosa cantou de Diadorim e Riobaldo. Porque, realmente sou desprovido de talento para
escrever sobre Leonora.
Mal faço anotações sobre sonhos exóticos, encontros impossíveis
como os que tive às horas mortas de uma tenebrosa noite sem lua. Em que sobrevoava o Monte Everest,
içando Leonora e sua carruagem
de fogo, rebocada por 16 cavalos e suas 48
ferraduras de prata, salvando-a do
degelo movediço da montanha. Por isso tomarei outro rumo. Tentarei descrevê-la naquilo em que fui cúmplice, como se um diário fosse.
Para quem não entende de nenhum estilo literário, forma
melhor não há.
No entanto, não fosse minha parca sabedoria faria de Leonora
uma heroína. Assim como Salomé, uma Sherazade, uma Olga, uma Anita Garibalde; ou quem sabe,
uma lenda budista, uma deusa grega ou um ente
folclórico. E por que não uma Ana
Karenina? Só por que foi suicida? Mas
de nada adianta meus esforços, porque
só tenho reminiscências...
Aliás, Leonora não foi à estação àquela tarde para me matar.
Ela apenas foi avisar que tudo já estava pronto,
que eu poderia voltar. Mas a cena que ela assistiu foi fatal para o desenlace do ardil montado. Sua investida contra mim já
estava planejado, o meu revide é que foi excessivo, fora do roteiro, uma
fatalidade.
Agora
estava eu ali, sentado no mesmo banco, na mesma estação, esperando o mesmo
trem. Sendo alvo de olhares de desdém e perguntas indiscretas entre os
passantes. Cada um tentando imaginar meu drama... Estaria eu com fome,
desempregado, doente... Por quem sofro, por quem choro?... Não, não venham me
perguntar. Porque não direi que é por Leonora que choro.
— Está
vendo ali?
—
Estou. Mas, será que está chorando mesmo ou é impressão minha?
— Está
chorando, sim.
—
Coitado!
Leonora
tinha uma discreta personalidade, da qual cultivava um gênero não muito
difundido de elegância, de uma intimidade invisível, cheia de pudores; se
recusava a qualquer forma de ostentação. No seu conceito, uma forma inconteste
de soberba. Sempre fora uma voraz crítica ao modismo, as tolas invenções, aos
falsos raciocínios, as hipocrisias e todos os delitos humanos. Guiava-se
Leonora apenas pelo sentido poético. Embora tivesse sido de uma poética
violenta, às vezes. Pois que, ainda está muito vivo em minha mente, e é
apavorante a lembrança Dela me enterrando todo o corpo na areia salgada da
praia e sair para fazer compras na feira de artesanato local.
Quando ela voltava do passeio e via minha cabeça vermelha
como um açafrão suado e, imbuída dos poderes da Deusa Astarteia, cuja divindade empresta
suas energias através das pedras seixos
dos rios, e delas, Leonora
fazia uso para decifrar
previsões modulando o calor das pedras em meu rosto quase espectral, estes eram, inclusive, alguns dos arcaicos
ritos da prostituição sagrada,
que era muito comum na Babilônia de Nabucodonosor e que Leonora
usava em nossas
orgias sexuais. E isto, Ela fez logo que desenterrou meu corpo da cova de sal, onde eu, moribundo, quase morto, jazia moído e cozido;
quando aproveitava para quebrar o resto dos meus ossos. Então predizia,
sussurrando ao meu ouvido, em tom metafísico e transcendental que a morte da geometria estava próxima
e que o mundo já tinha data
certa para seu fim.
E vale lembrar que Leonora era extremamente
fissurada por quiromancia e cartomancia. Era Leonora a emissária de Lilith,
a Deusa do oculto e da magia negra. Seria Leonora, a mulher primordial, aquela
que veio para me atar a seus princípios primitivos, eu me perguntava.
Embora todas as suas adivinhações fossem fundamentadas
nas imagens fulguradas dos mitos fenícios, e não nos meros símbolos dos anjos
das cartas e das linhas das mãos. Assim sendo, Leonora via em mim um ótimo
instrumento para experimentar suas previsões e prognósticos místicos.
Leonora era uma flor nascida entre os nós de um arame farpado.
Esses são apenas alguns
poucos fragmentos da personalidade de Leonora. Eu não tenho o menor ressentimento em acusá-la
de anjo ou demônio. Porque Nela, era fácil se perceber distintamente duas formas de caráter. Leonora tinha a nítida intenção de demonstrar que, se hoje era uma, amanhã seria outra. Se
pela manhã era opaca, à tarde brilhava. E isso me fascinava ao mesmo tempo em que me aterrorizava. E tal demonstração era convincente. Uma taça de
vinho em suas mãos tanto
poderia ser uma bela cena Vê-la sentir o buquê do vinho pelas bordas da taça, como terrível era assisti-la comprimindo-a até espatifá-la, deixando-a em cacos dilacerantes
numa mistura infernal de vinho, vidro e sangue, contraindo o rosto em angústia
para em seguida seus olhos se iluminarem demonstrando alegria infantil.
Vale ressaltar que nosso estar junto era ilusório e enganador. Não éramos nada um para o outro.
Apenas cúmplice de uma existência angustiada e cheia de anseios. Leonora era lúbrica, libidinosa, verdugo, fada e
musa. E apesar de tantos e tantos predicados, das virtudes e dos vícios,
eu nunca soube o
que escrever de Leonora. Apenas
engasgo em seu nome: Leonora,
Leonora, Leonora...
*****
O relógio marca meia-noite. Nesse instante escuto o ding-dong
tocar com mais insistência. Arrasto-me penosamente até a porta. Universos foram criados e destruídos;
Eras pereceram em lapsos de tempo. Ando, ando e não saio do lugar. Era como se o corredor se alongasse, postergando o que viria a
seguir. Num esforço de pesadelos, abro a porta. Luz não há, a noite é de profunda
negritude. mas na porta, uma figura espectral de olhos incandescentes a dar luz
à escuridão da noite sem lua. Que em tom gutural diz:
— Vim trazer sua Leonora para mais uma noite.
— Quem é o senhor?...
— Quem
sou eu?... Deverias saber. Eu sou Belzebu o Príncipe das Moscas!
Ei-la, os lábios vermelhos se contraindo contra os dentes
perfeitamente brancos. A pele alva como um alfenim sob um capuz preto. Dos
olhos negros grandes e sérios brotam faíscas que mais parecem brasas.
Estranhamente, estão mais vivos do que nunca; não me olham, invadem minha alma.
Os cabelos, da mesma cor dos olhos, lhe caem até a metade das
costas, lisos. O vestido é o mesmo com que eu a enterrei. Eis meu cadafalso.
Já não sei se estou acordado, vivo ou morto. O pensamento
pesado de transgressões e remorsos que, como um navio cargueiro,
se misturam em minha mente. O peito aos pedaços. Dilacerado. Meu coração é forte, meus ressentimentos é que me doem!
Sua rouca e tenebrosa voz uiva dentro dos meus tímpanos:
— Se em vida fui para ti um tormento,
morrendo eu serei tua
morte. – disse Ela numa voz gutural.
— Não chegue perto de mim. – eu grito.
Mas ela se aproxima e eu já sinto suas mãos. E a esganadura no meu pescoço. Quando por fim ela cortou minhas forças e embrulhou-me em seu manto.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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