O Importante é ser Feliz
de Edih Longo
Dei a volta no quintal para
pular pela janela do meu quarto. Mamãe me esperava com uma vara de marmelo.
Tentei pular novamente a janela de volta ao quintal e meu irmão mais velho
entrou por ela. Ele tinha me visto
com Gabriel, meu primeiro namorado. Apanhei tanto que quando acordei, estava
estirado na cama com marcas por todo o corpo. O lençol todo ensanguentado. Ao
pé da cama, uma velha mala me olhava ironicamente:
—Para onde vamos, amigo?
Levantei-me aos tropeços. O corpo inteiro era uma dor só,
mas o que mais me doía era o coração. Dizem que músculo não dói, pois o meu
parecia uma ferida aberta e sangrando. Se meu pai fosse vivo, será que me
entenderia?
—Não amigo. E agora, que importância tem isso?
Nunca entendi direito o que se passava comigo. Desde
pequeno sempre gostei de coisas femininas. Esperava minha mãe dormir para
colocar os vestidos das freguesas. Ficava horas desfilando diante do espelho
grande do quarto de costura. Na Escola gostava de fazer ginástica, mas não
gostava de jogos com atritos corpóreos. Tinha medo.
Adorava assistir aos musicais do Cinema americano. Nas
Olimpíadas, gostava de assistir aos ginastas. Adorava assistir na TV os balés
clássicos. Quando ganhei um cachorro no Natal e dei-lhe o nome de Misha que é o
apelido de Mikhail Baryshnikov, ganhei também uma surra. Minha mãe é machista
ao extremo e me fez trocar o nome do cachorro.
Como ela não entende nada de balé, mudei para Fred
Astaire e ela adorou só por causa dos filmes. Dá para entender? Aí cheguei à conclusão
de que ela não é machista é uma baita ignorante. Quando conheci o Gabriel, fiz
a inscrição na Escola de Balé da cidade. Para mamãe essas horas que eu passava
lá eram pesquisas que fazia na Biblioteca do Colégio. Meu Deus, que ela nunca
descubra que gastei toda a minha mesada nisso.
—Para onde vamos, colega?
—Cale a boca. Como posso pensar se você não cala essa
boca maldita?
Lembrei-me de que o Sr. Alencastro era caminhoneiro e
vivia fazendo viagens para o sul do país. Não poderia pedir isso a ele, pois
fatalmente se negaria a me levar para qualquer cidade. Logo, fiz o que achei
que devia: enfiei-me no meio das mercadorias que já estavam acomodadas na
carroçaria. Chegamos à primeira cidade e com medo de ser descoberto, fiquei
quieto.
Na segunda, não aguentei e tive que descer para ir ao
banheiro. Quando voltei o caminhão não estava mais no local. Chorei
desesperado. Não sabia onde estava. Era madrugada e chovia. Fiquei horas
embaixo de uma árvore esperando clarear.
Abri a velha mala e me emocionei ao ver um maço de
dinheiro e o endereço de uma tia em São Paulo. Mamãe não me abandonara
totalmente. Mostrara-se dura para dar um exemplo. Não é fácil criar cinco
filhos sozinha. O pequeno bilhete feito com letras analfabetas, dizia: “Seja
feliz!”
~§~
Minha tia me acolheu de forma tão amorosa que cheguei a
me sentir mal. Expliquei-lhe imediatamente o que tinha acontecido e ela,
afetuosa e sincera:
—Somos feitos para sermos felizes. Sua mãe me avisou e eu
a censurei. Não entendemos todos os mistérios que a vida nos mostra. Temos que
aprender a desvendá-los aos poucos. Vou adorar ter você comigo. Já arrumei o
seu quarto. Vá tomar um bom banho e descansar, depois pensaremos um futuro.
Aquela mulher que eu mal conhecia, pois tinha saído de nossa
cidade à cata de uma identidade própria, adotara-me e eu a ela. Tia Carmen era
uma espécie de ovelha negra de uma família de doze filhos. Era irmã mais nova
de minha mãe que sempre a criticava por ter deixado tudo quando os pais de ambas
morreram.
Ela veio, formou-se em engenharia química e trabalha numa
Empresa conceituada. Com apenas trinta e cinco anos é uma profissional
respeitada. Arrumou vaga no Colégio, um emprego de Office boy na própria Empresa em que trabalha e me disse:
—Agora escolha as armas certas. Pise suas próprias
pedras. Levante o peito e enfrente a vida que é diária. Nunca deixe ninguém ser
dono de você. Acima de tudo, respeite as leis sociais; respeite seus
semelhantes e seja feliz.
Tirou da bolsa um papel onde entre lágrimas li minha
inscrição em um curso de Balé Clássico.
—Seja o melhor no que escolher fazer. Um dia, espero ser
ressarcida não em dinheiro, mas em orgulho.
Nunca briguei tanto por um lugar ao sol como agora. Deus
já escolhera minha rota, agora cabia a mim a melhor forma de a seguir. Ensaiava
mesmo depois que todos os alunos iam embora, pois me ofereci para limpar o
salão da escola depois das aulas. Ficava naquele espaço mágico sozinho,
dançando e inventando passos.
Numa apresentação livre proporcionada pela escola, fui
aplaudido de pé e minha Diretora colocou o quadro que eu tinha inventado no
programa de final do ano. Um empresário presente me convidou para trabalhar em
um canal de televisão como professor corporal para os atores. Era o meu primeiro
grande emprego.
Estava ganhando muito bem e agora podia ousar comprar meu
cantinho. Comprei um apartamento com dois quartos. Quando entreguei as chaves e
a escritura provisória para tia Carmem, ela não acreditou:
—Mas, em meu nome?
—É seu. Quando terminar de pagar, terá a escritura
definitiva. O meu, pretendo comprar no exterior. Claro que sempre terá um
quartinho pra você arrumadinho. Estou pensando em no máximo dois anos, ir pra
Europa. Vou meter as caras, tia. Começo lá do calcanhar, vou subindo pelas
pernas, tronco, até chegar à cabeça da Europa, que acha?
—Já o vejo lá, filho.
Minha tia nunca me perguntou com quem ando, se estou
namorando, com quem estou namorando. Apenas sorri e me pergunta: está feliz?
Inscrevi-me em uma Escola de Balé Russa. Fui fazer os
testes e claro, não passei. Não me decepcionei, pelo contrário, aquilo me deu
ímpeto para continuar tentando uma vaga. Conheci o amor da minha vida. Aquele
com quem eu queria passar a vida toda e apenas ser feliz. Marcos Moriel, um
espanhol também apaixonado pela dança.
Formamos uma dupla afinadíssima, criávamos nossa própria
coreografia e nos apresentávamos em festas de casamento, aniversário,
formatura. Onde houvesse um espaço, a gente estava lá. Mirna Oliveira, uma
portuguesa muito talentosa juntou-se a nós. Com o tempo ficamos conhecidos no
meio e aconteceu o óbvio.
Numa de minhas inscrições para a Escola, nem precisei
passar por todos os testes, fomos os três aceitos e estávamos integrados, finalmente,
a um grupo sólido. Mas, eu queria mais. Comecei a enviar matérias promocionais do
grupo e qual não foi a minha surpresa quando um dia, um empresário americano me
procurou:
—Gostariam de uma nova experiência? Estou procurando
bailarinos clássicos para um musical da Broadway.
Claro, podemos conseguir isso em Nova Iorque mesmo, mas queremos
experimentar gente nova.
Éramos quinze no grupo e todos aceitaram. Ficamos dois
anos em cartaz. Enquanto a peça acontecia, fazíamos cursos no Ballet of New York, onde surgiu uma
oportunidade para nos apresentarmos também. Foi um período de muito trabalho.
No meu aniversário de trinta anos, recebi a presença luminosa de minha tia
Carmem. No final de uma apresentação, vi aquela figura meiga chorando na
primeira fila.
—Obrigada, filho, eis o ressarcimento ao qual eu me
referi um dia. Você é mágico. Voa como os pensamentos bons e os pássaros livres.
Um dia, o empresário chegou exultante dizendo que
recebemos uma proposta para excursionar pela América do Sul. Suei frio.
Confesso que nunca pensei que voltaria ao meu país.
Começaríamos pelo Brasil. Imaginei-me como muitas vezes
fiz, inclinando-me para os aplausos, e lá, nas cadeiras da frente a minha mãe e
meus irmãos com os olhos cheios de lágrimas acenariam para mim com orgulho. Fingia
que as pessoas que se sentavam na primeira fila sempre eram eles e chorava por
dentro. Passei as mãos pelas costas e senti as dores antigas voltarem.
Respirei fundo, balancei os cabelos jogando para longe as
más recordações e aceitei o desafio. As apresentações em São Paulo foram
magníficas. Como sempre, a minha querida tia estava lá na primeira fila.
Fizemos mais vinte e cinco apresentações pelo país depois fomos para o Chile,
Argentina e Venezuela.
Em todos os países, eu continuava procurando a minha mãe
e meus irmãos na primeira fila. Aliás, mesmo na Europa eu os procurava. Comprei
o meu sonhado apartamento e mandei as passagens para Tia Carmem. Eu a queria
perto de mim. Ela estava ficando velha e muito solitária. Ela chegou em uma
manhã de outono. Linda, com um expressivo sorriso. Abraçou Marcos e apenas perguntou:
—São felizes?
Havíamos feito mais de vinte apresentações por vários
países da Europa. Eu já estava fazendo Direção Artística quando substitui Mr.
Benson, mas continuava atuando. Precisávamos encerrar a temporada em Nova
Iorque e criamos um espetáculo completamente moderno. A coreografia estava
divina e fora feita pela Mirna Oliveira.
O Marcos estava hospitalizado e eu muito preocupado com o
seu estado de saúde, mas precisava ser forte. Sempre precisei ser forte. O
espetáculo foi fantástico. Dancei por mim e por Marcos. Graças a Deus, ele saiu
do Hospital antes da estreia. Em sua homenagem, os figurinos eram todo nas
cores da conhecida bandeira similar ao arco-íris.
O som dos aplausos do público em pé pareceu-me a mistura
de todas aquelas cores, fez-me sentir um rei com os seus vassalos aos meus pés
saudando. Então, assumi minha identidade sexual definitivamente, e fiquei de
bem comigo.
Quando me reclinei para os agradecimentos, minha vista se
anuviou, senti uma dor tão grande no peito que pensei que fosse sufocar. Lá na
primeira fila, estavam a tia Carmem, minha mãe e todos os meus irmãos acenando
para mim. Passei uma borracha no passado, reorganizei as linhas do presente e
apenas os abracei chorando e imaginando um mar azul e calmo de futuro. Quando
apresentei o Marcos para minha mãe, ela disse:
—São felizes?
Apenas a olhei e quando vi o brilho intenso naqueles
olhos, finalmente, senti que aquele orgulho era o meu valor de importância para
ser feliz.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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