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Feriadão WebTV: O Discurso

Conto de Íris Bisof
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Sinopse: Leonardo é um homem que esconde um segredo, ele sempre foi um fantoche nas mãos do partido, durante sua jornada na vida política brasileira, mas agora Guilherme está na jogada.



O Discurso
de Íris Bisof 

 

— Não pode fazer isso!

Mesmo com o tom de voz manso, eu sabia que a minha assessora Helena fervia de raiva por dentro.

De certa forma, ela estava certa. Eu tinha noção de que poderia ser o meu fim político e o dele também, mas estava cansado demais para manter as aparências.

Tentei soar compreensivo com ela, afinal, minha assessora apenas estava fazendo seu trabalho.

— Helena, não posso fazer mais isso, não posso apoiar uma mudança drástica no entendimento da lei brasileira, ainda mais se eu faço parte secretamente deste grupo.

Ela me olhou com raiva, jogou a papelada na minha mesa e saiu batendo a porta.

Levei as minhas mãos às têmporas, minha cabeça doía, olhei para os papéis à minha frente. Era o meu discurso conservador e com teor levemente religioso.

Minha vida política inteira, eu fui eleito por partidos conservadores, sou um prolongamento da vida política do meu pai, também político conservador. Lembro de passar grande parte da minha adolescência discursando nas juventudes conservadoras contra direitos LGBTQIA+, enquanto encontrava meus namorados e namoradas após os eventos.

Respirei fundo. Precisava ter muita coragem para me expor e poder viver livremente. Lembro do momento exato em que Guilherme entrou na minha vida, um deputado de esquerda e gay. Muitos diriam que ele era meu inimigo político dentro da câmara. Mas na verdade, apesar de nossos embates ferrenhos, nos tornamos amigos e, após alguns meses, namorados.

Eu o amo, acho que ele fica lindo enquanto faz discursos emocionados contra a minha coligação para manter direitos da população Queer, preta e indígena.

Mas na vida política manter as aparências é crucial para se viver, foi o que disse meu pai ao saber da minha sexualidade. Foi o que eu fiz, mas a fantasia de homem hétero estava apertada demais. A psicoterapia e os medicamentos não estavam mais ajudando na minha saúde mental.

Helena bateu na porta do meu gabinete. Estava na hora do meu discurso.

Caminhei tranquilamente, eu sabia que a cada passo, estava deixando a minha vida antiga para trás.

Adentrei no recinto, os repórteres e jornalistas estavam alvoroçados. Era sexta-feira, último dia para mostrar o apoio à emenda Constitucional que resumia que casais LGBT não seriam considerados como “união civil”, o que envolveria uma série de retirada de direitos, desde seguros até a adoção de filhos.

Os outros deputados aguardavam ansiosos o meu discurso. Como eu fui escolhido para ser representante da bancada conservadora, meu apoio ou não seria crucial para a emenda.

Segui direto para o palanque, regulei a altura do microfone. Olhei para todos da câmara. Busquei em meio a multidão um rosto. Guilherme estava nas últimas fileiras, perto da porta de saída, seu rosto parecia cansado e sem esperanças. Ele me olhou tristemente e abaixou a cabeça, eu podia sentir o medo de ser gay e ser julgado por intolerantes como quem eu representava e apoiava.

Bebi um copo de água. Respirei fundo. Estava no meu momento de mostrar ao mundo a minha verdadeira face.

— Sou o deputado Leonardo, represento a coligação “Conservadores para salvar o Brasil”, entendo o quanto esta emenda é importante para todos que aqui estão hoje, de um lado, temos uma minoria de pessoas que não querem perder seus direitos e do outro um grupo majoritário que nunca teve seus direitos ameaçados.

Percebi certa confusão nos olhares dos deputados e jornalistas. Tomei mais um gole de água. Sentia meus batimentos acelerando.

— Eu cresci na juventude conservadora, apoiado pelo meu pai, que já foi deputado por muitos anos nesta nobre Câmara, por muitas vezes discursei apaixonado para outros jovens parecidos comigo, falava palavras como “homossexualismo”, “distúrbios mentais” e “viado” mas eu sempre tive um segredo.

Olhei em direção a Guilherme, ele olhava fixamente para mim, seus pés balançavam sem parar, podia sentir sua inquietação.

— O segredo é que minha vida é uma mentira, no fim das contas, eu sou o viado, bissexual e que para muitos sou doente mental…

Os deputados da minha bancada começaram a me vaiar sem parar. Pude sentir as lágrimas vindo aos meus olhos, por anos a fio, eu fui seu mais ferrenho representante.

Sentia os flashes das câmeras ininterruptos e os jornalistas escrevendo compulsivamente.

Cerrei os meus punhos. Não era o momento de chorar ou lamentar o meu passado, não me interessava quais cursos minha carreira política iria tomar. Tomei fôlego para agir com autoridade.

— Agora chega, ninguém aqui pode apontar um dedo para mim, eu apenas escondi quem eu sou, mas eu nunca fui corrupto como muitos. Minha vida inteira, eu fantasiei como poderia ser se eu tivesse contado, assim como muitos, eu sonho em construir uma família.

Sentia os fantasmas do meu passado vagando pela minha mente: medo de ser descoberto, medo de nunca me assumir e medo de nunca viver o que sempre sonhei.

— Assim como muitas pessoas Queer lutam pelas suas famílias, eu também irei lutar pelo direito a um dia ter a minha ao lado do meu verdadeiro amor.

Bebi mais um gole de água, os deputados estavam cochichando entre si, os jornalistas pareciam corujas com seus olhos arregalados em minha direção e eu sentia o suor escorrendo pelas minhas costas. Mas eu prossegui.

— Conheci pessoas maravilhosas enquanto vivi a minha vida clandestina, inúmeros com família estruturada e que amavam e nunca abandonaram igual a que muitos nesta câmara já fizeram, eu lembro de ver o amor mais puro e verdadeiro num casal de lésbicas com seus filhos…

Respirei fundo, minhas mãos estavam trêmulas, podia sentir a camisa social suada embaixo do paletó, decidi assumir de vez o meu apoio. Reuni as minhas forças e declarei.

— Pela coligação e por termos combinados os votos, eu declino o apoio da bancada conservadora e mantemos os direitos da população LGBTQIA+ para constituir suas famílias se assim quiserem.

Pude ver o ódio estampado nas faces dos conservadores e o espanto nas faces dos progressistas.

Os sons dos gritos e dos aplausos se misturavam numa sinfonia de contrários, fechei os meus olhos e me senti leve. Não era mais um peso para mim a minha sexualidade e sim uma benção. Mas havia uma última coisa a fazer. Tomei o microfone mais uma vez.

— Eu declaro o meu apoio à causa LGBTQIA+ e também ao meu namorado o deputado Guilherme.

Saí do palanque, minhas pernas estavam trêmulas.

Podia sentir todos os olhares em minha direção, alguns de apoio e outros de repulsa. Mas o único olhar que eu precisava era dele.

Segui em sua direção com passos firmes e decididos.

Ele ficou em pé e me esperou. Fico me perguntando o quanto ele teve que me esperar até podermos viver lado a lado sob o sol.

Quando ficamos frente a frente, repousei minhas mãos em seus ombros, ele colocou as suas na minha face.

Nos beijamos ao som de aplausos de jornalistas e progressistas e aos uivos de conservadores.

No final das contas, a emenda foi derrubada e os direitos LGBTQIA+ mantidos. Fui expulso do meu partido, mas me encontrei no mesmo do Guilherme.

Não foi fácil perder a imagem de conservador e além de perder a maioria dos meus apoiadores políticos, mas isso não me importava, porque enfim me encontrei com o amor da minha vida e posso viver feliz e de cabeça erguida a minha verdade.


Conto escrito por
Íris Bisof

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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