Presente de Última Hora
de Adnelson Campos
Ele não deveria estar
no trabalho naquela véspera de Natal. Não se perdoava por ter aceitado prorrogar
por alguns meses o trabalho como Delegado de Polícia. Graças a sua equipe, a
pequena cidade no Vale do Itajaí, uma das mais alemãs do Brasil e que guardava
muita da tradição de seus colonizadores, vivia dias de calmaria. As piores
ocorrências eram as brigas de bar causadas pelo excesso de bebida. Porém, desde
o dia anterior, trabalhava em um novo caso.
Depois da morte de
Helga, eram só ele o filho Jurg, que sempre fez a opção por não ter filhos. Nem
mesmo um relacionamento estável cultivava. Tudo mudou com o retorno da bela e
doce Gisela, a garota que convenceu Jurg a se tornar pai. Enfim seu velho sonho
se realizara, mas, neste momento, ele não podia estar onde gostaria.
O vento forte e a chuva
intensa lá fora acentuavam a angústia de Werner por não encontrar pistas sobre
o que ocorrera. Zimmermann, seu homem de confiança, tentava encontrar alguém da
criminalística para fazer alguns exames no material. Estava difícil. Naquele
horário, com raras exceções, quem não estivesse num local protegido e aprazível,
com a família, estava bêbado tentando espantar a solidão.
Zimmermann por sinal,
deveria estar se preparando para a entrega dos presentes. Muitas crianças
esperavam pelo Weihnachtsmann. Ele mantinha a barba branca bem cuidada o ano todo para
quando a temporada de festas chegasse.
Apesar de trabalharem por muito tempo juntos e
frequentarem a mesma mesa de bar, Werner achava Carl Zimmermann um tanto
misterioso. Era seu principal investigador, desvendava os crimes como se ele mesmo
os houvesse planejado. Quem sabe ele possuisse uma mente criminosa,
esperando um momento de perda do autocontrole para atuar. Lindt achou seu
pensamento bobo.
Werner voltou-se mais uma vez para a caixa à sua frente. Não
lembrava quantas vezes já examinara o conteúdo. Procurou por alguma pista por
horas. Cansado, lembrou dos dias que antecederam o evento. Passara a semana toda planejando e organizando,
os mínimos detalhes da feira de troca de presentes. Todo ano havia gente
descontente com os presentes recebidos e nos útlimos anos um grupo de
voluntários, amigos do Stammtisch de Werner e Zimmermann resolveram
organizar a feira. Uma espécie de escambo, que contava com a participação de
uma boa parcela dos habitantes do lugar.
Tudo ia bem até que um
estranho pacote chegou, antecipadamente.
O embrulho era perfeito, como se o
embalador fosse um profissional. O que causava estranheza era a estampa
do papel: caveiras em preto e branco. Pensou que talvez alguém estivesse
fazendo uma brincadeira trocando o Natal pelo Hallowem.
Um dos voluntários do
grupo sugeriu que alguma pessoa tivesse recebido o presente com antecedência e
desistido dele. Porém, quando Werner avaliou com mais cuidado, havia uma
etiqueta: Para: Werner Lindt - De: Geist. Quem seria o tal Fantasma? – questionou-se
Werner.
Apanhou as fichas já
analisadas. Ali estavam as informações de alguns dos casos mais importantes e
que ocorreram na mesma época, em anos anteriores. Talvez algum maluco tenha
ressurgido do passado para lhe atormentar a vida – pensou. Procurou por algum
que tenha usado algum pseudônimo. Encontrou um sujeito de apelido Schatten,
Werner o havia prendido pessoalmente. Fantasma, Sombra, talvez houvesse alguma
coisa em comum. Procurou nos registros atuais, Schatten havia saído da prisão
há um ano. Dificilmente seria ele, pois não esperaria muito tempo para tentar
algo contra Werner, se quisesse.
Parou para um café, olhou
pela janela e, a média distância, percebeu que a vitrine da loja de brinquedos
de Herbert Spielzeugmacher, pai de sua nora
Gisela, ainda estava iluminada. Werner encontrara dificuldade em escolher um
presente para o neto, já que o outro avô dispunha de belas opções para
presentear, se assim o quisesse. Spielzeugmacher sempre foi contra o relacionamento
entre os dois jovens, Werner ainda não tinha certeza de como trataria o neto.
Herbert Spielzeugmacher foi colega de escola de
Werner Lindt e um dos seus melhores amigos. Tudo mudou no dia em que Helga
aceitou o pedido de namoro de Werner. Herbert era apaixonado por Helga e viu
tudo como uma traição. A partir daí rivalizaram não só na vida pessoal como nas
questões políticas e sociais.
– O velho Spielzeugmacher ainda está com a loja
iluminada, não perde a oportunidade em ganhar dinheiro! – Comentou Werner.
– Como sempre há os compradores de última hora,
há sempre um presente esquecido! – Complementou Zimmermann.
– Puxa! Foi bom você ter comentado, esqueci o
presente do meu afilhado. Não tenho escolha, terei que ir até a loja daquele
sujeito insuportável! Mas antes temos que encontrar um caminho para a
investigação.
– Talvez tenhamos que pensar no mais simples.
Quem sabe o importante não seja procurar vestígios de DNA ou impressões
digitais.
– Por que diabos alguém enviaria uma frase
ameaçadora num simples cartão e tão bem embalado? Por que a caixa estava
endereçada para mim? E estas letras colocadas aleatoriamente no verso do
cartão?
– Veja, acho que estamos ficando fora de forma.
Talvez não sejam tão aleatórias assim. Quem sabe não precisemos de uma Enigma
para decifrar o código. São dez letras, um simples sistema decimal. Não há
nenhuma delas que vá além do J no alfabeto. Só resta verificar se o remetente
usou o A como 0 ou como 1. São oito dígitos, quem sabe um número de telefone!
Assim, se estivermos certos, só nos restaria saber de quem são as iniciais A. S.
Formados os números, Werner ligou para ambos.
Apenas sinal de ocupado. Repetiu o processo por várias vezes. Como o tempo
estava passando, decidiu ir até a loja comprar o presente para o afilhado. O
sino da igreja marcava dezenove horas.
A loja ainda estava movimentada. Enquanto
aguardava para ser atendido, Werner tentava tirar da memória a frase escrita no
cartão: “As sombras do passado sempre nos perseguem. Jamais deveríamos nos
apossar do que não nos pertence. É pena que um inocente tenha que pagar pelo
ato de um antepassado. O pobre A. S. não poderá aproveitar um novo Natal.”
Sombras do passado: será que o Schatten tinha
algo a ver com o caso? – questionava-se.
Chegou a vez de Lindt. Sentiu-se aliviado e
surpreso por não encontrar Herbert. Pagou pelo brinquedo e foi retirá-lo.
Quando a balconista foi fazer o pacote, se deu conta de que as fitas haviam
acabado. Abaixou-se e abriu a porta do balcão atrás dela. Na prateleira, um
rolo de papel idêntico ao do pacote em que recebera a mensagem, as mesmas
estampas com caveiras. Coincidência – Pensou.
Na saída, olhou para o belo Presépio na vitrine.
Olhou para o Menino Jesus e se lembrou do neto, Arthur. Enfim a família Lindt estava
crescendo.
De repente, um arrepio lhe correu o corpo.
Arthur Spielzeugmacher, A. S. Eram as iniciais de seu neto usando o sobrenome
de Herbert. Werner lembrou-se do dia em que Herbert esbravejou dizendo que seu
neto não teria o sobrenome Lindt e que se a filha insistisse na gestação a
obrigaria a ignorar o sobrenome da família Lindt.
Werner abriu o sobretudo, pegou a anotação num
dos bolsos do casaco e o celular do outro. Discou novamente para o primeiro
número da lista. Depois do primeiro toque, ouviu uma gravação de voz distorcida:
“Ufa! Pensei que não tivesse inteligência suficiente para decifrar um código
tão simples. Meu velho e bom inimigo Werner, como estamos vivendo este momento
lindo que é o Natal, vou lhe dar uma chance de recuperar A. S. Vá até o
Schlossmüller e pergunte por Geist ao guarda do portão principal.
– Venha comigo, levaremos ao menos quarenta
minutos para chegar ao palacete com toda essa chuva e o barro da estrada. –
disse Werner Lindt a Zimmermann, enquanto explicava o que acontecia.
– Espere, Werner. Se está preocupado com o seu
neto, por que não procura saber onde eles estão agora?
– Devem estar em minha casa. Eu deveria passar
esta noite com eles.
– Então ligue para lá. Você pode estar tirando
conclusões precipitadas!
Werner tentou. O número fixo não atendia e o
celular do filho estava fora de área. O Fantasma não estava brincando pensou.
Precisa tomar uma decisão, ou passava em casa ou ia até o palacete. Num
primeiro momento pensou que deveriam dividir-se, depois chegou à conclusão de
que precisaria de Zimmermann. Werner sempre se mantinha calmo, mas agora o
emocional o prejudicava. O amigo continuaria sendo o mesmo sujeito frio e
inteligente de sempre.
Zimmermann dirigia, enquanto Werner tentava
insistentemente contato com o filho. Enfiou a mão no bolso para apanhar o
cartão com os números enviados pelo Fantasma. Junto com o cartão, acabou
tirando uma cópia do cupom fiscal. No verso do papel, em letras maiores, estava
o endereço do site da loja de brinquedos e, abaixo, o número do telefone de
atendimento. Não acreditou que fosse possível: o número do telefone principal
da loja era o mesmo que o segundo número anotado no cartão.
Lindt ligou e ouviu o som de uma outra gravação:
“Feliz Natal! Estamos fechados até o próximo dia 27 de dezembro. As Lojas
Spielzeugmacher e o Senhor Herbert Spielzeugmacher agradecem a sua
preferência!”.
– Você acha que Spielzeugmacher seria capaz de
fazer mal ao próprio neto? – perguntou-lhe Zimmermann.
– Nós que estamos nesta profissão sabemos do
que uma mente doentia e capaz de fazer, meu caro. Outra possibilidade é a de
que Spielzeugmacher também possa ser uma das vítimas. Schatten foi preso
justamente quando tentava arrombar o cofre da loja de Hebert Spielzeugmacher.
– Então precisamos investigar as duas
possibilidades. Maldita chuva, mal consigo manter o carro na rua. Vamos perder
mais tempo do que imaginávamos.
Correram até o portão principal do palacete e
apertaram insistentemente o botão do interfone. Werner mostrou o distintivo
para a câmera e imediatamente o vigia abriu a porta de vidro.
– Procuro por Geist!
– O Senhor deve ser Werner Lindt.
– Então, você viu o tal Geist, é capaz de
reconhecê-lo? Tem alguma informação sobre ele?
Não faço a menor ideia de quem seja Geist, mas
na passagem de serviço meu colega disse ter recebido este pacote endereçado ao
senhor. Pensamos em chamar a polícia, mas nosso supervisor disse que o senhor
era a própria Polícia e que se o senhor mesmo viria procurar pelo pacote.
– Por favor, me dê logo este pacote.
Quando Lindt o abriu, encontrou um lenço branco
bem dobrado e manchado de vermelho. Quando o desdobrou totalmente, encontrou
escrito, com o que parecia ser sangue, um par de coordenadas geográficas.
Digitou-as num aplicativo de localização e encontrou a Igreja de Santa Maria,
no lado oposto da cidade.
Cheiraram o tecido, porém o perfume infantil
não permitia identificar o odor do líquido usado na escrita. Perguntaram-se se
o homem poderia ter usado o sangue da própria criança para escrever. Werner
imaginou o que faria com o criminoso quando o encontrasse, se isso fosse
verdade.
Percorreram um bom trecho até que Zimmermann
quebrou o silêncio:
– Talvez o tal Geist só esteja se divertindo às
nossas custas, nos fazendo rodar pela cidade.
– Até que eu tenha notícias de meu filho e
neto, não posso correr riscos. Precisamos encarar isso com seriedade.
O telefone de Werner tocou, era o sargento
Möecke. Estava em frente à casa de Werner e não havia luz alguma acesa. Ninguém
atendia a campainha.
– Möecke, por favor, não saia daí. Havendo
algum sinal de movimento na casa, por favor me ligue.
Quando chegaram a Igreja, apenas uma porta
lateral estava destrancada. Na antecâmara havia um aviso: A.S. passou por aqui,
agora goza do sono dos anjos. Ore por ele usando Mt 1.22-23.
Zimmermann apanhou a Bíblia depositada sobre a
mesa e abriu rapidamente no ponto anotado. Um bilhete sinalizava a página
procurada. Nele, formado por letras recortadas de revistas, um código postal.
Mais uma vez Werner recorreu ao aplicativo no
telefone: era o endereço de Spielzeugmacher. Já Zimmermann achava tudo óbvio:
– Se Spielzeugmacher fosse Geist, por que
passaria o próprio endereço? Se cometeu um crime, por que se entregaria ao
próprio Delegado de Polícia?
– Talvez ele não queira fugir. Acabaria com a
vida de meu filho, do meu neto e depois com a própria vida. – comentou Lindt.
– Eu continuo achando que o sujeito que manda
as mensagens apenas está tentando ganhar tempo, nos fazendo dar voltas pela
cidade.
– Quem sabe preparando sua fuga. Juro que vou
pegá-lo!
As mãos de Werner suavam e estavam trêmulas.
– Tente se acalmar, Werner. Quem sabe o tal
Fantasma queira é lhe matar do coração!
– Acho que ele vai conseguir. Só preciso acabar
com ele antes!
No meio do caminho, Zimmerman perdeu o controle
do carro, que deslizou para fora da estrada. Precisaram buscar por socorro,
pois naquele trecho se formava uma sombra e não havia sinal de telefonia
celular. Perderam muito tempo. Impaciente, Werner praticamente obrigou o homem
do posto de gasolina a entregar-lhe o carro.
A mansão de Spielzeugmacher estava com quase
todas as luzes acesas e ainda mais iluminada pelas lâmpadas natalinas. No
jardim, num pequeno edifício todo envidraçado, um replica da cidade, feita em miniaturas,
muitas em movimento ao som de músicas natalinas. A sensação de paz contrastava
com o que estava acontecendo.
Quando se aproximaram do portão principal, as
grades se abriram. Já na porta da casa, Lindt e Zimmermann sacaram as armas.
Antes que batessem, Jurg surgiu de pijamas e logo atrás dele Gisela.
– Onde está Arthur? – perguntou Werner.
– Feliz Natal para o Senhor também Papai!
– Por favor... onde está Arthur?
– Calma Senhor Werner! – pediu Gisela. O Senhor
parece que está enfartando!
– Quase – emendou Zimmermann, afastando Jurg
com o braço.
– Onde está Herbert, eu acabo com este maldito!
– Ei, calma, os dois estão lá em cima, subiram
faz umas duas horas – respondeu Jurg.
Enquanto Werner corria escada acima, o relógio
da sala badalava três vezes, já na madrugada do Natal. Werner abria
desesperadamente cada uma das portas. Zimmermann de arma em punho o seguia. Logo
atrás vinham Gisela e Jurg desesperados sem saber o que acontecia.
A última porta parecia trancada ou emperrada.
Werner chutou-a.
Chocou-se com a cena. No berço, a criança
inerte. Ao lado, na poltrona, Herbert parecia desacordado, de mãos dadas com o menino
por entre as grades do berço. Um livro de histórias infantis estava caído aos
pés do inimigo.
Werner ainda apontava a arma para a cabeça de
Herbert quando Gisela gritou horrorizada.
Herbert espreguiçou-se, apanhou os óculos no
móvel de cabeceira e colocou o dedo em riste em frente aos lábios pedindo
silêncio.
Zimmermann levou a mão à testa e
disfarçadamente sorriu, achando graça da própria insensatez.
Spielzeugmacher, vestindo um pijama estampado no
peito com um grande Papai Noel, se aproximou de Werner, afastou a arma com a
mão, tocou no ombro dele e disse:
– Feliz Natal! Espero que tenha se divertido. Pena
que tenha demorado tanto! O pequeno Arthur passou a sua primeira Noite de Natal
ao lado do seu avô preferido! Eu não costumo fazer maldades, melhor, brincadeiras
nessa época do ano, mas acredito que eu tenha crédito.
Herbert estendeu a mão para Werner:
– Estamos quites?
– Espero que saiba que o que fez é crime! –
disse Werner abaixando a arma e com as pernas trêmulas.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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