Uma Nota no "Fantástico"
de Luiz F. Haiml
Fliperamas, com seus pinballs, só apareceriam na
minha cidade quando eu já fosse adulto. Não era então por nada que, nos meus
anos de adolescente, eu ansiasse muito pelas férias de verão. Era quando íamos
para Tramandaí. Lá, na movimentada rua central, tinha o Fat’s Fiipper. O maior,
e melhor, fliperama do litoral gaúcho. E, no Fat, tinha a Tommy. A Tommy é uma máquina de pinball.
Falo dela no presente, pois em
algum lugar ela ainda existe. Se você não sabe, as máquinas de pinball cobrem-se de imagens
dedicadas a determinados temas. A Tommy homenageia a ópera rock do The Who – uma
das minhas bandas favoritas. Por seu gabinete, e backbox, se espalham cenas
do filme baseado na ópera que é sobre um sujeito cego, surdo e mudo que se
tornará o Pinball Wizard, o Mago do Pimball. Lá em Tramandai, no Fat’s,
eu era o Pinball Wizard.
Meu nome é Gilberto. No
veraneio de 1979, chegamos à mais badalada cidade praiana do RS, minha mãe,
minha irmã e eu, nos inícios de uma tarde de sábado. Era uma semana antes do Natal.
Meu pai trabalhava, e só poderia vir na véspera do nascimento de Jesus. Almoçáramos na estrada, por isso não perdemos
tempo em ir matar a saudade do mar. Deixamos a praia quando do sol só restavam
manchas por detrás das altas e brancas dunas. Eu troquei de roupa, fiz um bom
lanche e rumei para o Fat’s. Estava louco para jogar na Tommy. Mas...
Nunca o vira por lá. Bem mais
velho que os habituais frequentadores do lugar, ele tinha um rosto comprido,
barba por fazer, poucos cabelos, vestia jeans com uma camisa que achei bacana –
era tipo aquelas de estilo indiano que o George Harrison usava – e jogava pinball. Jogava na Tommy. O display
dela disparava marcando altas pontuações. Impaciente, fiquei ao lado, até
que, finalmente, ele me deu a vez.
Posicionei-me nos botões
laterais e notando que o estranho ficara por perto me preparei para jogar como
nunca antes, querendo, no íntimo, me exibir, e, ao mesmo tempo, temeroso em
falhar. Mas, começando o jogo, esqueci de vez a presença dele.
Quando eu e a Tommy entrávamos
em comunhão, tudo o mais desaparecia, resultado da minha simbiose com os botões
controladores das palhetas, do meu alerta geral para sons e luzes que me
guiavam para longe dos alvos errados me trazendo assim muitas e muitas fichas,
bolas extras, créditos e uma retumbante vitória através da superação do score
anterior. Quando terminei, ele ainda estava ali, e, como todos em torno,
sorria impressionado.
– Guri, tu é bom mesmo!
O elogio despertou em mim uma
simpatia pelo cara.
Luís e Márcia, com quem já há
alguns anos eu formava um trio inseparável, estavam vindo de carona para
Tramandaí, e eu combinara de me encontrar com eles no Fat’s. Como ainda não
haviam chegado, convidei o desconhecido a uma partida de futebol de mesa.
Perdi.
Disse então que iria ver se
meus amigos já não me esperavam lá fora.
Ele me acompanhou.
Peguei o Carlton, fisguei um,
acendi. Ofereci o maço.
Agradeceu, não fumava.
Ficamos trocando fiapos de
conversa até que de repente ele apontou em direção ao céu.
– Está vendo aquela luz forte?
Olhei para onde o braço dele
se estendia, para o alto, para o oeste, a noite já descera sobre uma Tramandaí
sem a metade dos edifícios que tem hoje.
– Sim.
– Parece uma estrela, né?
– É.
– Mas não é. Às vezes ela tá
ali, outras não. Às vezes fica só pairando, outras se vai assim que ponho os
olhos nela. É uma nave. Veja como se move.
Para mim ela não se movia. Era
só uma grande estrela, brilhando, estremecendo sua luz como qualquer outra
estrela. Nuvens, nevoeiros, o movimento da Terra é que dão a impressão de que
elas se movem.
Luís e Márcia chegaram,
surgindo subitamente da diversificada massa humana que se concentrava no
centrão de Tramandaí em tempos de férias, mais ainda em época de Natal e Ano
Novo. Apresentei-os.
– Prazer, Clóvis.
Até então eu não sabia o seu
nome.
Meus amigos – ligados em
discos-voadores, até estavam montando um grupo sobre o assunto – logo se
interessaram pelo tal ponto luminoso. Começou uma conversa acalorada entre eles
sobre coisas que misteriosamente aparecem e desaparecem no céu.
Clóvis gesticulava muito e de
forma engraçada, com caretas que lembravam o Jack Nicholson. Luís, gordinho, e Márcia, magrela, ambos com
camisetas de rock, me faziam pensar numa versão moderna, e bem mais jovem, de
Laurel & Hardy. Do meu pequeno bando, que às vezes se juntava a outros bandos, nos dias em que
passávamos na praia, só faltava o Oscar.
Ele “trampava” de office boy, e viria
de carona com meu pai.
Clóvis acabou nos convencendo
a ir com ele a um determinado lugar. Daria provas do que afirmava.
Deixamos o centro, nos
afastando dele cada vez mais por ruas que desconhecíamos e que escasseavam cada
vez mais de movimento, parando apenas diante de uma grande escola com nome de
santo. Clóvis abriu o portão principal e atravessamos por uma cancha de
esportes até um prédio com uma única porta, de ferro, após a qual se estendia
um longo corredor. Por que meios o nosso novo conhecido tinha pleno acesso a
tal lugar, e, àquela hora? Seria o vigia noturno? Quem sabe o diretor? Certos
professores também ficam com as chaves. Era o caso do pai da Márcia, que fora
um dos fundadores de uma escola, e agora praticamente morava nela.
Eu e meus amigos seguíamos Clóvis
sem nada dizer, nada indagávamos, só vez que outra nos entreolhávamos,
empolgados com o mistério. Clóvis então sacou do bolso uma pequena lanterna,
acendeu-a, mirou o facho em direção a uma porta fechada no fim do corredor. A
sala em que entramos era ampla e cheia de painéis com luzes e botões de
diversas cores. Lembrou-me o interior do submarino de uma série que minha irmã não
perdia.
Clóvis foi em direção a um
quadro negro de largura e altura quase da parede em que estava encostado.
– Ajudem-me. – pediu.
Deitamos o quadro ao chão.
Debruçado sobre ele, começou a
escrever números e sinais, alguns conhecidos e outros, que a nós, não faziam
sentido algum.
– Isso eles estão passando
nesse momento pra mim, os caras que estão naquela luz.
“Minha nossa” pensei.
Nas férias anteriores
topáramos com o doido dos chás de cogumelo; o cara tinha várias teorias malucas
sobre a Alice – a do País das Maravilhas.
Fui para o corredor, e ali,
iluminado apenas pela Lua, que se refletia no vidro de uma basculante, acendi
um cigarro.
Luís e Márcia continuavam lá
dentro, embasbacados com o que viam e ouviam. Eu não curtia discos-voadores.
Curtia psicopatas, pelo menos em filmes.
De repente a conversa parou.
Ouvi barulhos. Encostavam o quadro de volta à parede. Deixaram o aposento. Clóvis
apagou a luz, chaveou a sala. Pegamos o caminho de volta. Ainda no corredor,
ofereci o Carlton ao Luís.
– Quer um “pega”, Morceguinho?
Luís às vezes fumava. Tragava
engraçado, fazendo bico. Por isso o apelido.
Márcia falou que estava com
fome. Sugeri um restaurante que servia um à
la minuta bom e barato. Eu adorava à
la minuta e o restaurante ficava perto da ponte entre o Imbé e Tramandaí.
A ponte de duas mãos inicia
logo ao término da rua central de Tramandaí e entra direto no coração do Imbé.
Pescadores de todos os tipos dependuram-se em pencas pelas repartições laterais
feitas para pedestres.
Quem pesca do lado direito, tem
diante de si a magnifica amplidão aquática que resulta do rio Tramandaí vinda
do continente e que logo adiante se encontra com um salgado braço marítimo
sobre o qual houve uma vez um pontilhão de madeira para travessia e pesca. Quem
joga os anzóis do outro lado, os lança no rio Tramandaí, que une um cordão de
lagoas formadas por águas vindas dos morros ao norte.
Do restaurante, eu via o
parque de diversões, iluminado e em movimento, e fixado desde sempre à beira da
lagoa, no Imbé. E via a Roda Gigante, na qual, apenas com minha esposa, muitos
anos e anos depois, um dia eu teria coragem de andar.
Clóvis bebericava uma cerveja.
Luís e Márcia dividiam um bife, umas alfaces, uma porção de arroz com feijão e
um ovo frito, poupando assim a grana para o resto do fim de semana. Enquanto
eu, faminto, devorava meu prato, lufadas do forte e gostoso vento noturno,
comum na região da ponte, atiçavam-me a vontade de pescar. Outro de meus
prazeres na praia. Jamais comi sardinha em lata. E havia muita sardinha nas
águas entre o Imbé e Tramandaí, assim como tainha, peixe-rei, corvina,
papa-terra, siri e camarão.
Clóvis terminou a cerveja e
anunciou que nos deixaria, precisava ir.
– Foi um prazer conhecê-los. E
fiquem certos, nos encontraremos novamente.
Mas não o veríamos mais, pelo
menos não pessoalmente.
No ano seguinte, no Fantástico
dos domingos à noite, a singular voz do Cid Moreira daria esta nota:
Mistério no litoral do Rio
Grande do Sul. Mal iniciavam às três horas de uma fria madrugada de abril,
época de Quaresma, um grande círculo incandescente irrompeu no meio da ponte
Giuseppe Garibaldi, que liga as cidades de Imbé e Tramandaí. A ponte está
situada sobre um canal de águas fluviais que se juntam às do oceano atlântico. Conforme
as testemunhas, alguns pescadores nativos, a luz, em suas bordas, se
movimentava como se fossem chamas e a estranha roda ora tocava o piso da ponte
ora flutuava sobre ele sem emitir som algum. Ainda segundo relato dos
pescadores – que assustados correram e ocultaram-se pela periferia – um homem,
até agora não identificado, teria surgido do nada e ido em direção à esfera
luminosa, momento em que algo metálico brilhou de dentro da mesma. O homem então
teria desaparecido na luz, que logo em seguida apagou-se deixando a ponte de novo vazia.
Uma precária animação foi
exibida. Uma foto borrada do esquisito fenômeno, tirada por um morador insone,
e o relato dos poucos pescadores era só o que o programa tinha para referenciar
o noticiado.
Ainda hoje tiro férias em Tramandaí,
vou com os filhos – que não pescam nem gostam de fliperama. Sempre que passo em
frente onde foi o Fat’s, olho na direção em que o Clóvis apontou. Nunca mais
tal estrela apareceu por lá.
No entanto, alguns anos
depois, Luís e Márcia, já então se
tornando referências na Ufologia gaúcha, decidiram reabrir o singular episódio
da misteriosa luz sobre a ponte. Acabaram por descobrir que, pela mesma época,
e em Tramandaí, dera-se uma ocorrência, jamais resolvida, de pessoa
desaparecida. O sumido, um professor de Matemática. Seu nome... Clóvis. Clóvis Jacobus
Bauer.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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