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Antologia Nosso Amor: 2x02 - Um Amor no meio da Miséria

Conto de Vicente de Melo
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Sinopse: Depois da entrega ao calor do desejo e da paixão, as personagens, no silêncio da satisfação, refrescam seus corpos e suas lembranças ao sentirem a chuva.


2x02 - Um Amor no meio da Miséria
de Vicente de Melo
  
  

            Negro, pobre e aleijado, Francisco se tornou um homem extremamente amedrontado, arredio e retraído.  Isso vem desde criança, quando nunca conseguira brincar com as outras crianças. Sempre rejeitado, tornava-se amiúde motivo de chacotas, gozações e preconceitos. Tudo devido à sua aparência de olhar estrábico, perna coxa e protuberante corcunda nas costas. Na escola, onde frequentara apenas até o segundo ano primário, ganhara o apelido de Frankenstein. No entanto, na realidade, a sua feiura lembrava mais a figura de Quasímodo. Obviamente, tudo se devera ao fato da personagem da escritora britânica Mary Shelley tornar-se bem mais popularizada através da televisão, do cinema e até das histórias em quadrinhos. Enquanto a célebre personagem do escritor francês, Victor Hugo, sempre ficou na formalidade dos leitores mais intelectualizados.  

            Ao amanhecer, com muita dificuldade, após se despedir da mãe octogenária cochilando numa cadeira de rodas, Francisco deixou o barraco paupérrimo da periferia de Brasília, de onde às vezes se ausentava para dormir vários dias na rua. Na parada, subiu no ônibus lotado. No canto, totalmente isolado, sentou-se sobre a caixa de engraxar. O veículo balançava em solavancos. Alguns passageiros cochilavam para recuperar o sono perdido. Outros discutiam sobre futebol, novela, política e a custo de vida.

            Com os olhos tortos, observando tudo de um lado para o outro, Francisco procurou por alguns clientes. Nada! Todos os passageiros usavam tênis. A maioria deles, incluindo o motorista e o cobrador, já conhecia o engraxate. Sendo assim, acostumaram-se com a sua feiura peculiar.  

            Na rodoviária, o ônibus estacionou na baia. Francisco foi o último a descer. Em meio aos transeuntes azafamados, carregando a caixa nas costas, o engraxate caminhou em passos lentos. A maioria das pessoas, num misto de asco, preconceito e medo, evitava passar perto do homem de cabelos desgrenhados, corpo esquálido, deformado, aleijado de uma perna, vestindo roupas esfarrapadas. 

            Francisco passou pelas lanchonetes lotadas de fregueses fazendo o desjejum. Procurou um cliente para engraxar o primeiro sapato do dia. Ao mesmo tempo, seus olhos tortos observaram as pessoas mastigando avidamente as iguarias. Seu estômago doeu de fome. Minutos depois, sem nenhum êxito, seguiu caminhando lentamente. 

            Ao subir a escada rolante, Francisco dirigiu-se a um bar na plataforma superior.  Aproximou-se dos clientes. Com a mão em concha, pediu algumas moedas. Um homem com olheiras profundas, de tez vermelha, bebendo cerveja encostado ao balcão, ofereceu os seus sapatos para engraxar. O engraxate, com um sorriso de dentes podres, caprichou em seu primeiro trabalho do dia. Ganhou uma nota de dez reais. Sem precisar devolver o troco, seus olhos brilharam. Agradecido, saiu coxeando.  

            Francisco seguiu caminho rumo ao “shopping” Conjunto Nacional. Do lado de fora, proibido de entrar no prédio frequentado pela classe mais abastada, tentou em vão a sorte com alguns clientes. Desanimado com o fracasso, observado de longe pelo truculento segurança, seguiu taciturno para o lado oposto. Chegou ao “shopping” Conic. Ali, sim, podia andar à vontade em busca de trabalho. Frequentado principalmente pelas classes sociais mais baixas, o local abrigava igrejas protestantes, bares, boates, saunas, cabarés, faculdades, livrarias, farmácias, salões de jogatina, bancas de jogo do bicho, além de algumas sedes de partidos políticos. Tratava-se de uma verdadeira democracia, onde o sagrado, o profano, a riqueza e a miséria se misturavam formando uma dialética maniqueísta.  

            No restante do dia, Francisco não conseguiu faturar mais nada. Sentado sobre a caixa de engraxar, voltou à vida de pedinte. Aliás, com a modernidade paradoxal da “era dos tênis”, quase todos os engraxates tornaram-se mendigos. A caixa de engraxar, por sua vez, tornou-se apenas uma espécie de ícone simbolizando o subemprego. 

            A noite chegou como um véu negro. O luar tênue, misturando-se à profusão de luzes artificiais, cobriu a cidade. Com os poucos trocados arrecadados, esquecendo a fome, Francisco reuniu-se sob a marquise de uma loja fechada com outros mendigos, bêbados e viciados em drogas. Bebeu cachaça no gargalo da garrafa passando de mão em mão. Fumou algumas pedras de “crack”. Filou um cigarro de um transeunte assustado diante da cena à sua frente. Cena, esta, protagonizada por uma horda de seres esquálidos, andrajosos e esfarrapados, exalando um odor forte de sujeira, cachaça, urina, suor e miséria, mais lembrando um campo de concentração nazista. Fazia um frio invernal, de vento cortante. Mesmo assim, as prostitutas, juntamente com alguns travestis, apesar do clima hostil, iniciavam a disputa de clientes ávidos por algumas horas de amor clandestino. Os automóveis, entre buzinas, sirenes e fumaça negra, desfilavam pelo trânsito caótico das longas avenidas retilíneas. 

            Do lado oposto aos mendigos, um grupo de jovens berrava, xingava e gargalhava alto. Dois rapazes, com as vozes roufenhas, tentavam acompanhar a música ecoando estridente do som de um automóvel luxuoso. Cigarros de maconha, além de muita bebida, completavam o cenário de loucura explícita. Certa hora, totalmente saciado, Francisco deixou os companheiros de miséria. Sem outra opção, passou no meio do grupo sinistro dos bêbados ricos. Subitamente, exibindo uma tatuagem da suástica nas costas, fumando um cigarro de maconha, demonstrando-se bastante exaltado, um dos rapazes acertou um tapa na cabeça do engraxate. O pária quase caiu com o rosto no meio-fio. Os outros membros da confraria, gargalhando ainda mais alto, aplaudiram a cena dantesca. Apenas uma menina loira, de olhar esverdeado, condenou o ato de pura covardia. Obviamente, além de olhares fulminantes de reprovação, ganhou uma sonora vaia burguesa.

            Após o primeiro bofetão, impotente diante da situação, Francisco se levantou com dificuldade. Encarou o seu agressor com um olhar oblíquo, lacrimejante e suplicante. Ensaiou um sorriso pálido, deixando transparecer os dentes podres. Nesse interim, mesmo sob os protestos de algumas mulheres, levou mais dois tapas na cabeça. Caiu mais duas vezes. Chorou baixinho. Sem hesitar, com medo de apanhar até à morte, saiu coxeando sem olhar para trás. Sentiu na pele, mais uma vez, o peso do preconceito, da discriminação e da culpa por ter nascido miserável.        

            Em passos trôpegos, agora felizmente livre dos bêbados fascistas, parecendo mancar com mais intensidade, Francisco finalmente chegou perto da rodoviária. Jogou a caixa de engraxar de lado. Deitou-se debaixo de uma árvore, em posição de concha, sobre alguns papelões servindo como colchão. Ajeitou a cabeça sobre as mãos. Respirou fundo, tentando controlar as têmporas latejando, o coração pulando e o medo pulsando forte. Pestanejou. Fechou os olhos, lembrando-se da humilhação, da dor e do horror sofridos. Seus olhos se encheram de lágrimas. Chamou por Deus, mas Deus não o respondeu. Mas será que Ele ouviu? Ou simplesmente não quis ouvir? Será que Deus ouve somente os ricos, os poderosos?

            Assustando-se com a freada brusca de um carro, Francisco saiu de seus pensamentos absortos. Soergueu o corpo por um instante. Voltou a se deitar. Fechou os olhos novamente, mas não conseguiu dormir.   

            Meia hora depois, ao abrir os olhos, Dalila surgiu à sua frente rebolando o corpo tísico, esquálido, coberto por um vestido andrajoso, de cor indefinida. Aspirou a última tragada no cigarro. Jogou a guimba no gramado seco. Ajeitou os cabelos desgrenhados, pintados de loiro. Abaixou-se sobre o corpo frágil de Francisco.

            “Oi Chiquinho!”

            “Oi Dalila!”

            “O que aconteceu meu amor? Por que você está chorando?”

            “Eu apanhei de novo, de graça, de uns filhinhos de papai. Na verdade, tremendos filhos da puta! Porra, Dalila, que vida miserável é essa, onde ninguém respeita a gente? Onde está Deus nessa hora?” 

            “Não fica assim, Chiquinho! Eu estou aqui para te proteger, para te consolar e te dar muito amor”

            Ao terminar de falar, Dalila se aconchegou junto a Francisco, abraçando-o por trás. Alisou os seus cabelos crespos, também desgrenhados. Alisou seus braços magros, escuros, maculados por minúsculas feridas purulentas. Alisou a sua corcunda. Virou a cabeça do engraxate para o seu lado. Enxugou as lágrimas de seus olhos com beijos de ternura. A seguir, sem nenhum pudor, beijou a sua boca. Hálitos fétidos de carinho, de amor e de paixão ardente se encontraram sem preconceitos, superando o ódio inexplicável dos homens. Abraçados, vencidos pela lassidão, os dois amantes dormiram o sono dos miseráveis.

            Francisco era completamente apaixonado por Dalila, um travesti viciado em drogas, vivendo da mendicância pelos caminhos errantes da vida. Perto dela, o pobre homem se sentia gente de verdade. Se sentia amado, forte e protegido. Se deleitava amiúde com os seus carinhos, com seus afagos e com as suas carícias, gestos jamais recebidos de alguém, nem mesmo de sua própria mãe, desde os tempos de criança.

            Entre Francisco e Dalila, dois párias da sociedade, independente de sexo, existe literalmente um amor livre, inocente e sincero. Um amor visceral, no meio da miséria, ajudando a superar, mesmo que efemeramente, as dificuldades, os obstáculos e as intempéries da vida.

Conto escrito por
Vicente de Melo

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
André Garcia
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Peçanha
Lígia Diniz Donega
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca da Silva
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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