Feliz Dois Mil e Vinte?
de Joelma Couto
Que tal felicidade é essa? Fui arremessado nesse planeta
caótico onde não encontro nada verdadeiramente seguro. Sou empurrado através do
tempo e consumido pela incerteza. Nessa batalha de gigantes muitos habitam em
mim. Se não bastasse essa guerra invisível minhas escolhas são esmagadas pelo
mundo e suas regras. Sonhos recorrentes permeiam as minhas emoções, a maioria
deles está profundamente ligado ao curso de medicina que apesar dos problemas
financeiros conclui. As dificuldades que enfrentava para firmar-me
profissionalmente, trabalhei em alguns hospitais, sonhava com especialização,
consultório e tudo que fazia parte das necessidades de um médico recém-formado.
Assim os próximos passos que daria rumo ao meu sonho, estavam traçados. Conheci
uma garota linda e rica, nos envolvemos foi atração física arrebatadora e de
repente uma gravidez. Fim de linha para meus os sonhos. Diante do ocorrido fui
convidado para um almoço onde seria decidido meu futuro.
— Rapaz, você está ciente do mal que causou?
— Sim, senhor.
— Não criei filha para ser mãe solteira.
— Compreendo, senhor.
— E mais, terá que fazê-la feliz, ela é minha menina.
— Fique tranquilo.
— Terá que casar, ser homem e agir como tal. — Consenti com
tudo que ouvi ali. Voltei para casa destruído, sepultando meus planos. O que
fazer? Fui derrotado pelo monstro da libido.
Com o salário de um jovem médico não conseguiria sustentar a
família, sendo assim passei a trabalhar numa grande empresa produtora de
eventos para complementar a renda. Dois anos com essa dupla jornada, cheguei ao
limite e por questões financeiras tive que abandonar a medicina. Fiquei em
frangalhos, mas era necessário. Rapidamente comecei a subir de cargo minha
carreira nessa área tomava proporções inimagináveis e assim se passaram quinze
anos.
Abateu sobre mim um cansaço dessa vida acelerada, perdi o
contato com o ritmo do meu próprio coração, sem a menor conexão com os meus
sentimentos. Vi meu casamento esfriando naquilo ele se sustentava e meu filho
mudando numa velocidade brutal. Eu sendo sugado pelo sistema, não acompanho a
invasão dos cabelos brancos, as rugas e a flacidez da minha pele. De fato, essa
busca desesperada em consumir tem sido a maior responsável por essa escravidão
consentida. Já não basta ter um carro, tem que ser o lançamento, celular, esse
fica ultrapassado em um piscar de olhos e o mais ridículo é que ninguém usa
todas as funções básicas.
Mas que inferno, essa engrenagem gira, não tenho como pular
deste barco e a mínima sensibilidade que ainda resta dá sinais claros que este
está à beira do naufrágio. Não vejo como seremos salvos. Como se não fosse
suficiente o caos interior e familiar, o mundo está a passos gigantescos para a
completa desordem. Ninguém ouve e todos falam. As redes sociais expressam isso,
basta ficarmos por alguns minutos observando e a incompreensão é gritante.
Todos despejam seus medos e suas angústias, estamos doentes. Até que ponto
seremos capazes de alimentar estes monstros?
No escuro do meu quarto, resgato o antigo Antônio dos
escombros, onde seus velhos sonhos jazem. Aromas, melodias e o ritmo da vida
intensamente sentindo, eis que surge o despertador rasgando o silêncio da
madrugada. Lá se vão meus sonhos regressando ao esquecimento, afinal, hoje é
segunda-feira e o dever me chama.
Assim o ano de 2019 está prestes a findar. Serei capaz de uma
mudança radical em 2020? Presumo que não, tenho projetos inacabados,
profissionalmente preciso mais. E o futuro? Esse não espera. A angústia cresce
na mesma proporção que é ocultada dos demais, entulhando o espaço das minhas
tensões e ecoando nos pesadelos. Sou um profissional bem-sucedido não posso
manifestar sinais de fraqueza. Lá se vai mais uma semana, pulei feito macaco
para dar conta dos compromissos. Meu deus, meus lobos internos gritam e
debatem-se contra as grades.
Sábado, paciência esgotada, tanto quanto o corpo. O relógio
biológico não perdoa, no horário habitual estou acordado, olho aquele corpo
esculpido ao meu lado parece ter saltado de uma revista masculina. Eu poderia
pensar como tenho sorte, uma verdadeira boneca toda minha. Logo aos primeiros
sinais emitidos por ela ao acordar, sou arremessado contra a minha gélida
solidão, onde nada que eu dissesse mudaria os compromissos sociais do final de
semana.
— Que chato, estou atrasada, leve-me ao salão!
— Bom dia, querida. O que houve com o seu carro?
— Está na revisão, por falar em carro, já escolhi o presente
de natal.
— Trocar de carro novamente?
— Enjoei, não suporto ficar mais de um ano com o mesmo carro.
O que me resta, senão assistir sua busca ansiosa para
resolver seus “problemas”, salão de beleza, ‘shopping’, roupas, calçados e
maquiagem, coisas que dizem fazer parte do ritual de beleza necessário a uma
mulher. O que de fato carrega no seu íntimo, quais são suas angústias e seus
desejos? Parece desfilar confortavelmente em seu papel. Pensando bem, muitos à
minha volta, transmitem essa mesma impressão. Mas, no fundo, estamos todos
fugindo do espelho capaz de nos mostrar nossa verdadeira imagem. O ritmo
frenético ao qual estamos nos impondo não nos permitem parar, e se pararmos,
logo buscaremos meios para fugirmos, nos ocupando superficialmente.
E nesta noite de sábado estamos a caminho de uma grande festa
no sítio do meu sogro, onde será comemorado o aniversário de quinze anos da
minha cunhada. Ao estacionar o carro sou invadido pela mesma sensação de
inadequação e logo nos primeiros passos, encontro alguns amigos o que diminui
meu desconforto. Gradativamente vou entrando no clima de comemoração. Aprendi
lidar com essas festas, nada que provoque contentamento extraordinário, mas
sobrevivo.
Meu filho com quinze anos eu desconheço seu mundo, ou melhor,
tudo que ele vê e vive está preso à tela de um computador, até mesmo nas
reuniões com os colegas e lá está o celular parecendo seduzir muito mais do que
o contato real. Fico passeando pelas minhas memórias num verdadeiro e profundo
questionamento. Onde ficou aquela criança que jogou bola comigo, parquinhos,
brincadeiras e leituras? Por um bom tempo ler história, infantis ao seu lado
era meu melhor programa familiar, já que o convívio matrimonial resumia apenas
em cobranças, obrigações e pouquíssimos momentos insossos.
Festas de final de ano aumentam a correria, igualmente a
superficialidade e, nessa altura está armado verdadeiros rituais desprezíveis
aos meus olhos. Definitivamente, não faço parte desse meio, sou apenas um
observador recluso na minha tristeza. Vejo escoar fragmentos de vida que ainda
restam. Eu apenas sobrevivo às reuniões sociais, onde todos parecem
confortáveis ao comemorarem seus progressos financeiros e profissionais. Enchem
o peito ao contar seus acúmulos e descrever o que ainda ambicionam. Minha alma
parece encolher diante da insignificância de tais conquistas.
Não recordo onde ficou enterrado meu contato com a arte, a
boa música e a leitura. Por que ao invés de correr feito louco para a
manutenção dos caprichos consumistas de Carol, não a apresentei ao meu mundo,
foi por pura covardia? Penso que, no fundo, ganhar dinheiro também me dá um
certo prazer. Prefiro pensar que sim, afinal fiz escolhas. Por que nunca a
levei a um concerto? Boa Ideia, e assim cheio de entusiasmo passo em uma
joalheria escolho um lindo colar, compro bombos e flores. Lá está Carol diante
do computador, pouco receptiva, mas mantenho meus planos românticos.
— Hum, presente? Obrigada!
— Querida, iremos ao concerto hoje.
— Pode ser.
Cheio de expectativa, igual um adolescente no primeiro
encontro, a cadeira não acomoda meu corpo, caminho de um lado ao outro diante
do espelho, reviso os últimos detalhes, pareço bem. Finalmente, ela aparece
linda e perfeitamente produzida.
— Nossa!
— … — apenas um sorriso enfeita seus lábios divinamente
esculpidos.
Depois de muitos anos, mal posso conter a emoção ao entrar no
teatro, meus olhos passeiam por toda parte, pareço estar sob o efeito de alguma
substância capaz de provocar sensações por todo corpo. O silêncio gradualmente
sendo preenchidos pela mágica viagem da 9.ª Sinfonia de Beethoven, bruscamente
interrompida ao perceber o completo desconforto da minha companheira, que dá
sinais claros e manifesta verbalmente seu descontentamento. Os minutos vão se
arrastando, estou agora incomodado e não tiro os olhos dela. Assisto minhas
ilusões se perderem, afinal ela jamais entenderá em que ritmo meu coração pulsa
e nem mesmo dispõe de vontade para tentar. Eu também não a compreendo nas suas
escolhas e aquilo que ele considera ser “felicidade”.
— Que programa, francamente!
— Desculpa, só pensei…
— Aquilo é música?
— Já disse, desculpa.
Silenciosamente entramos no carro, ela coloca suas músicas
favoritas e eu mergulho na minha viagem solitária recordando o que acabei de
ouvir naquele teatro, que apesar do incidente, vivi momentos de glória
emocional e espiritual.
Sonhos lindos inundaram meu corpo de vida e cada célula
respirava. Preciso mudar, só desconheço como. Dizem que homem só pede divorcio
quando se apaixona por outra e esse não é meu caso. Ah! Deixa para lá, deve ser
fantasia… vou arrastando os meus dias e acumulando bens, que tem suas
vantagens. Ainda há vida em mim, pude perceber naquele concerto. Tentarei mudar
alguns hábitos. Afinal, ano novo, vida nova, não é assim? Pelo menos é o que
fantasiamos todo início de ano.
Aos primeiros raios de sol dessa manhã de domingo pulo da
cama, invadido por questões existências, nenhum espaço dessa linda casa que
vivemos parece ser meu lugar. Seria essa minha visão, reflexo de algum problema
de ordem emocional, ou de fato a vida moderna nos empurra para essa completa
fragilidade onde o verniz, socialmente aceito nos “protege”? Com a cabeça
fervendo, entro no carro e entrego-me ao que ambiciono ser início dos meus
projetos de ano novo. Debussy invade os espaços do carro se estendendo ao meu
corpo, dispenso ar-condicionado, este momento pede o vento acariciando minha
pele e cabelo. As ruas por onde, percorro lentamente, atravessam as minhas
retinas contagiando o meu ser, e invadido por essa magia chego à casa dos meus
pais.
— Filho, que saudade!
— Mãe, que conversa é essa?
— Claro, te amo. — Seu olhar e abraço caloroso reforçam as palavras
proferidas pelos seus lábios.
— A memória está ruim minha velha, esqueceu? Ontem estive
aqui.
— Não, mas você hoje está diferente.
— Bobagem, são seus olhos.
— Ah! Ricardo deixou as chaves do teu apartamento.
— O que houve?
— Terminou o curso,
vai trabalhar no Rio de Janeiro.
— Guarde aí, se alguém
precisar.
Dia agradável ao lado daqueles que mantem minhas raízes,
almoço em família, histórias recheadas de dificuldades e pequenas, porém
saborosas conquistas. É chegada a hora de voltar. Através do retrovisor vou
guardando o meu melhor, naquele mundo que ainda é meu, eu sinto isso. E os
minutos vão passando, os noticiários que trouxeram aos nossos olhos uma ponta
de tristeza neste dia, emerge e assim assisto à dissolução de alguns planos. É
inevitável ser impactado com as mortes e o caos instalados em outros países vitimados
pelo novo COVID-19.
Convivo com aqueles que ignoram as dores de um planeta, a
ponto de não enxergarem as reais ameaças. Os noticiários há cada dia nos mostrando
que seremos atingidos. Eu sinto não apenas por pertencer a mesma espécie, mas
também pela minha formação. Sei das medidas necessárias para atravessarmos este
momento. Compreendo as dificuldades de uma sociedade imediatista e
infantilizada. Não sei em que medida
serão capazes de suportar momentos de isolamento e solidão.
A realidade política e econômica do nosso País é preocupante.
Convivemos com a ignorância opcional ou real, entre outras. Um povo que sofre pelo descaso dos poderes
públicos. É impossível mensurar o que nos reserva para o decorrer deste ano.
Como eu havia previsto e ao mesmo tempo temido, os hospitais
do nosso país contabilizam seus casos. A nova realidade incide diretamente nos hábitos
de muitos, especialmente aqueles que vivem em grandes centros. Distanciamento,
isolamento passam a compor os novos hábitos. Devido ao cancelamento dos
eventos, estou as voltas com minhas dores e sinto-me paralisado. O que farei da
vida? Tempo sobrando, organizei a biblioteca, li alguns livros, e assim tenho
aproveitado este tempo. Tomo conhecimento do noticiário para assegurar a
informação necessária. Fiz algumas tentativas de entrar no mundo do meu filho,
sem sucesso. Se bem que a vida de Carol e Lucas não sofreram grandes
alterações, eu quem sou, para variar, um estranho no ninho. Consciente das
recomendações da OMS, tento convencê-los da necessidade do distanciamento e sou
criticado. O ritmo da família dela continua com festas, eventos menores e
fechados, mas eu não compartilho dessa irresponsabilidade e agora tenho
argumentos que me garantem o distanciamento de tais reuniões.
Este
período de descanso já passou dos limites, São Paulo vive momentos de horror,
não suporto mais ficar nesse mundinho fechado, assistindo pela TV o rumo que a
pandemia toma e logo ali, ao meu lado. Mas por onde começo? Penso rápido. E
estou aqui a meia hora tentando colocar em pratica minha decisão. Finalmente
tudo resolvido, resta apenas começar.
— Lucas, eu e tua mãe
estaremos te esperando na biblioteca dentro de dez minutos.
— Certo — consentiu com os olhos presos à tela do computador
— Carol, vamos à biblioteca precisamos conversar.
— Sim.
— Aguardaremos Lucas.
— Sim papai, o que houve? — Disse meu filho ao nos encontrar
a sua espera.
— Vou trabalhar como voluntário no combate à pandemia.
— Voluntário? Francamente, não é você que se esconde desse
tal vírus perigoso? — Seu tom habitual de ironia não me surpreendeu.
— Sim, ao contrário do que sua família prega e age, é
perigoso sim.
— Então, vai bancar de herói?
— Não, só preciso me sentir útil, e fazer jus ao meu
juramento.
Conhecendo o nível das nossas conversas, já presumia essa
reação. Prossegui pondo em prática os detalhes.
— Embora vocês não acreditem nos riscos de contágio, farei
minha parte.
— Como? — Disse Lucas.
— Ficarei no meu antigo apartamento, está desocupado. Vou
trabalhar diretamente com infectados, prefiro não expor vocês.
— Alguma dúvida?
— Normal, papai.
— Ficaremos bem. — Disse Carol, sem mais uma palavra.
Peguei apenas roupas, objetos pessoais, pois o apartamento
ainda está montado desde o tempo da faculdade. Não desfiz porque sempre abriga
algum jovem estudante da família, aquele espaço está carregado de lembranças,
as quais não quero esquecer. Despedi-me de Lucas e Carol, recomendei-os aos
cuidados que sei, não seguirão. Entrei no carro certo do que enfrentarei, hoje
dormirei na casa da minha mãe, onde darei as últimas recomendações. Coloquei
Beethoven sonata ao piano e sai com a missão de ajudar salvar vidas, mas, no
fundo, estou salvando a minha, independente à que estarei exposto, mesmo assim
não tenho dúvida.
— Filho, o que houve, você aqui?
— Ficarei uns dias no apartamento.
— Por quê?
— Medida de segurança, vou trabalhar como voluntário, no
combate ao (COVID-19), portanto não vou expor minha família ao vírus.
— Parabéns meu filho, Deus te ilumine.
— Obrigado, mamãe, por favor se cuidem.
— Claro, às vezes teu pai fica nervoso, mas passa. Ficar
preso não tem sido fácil.
— Verdade, a família de Carol não está preocupada com isso.
— E Lucas?
— Computador não transmite vírus aos humanos. — Rimos da
minha piadinha.
— Meu Deus! Esse excesso também é uma espécie de vírus.
— Verdade mamãe, mas a adolescência é marcada por excessos.
— E esse é seu único, não é?
— Isso me tranquiliza, aplicando nos estudos, obediente e bom
caráter.
— Fico tranquila. — Disse mamãe.
Assim continua nosso papo, transformando a cozinha em sala de
reunião. Eu, mamãe, papai, meu irmão mais velho (um artista brilhante, que
nunca soltou a barra da saia da nossa velha, ainda bem) e minha irmã caçula,
essa não difere muito de Lucas.
Revigorado, depois dos momentos de aconchego familiar,
despeço-me excedendo nas recomendações. O olhar de incentivo e aprovação de
todos ali, enche meu espírito de coragem, sigo certo das dificuldades, mas algo
maior me move através do trânsito tranquilo e nem parece que estou em São
Paulo. Finalmente a primeira visão do apartamento reforça minhas certezas, o
aroma deste lugar, resgata aquele estudante entusiasmo e tudo está exatamente
como antes. Alguns objetos deixados por outros estudantes que como eu, usaram
este espaço para abrigar seus sonhos. Agora estou aqui movido por uma força
misteriosa. É impressionante a forma como aquele cansaço desapareceu e sinto-me
de volta ao vigor dos vinte e oito anos.
Amanhã será meu primeiro dia no hospital, aproveito o resto
do dia para matar saudade deste lugar, meus livros e antigos CDs. Cercado por
moveis simples, mas atendem as necessidades do momento. Uma biblioteca modesta
e aconchegante, aproveito para ler um pouco. Meu espírito precisa de munição,
pego o livro — Em Busca do Tempo Perdido — Marcel Proust, aconchego-me na
poltrona de couro ao lado da escrivaninha certo de que estarei em ótima
companhia pelas próximas horas.
No horário habitual meu coração dá sinais e antes mesmo do
despertador. Levanto-me coma certeza que terei um dia repleto de emoções,
preparo um café como nos velhos tempos, e aquela mágica sensação diante dos
mistérios da vida injeta uma espécie coragem. Passarei por um treinamento
preparativo, antes do trabalho.
Olho a entrada do hospital onde tantas vezes alimentei minha
alma de sonhos, hoje após tanto tempo volto em busca de uma luz que devolva ao
meu ser a capacidade de sonhar. Essa é minha tentativa de resgatar a humanidade
adormecida em um corpo que caminha para a finitude, e esteve escondida atrás de
uma “felicidade” programada. A qual nunca verdadeiramente estive presente. Este
lugar tem cheiro de vida, embora muitas vezes apresente mais mortes e dores, e
que, no fundo, abriga almas sendo resgatadas perante suas dívidas.
— Bom dia!
— Bom dia. Dr. Antônio, ótimo tê-lo conosco nessa batalha.
— Sinto saudades deste lugar, espero poder contribuir
minimamente, embora esteja enferrujado.
— Este treinamento será capaz trazê-lo de volta — disse Dr.
Carlos em tom de brincadeira.
Foram refrescando meus conhecimentos, ao passo que fui
apresentado às inovações. Em seguida, treinamento específico no tratamento ao
novo vírus.
— Confesso, estou bastante apreensivo.
— Fique tranquilo, Antônio você dará conta. Sempre que,
precisar estamos aqui. — Dr. Carlos com sua segurança e capacidade de nos
acalmar. Além de ser um profissional brilhante é um ser iluminado.
Regressar todas as noites ao cantinho que acolhe meu corpo
cansado e no dia seguinte atravessar minhas limitações e incertezas na
tentativa de enfrentar este momento. Assim foram meus dias. Após cumprir todos
os treinamentos necessários, estou pronto para lidar diretamente com os casos
graves.
Depois de um bom banho, preparo uma sopa, antes tomar vendo
um bom filme, ligo para mamãe:
— Filho, tudo bem?
— Sua benção, mamãe.
— Deus te guarde e proteja, meu filho.
— Papai está mais tranquilo?
— Como sempre, teimoso. — E assim nossa conversa segue.
Em seguida ligo para Lucas e Carol, preciso saber como estão.
— Alô
— Tudo bem filho?
— Normal.
— E tua mãe?
— Está dormindo.
— Ela está bem?
— Penso que está.
— Diga a ela que amanhã ligarei, boa noite filho.
— Boa noite, papai.
Acordo bem mais cedo que o habitual, mamãe, suco de laranja e
torradas com geleia. Minhas narinas são invadidas pelo aroma de café
fresquinho, enquanto alimento minha alma ao som do Bolero de Ravel, tomo o café
lentamente, afinal hoje será meu contato direto com as dores alheias, depois de
tanto tempo.
Tentando conter a aflição sigo rumo à minha missão. Visto-me
como se estivesse numa guerra, o que não deixa de ser. Nosso inimigo além de
desconhecido é invisível (de certa forma, pois as medidas de higiene e proteção
nos isolam a tal ponto que chegamos a fantasiar que o enxergamos, não apenas no
ar, objetos e colegas à nossa volta. Todos numa distância que se acredita
oferecer segurança e cada um lidando à sua maneira diante dessa realidade),
estamos todos vulneráveis, isso é assustador.
Ao entrar no espaço reservado aos casos graves, sou atingido
frontalmente pelo que há de mais frágil, a linha delicadíssima que separa vida
e morte. Muitos dos que aqui estão, gozavam de boa saúde, e, se encontram aqui,
isolados e entubados. É uma realidade inimaginável e não apenas pela minha
pouca experiência, mas pela invasão silenciosa e inesperada.
Volto para o apartamento não mais vencido pelo cansaço e
apatia que há algum tempo arrastou-me pela vida. É essa experiência de lidar
com o que há de mais frágil e finito que revigora minha alma, trazendo luz ao
que verdadeiramente posso chamar de vida.
Enquanto preparo uma refeição leve e nutritiva, ouço J.S.
Bach: The Violin Concertos, buscando serenidade. Após obter notícias da
família, faço uma retrospectiva deste dia sem precedente.
Já se passaram trinta dias, fui tantas vezes dilacerado ao
presenciar mortes, outros ali precisando do aconchego familiar e contando
apenas com os cuidados profissionais. Os quais nem sempre conseguem lidar com
sua solidão humana e profissional. Muitos que como eu também estou longe de suas
famílias, com o intuito de protege-las. Ali vivemos também momentos de
alegrias, ao vermos pessoas se recuperando.
É inevitável buscar compreender este momento, e, ao mesmo
tempo, sonhar com possíveis mudanças. Embora eu não consiga acreditar que a
humanidade sairá melhorada. Poucos, passarão por verdadeiras metamorfoses.
Haverá aqueles, como sempre houve ao longo da história capazes de alimentar
seus dons artísticos, e presentear o mundo com aquilo que conseguirem produzir.
Mas, infelizmente muitos sairão piores, gostaria que essa fosse apenas uma
fantasia pessimista, mas são reflexões de alguém que conheceu o ápice da
superficialidade humana.
Obedecendo o que sempre faço ao chegar onde revigoro minhas
energias, permaneci por alguns minutos revivendo as experiências dos últimos
cinquenta dias. Tenho travado verdadeiras batalhas não apenas nesse desafio
diário que abracei, mas também no resgate à minha alma. A complexidade da
existência voltou a dialogar com o silêncio das noites escuras, onde a solidão
é minha companheira e aliada. Aliada pelo simples fato de que apenas através
dela serei capaz de enxergar a minúscula centelha de divindade que alimenta
minha esperança. Com o peito transbordando de saudade hoje uso chamada de
vídeo.
— Filho!
— Sua benção, mamãe, saudades do seu colo!
— DEUS te proteja, meu filho, também estou com saudades, mas
ela suporta.
— Tudo bem por aí?
— Sim, apesar de conviver com o distanciamento, os
noticiários, estamos aprendendo lidar com nossas angústias.
— (…) E assim permanecemos em silêncio, assistindo as
lagrimas do outro… sei que é ali onde abasteço minha capacidade de atravessar
tempestades e agora não está sendo diferente são aqueles olhos que revigoram
minhas forças.
Após alguns minutos de silêncio, conversamos, rimos e
brincamos. Ela contou histórias engraçadas de papai, onde seu único evento
externo é colocar o lixo para que o carro pegue. As compras da casa ficam a
cargo do meu irmão, sei que ele segue as recomendações à risca, no que se
refere a cuidados pessoais, com máscara, higienização, e todo procedimento ao
voltar com as compras. Isso deixa meu coração tranquilo. Meu povo é obediente.
Com a mesma esperança de ter momentos calorosos faço chamada
de vídeo para Carol:
— Carol?
— Oi!
— Tudo bem?
— Tudo, papai testou positivo, está com sintomas, continua em
casa, nosso médico está cuidando dele.
— E Lucas?
— Está bem, fizemos o teste, não temos sintomas, mas como
papai testou positivo, agora estamos aguardando resultado.
— Se cuide, e cuide do nosso filho.
— Sim.
— Hoje deixarei o celular ligado, se precisar…
— Não vai precisar, está tudo sob controle.
— Quero ver Lucas.
— Lucas, toma.
— Oi! Papai.
— Tudo bem, filho?
— Tudo. E você?
— Estou bem, com saudades.
— Também.
— Se cuide, meu filho. Se precisar, me chame!
— Certo.
— Deus te proteja, meu bebê. — Ele ficou sem graça, mas, no
fundo, sinto que nossa relação terá momentos de cumplicidade profunda é apenas
uma travessia própria da adolescência e vai passar.
Carol parece que nem diante da ameaça direta desce do seu
pedestal. Não alimento ilusões, agora não é momento para pensar nisso e o tempo
dirá. Esse momento familiar mexeu profundamente comigo, e sempre busco música
para elaborar minhas emoções, Tárrega, Fantasia La Traviata Guitar (Tatyana
Ryzhkova, tocando divinamente) e nessa atmosfera entrego-me.
As luzes ascendem e eu estou em uma igreja belíssima, onde a
orquestra apresenta o Réquiem de Mozart, o maestro com um ar angelical conduz
como se tocasse o céu, de repente o despertado atira-me contra a realidade,
estou aqui no meu quarto sob o efeito do que acabei de ouvir. Dominado por essa
magia levanto-me, vou de encontro à minha missão e no percurso para o hospital
divago através daquela imagem e melodia.
Ao chegar, sou surpreendido com um paciente entubado, tardo
um pouco a reconhecer aí checo o nome, Rubens Alcântara, é meu sogro. Meu Deus!
E Carol? Corro ao telefone.
— Alô.
— Carol?
— Como você está?
— Estou bem, preocupada com papai, ele está hospitalizado.
— É, eu sei, acabei de vê-lo.
— Como ele está?
— Sob os cuidados de profissionais competentes.
— Eles vão salvar meu pai, né? — Ouvi seu choro do outro
lado, e aquela indagação infantil. Fiquei sem chão: o que respondo? Sei da
gravidade do quadro dele, não posso iludi-la e também não posso fazer nenhuma
previsão. Cuidamos de muitos nas mesmas condições e sobreviveram.
— Todos estamos empenhados em salva-lo. Fique calma, não há
nada que você possa fazer agora, além de esperar e orar.
— Certo.
— E Lucas?
— Está bem.
— Dê um abraço nele, beijo.
— Tchau!
Volto ao trabalho, meu Deus como este vírus é cruel. Sr.
Rubens pratica atividade física, é saudável, sessenta e cinco anos, não fuma e
bebe socialmente. Definitivamente, não há nada que nos assegure de que
estaremos livres. Essa incerteza é fonte de angústia, crescente.
Meu sogro ali, vencido e feito um robô ligado aos aparelhos.
Onde foram suas convicções, escolhas e fortuna? Fez piada com o vírus, assumiu
posição favorável à economia e defendeu seu patrimônio. Nunca morri de amores
por ele eu poderia estar comemorando, mas saio do hospital completamente
desolado. Tomo banho e depois apenas um suco, fico por alguns minutos, inerte,
olhos fixos no teto do quarto.
— Xeque-mate! A natureza se revolta. Cadê tua medicina? Toda
ciência humana se curva diante do invisível. — Uma voz ecoa e parece assoprar
ao meu ouvido. Dou um pulo, olho em volta, apenas eu e os móveis do quarto.
A caminho do supermercado observo a cidade vazia algumas
pessoas caminhando tranquilamente como se não houvesse nada que as incomodassem
nem mesmo o uso obrigatório das máscaras. Outras além de usarem máscaras
caminham como se estivessem com nojo de tudo e de todos.
Desço do carro, olho em volta e o estacionamento,
completamente vazio. Sou tomado por uma espécie de paralisia e nem mesmo o tempo
que avança com os ponteiros do relógio consegue arrancar-me dessa imersão. De
repente:
—Toninho? — Apenas meus amigos íntimos da adolescência
chamavam-me assim.
— Opa, Anne? — Como esqueceria uma garota com alhos, feito
faróis em noites escuras?
— Sim. Como está?
— Estou bem, ou melhor atravessando este momento. E você?
— Nem me fale minha mãe estava morando na Itália foi a
primeira da minha família e meu esposo trabalhava na Espanha foi um mês depois
e desde então tenho tentado superar a dor da perda.
— Sinto muito! — Como não chorar por dentro ao ver aqueles
olhos ensombrados?
— E o pior, não pude estar com eles nem para o velório. É
como se eu os houvesse abandonado no momento derradeiro.
— Lamento profundamente. — Meus olhos nem sabem como reagir
diante de tudo isso.
— E agora vivemos sobressaltados diante da ameaça diária. —
mais uma vez não consegui suportar sua angústia.
— Verdade. — Uso apenas os olhos para expressar minha
comoção, não sou muito bom com as palavras principalmente em momentos de dor.
Trocamos nossos contatos e isso foi tudo que o momento permitiu, nos despedimos
de longe.
Dói muito não poder abraçar uma pessoa querida e ainda agora
em que ela está abatida e fragilizada. Estamos ilhados em nossos próprios
corpos. E sob esse efeito volto para meu refúgio onde passarei o resto do dia
duelando com meus medos e assistido apenas pela, a solidão.
Vivo um momento de profunda introspecção que em grande parte
se deve a atual realidade, mas é inegável que os problemas arrastados ao longo
dos últimos anos não foram resolvidos e apenas em alguma medida, adiados.
Enquanto isso abraço meu caos interno e em paralelo tento contribuir como
consigo na tentativa de amenizar o caos externo. Convivo diariamente com a
possibilidade de que a qualquer momento serei atingido pelo vírus, sendo assim
continuo seguindo à risca todas as recomendações.
Entro na UTI com o mesmo ar reverencioso habitual, tenho
visto com muita frequência desligarem aparelhos e prepararem os corpos. Aquele
corpo diante dos meus olhos, é Sr. Rubens. Meu Deus! E Carol? Não sei
exatamente o que sinto, mas conheço parte da sua história pessoal e em alguma
medida compartilhamos algo. Fora dezesseis anos tentando manter uma relação o
mais cordial possível.
Sem a mínima condição de permanecer ali, volto ao apartamento
e tomo um banho. Tenho que ir ao encontro de Carol, ela precisa do meu apoio e
quanto antes. Só no caminho percebo que esqueci as chaves, mesmo assim sigo.
— Lucas, onde está sua mãe?
— Soube que vovô faleceu, pegou o carro e saiu.
— Onde ela foi?
— Não sei, saiu sem o celular.
— Meu Deus!
— Vovó está vindo para cá.
— Ela já sabe que sua mãe saiu?
— Não, mamãe ficou desesperada.
— Liguei para vovó, quando fui procurar mamãe, ela havia
saído de carro.
— Vou para o hospital ela deve ter ido ver com os próprios
olhos.
Saio aflito na esperança que ela esteja a caminho do
hospital. E assim vou analisando a relação que ela sempre teve com o pai mesmo
com trinta e um anos não deixou de ser menina, muito mimada e não cresceu. Meu
Deus! O que será daquela criança? De repente avisto um tumulto, sou avisado de
que houve um acidente de trânsito e tem alguém gravemente ferido. Desço do
carro para prestar os primeiros socorros, reconheço ao avistar é Carol presa às
ferragens. Ao aproximar percebo que ela está com vida.
— Papai, meu pai.
— Calma, o resgate está chegando, respire. — Tento acalma-la
como posso, está presa às ferragens, temos que esperar.
— Quero meu pai.
— Estou aqui com você, vai ficar tudo bem.
Finalmente ela foi retirada das ferragens e levada ao
hospital. Devido ao protocolo de distanciamento tenho que ir no meu carro.
Acompanho cada detalhe ela está gravemente feriada e seus olhos visitam a
realidade humana através da dor.
Na sala de espera aguado aflito não sabendo mais o que pensar
e essa agonia parece durar uma eternidade.
— Sr. Antônio?
— Sim.
— Sua esposa não resistiu, sinto muito.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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