Casos do Delegado Fontes
de Sonia Regina Rocha Rodrigues
O mendigo Bisonho tomava sol sentado
no banco da praça em frente ao colégio e observou o caminhão de mudanças que
chegou, descarregou 27 caixotes de livros e uns poucos mais de utensílios e
eletrônicos. Depois os carregadores entraram com os gaveteiros e ele
aproximou-se do motorista para filar um cigarro.
- Eram livros, é?
- Pois essa gente aí tem mais livros que roupas. - respondeu o motorista,
amigável.
- Videocassete, eles têm? - indagou Bisonho, com ar desinteressado.
- E dos bons. Dos modernos, de 4 cabeçotes. Deixaram tudo na sala, que a
família vai chegar semana que vem para arrumar. - o motorista olhou de soslaio.
- Quanto vale a informação?
- Eu tenho lá cara de informante? - mas escorregou uma nota para o bolso do
outro - Alarme?
- Nenhum. Na casa da capital tem, então acho que semana que vem vão transferir
para cá.
- Cofre?
- Nem cofre, nem jóias, nem
verdinhas. Agora se manda, acabou a conversa.
Os carregadores já saíam da casa e chamavam por ele:
- Motô, hora do rango!
Bisonho permaneceu por ali, vendo o caminhão a afastar-se. Era o dia 26 de
dezembro. As famílias ainda se visitavam para acabar com os restos da comilança
natalina. Dia 27 era o dia de ruas mortas, perfeitos para o trabalho, o dia em
que ele e os comparsas fariam a sua festa de fim de ano. Havia naquele
quarteirão 19 casas desocupadas, famílias que iam passar as festas em outras
cidades, repúblicas de estudantes que iam passar férias em casa e agora essa,
de mudança. Decerto seriam professores, sem nada de muito interessante, mesmo
assim, não custava conferir, ao menos pelo videocassete.
O plano prometia ser bom, exceto por
um detalhe.
Na modorrenta tarde de 27 de
dezembro, um carro modesto estacionou na esquina e dele desceu um jovem
acompanhado de um pastor alemão.
- Vamos fazer a ronda, Capitão. Acho
que você vai gostar de sua nova cidade.
Aproximaram-se da casa 16, à direita
do colégio, e um olhar bastou para que o delegado Fontes, nosso jovem
personagem, detectasse uma abertura na janela da sala. Abriu silenciosamente o portão, despachou o animal
para a porta dos fundos e subiu sozinho a escada da frente.
Pôs a chave na fechadura e abriu
fazendo o maior barulho possível:
- Estamos em casa, pessoal!
Em frente a ele, parado no meio da
sala, com as duas mãos ocupadas em segurar o televisor, estava o ladrão, com
uma expressão apalermado na cara.
Sorrindo, o delegado aproximou-se,
tirou do bolso um par de algemas e empurrou o rapaz na direção da janela, lugar
perfeito para prendê-lo às grades.
- Ora, ora, o que temos aqui… - apalpou-lhe
os bolsos. Nenhuma arma. Pegou o televisor e o colocou no console.
Uns gemidos e um rosnar lhe
garantiram que o comparsa fora retido pelo cachorro.
Fontes pegou do celular e chamou por reforço.
- Que estréia!
O delegado Fontes escolhera mudar-se
para a Cidade do Poeta entre o Natal e o Ano Novo. Seus colegas disseram:
- Lá só tem ladrão de galinha, você
vai é morrer de tédio.
- Quer pescar, tire férias. Mas ir
para o interior, que fria!
- Dizem que os ladrões lá só
trabalham de dia.
Balançavam a cabeça, tristes com a
decisão do colega.
Fontes, no entanto, pensava
diferente. Para ele, a Cidade do Poeta tinha todas as características de
paraíso fiscal e corredor de drogas.
- Qual! Aquilo ali é cidade morta.
Tipo aquele livro do Monteiro Lobato. - porque o delegado Fontes era um
dedicado grande leitor dos clássicos e de tudo que lhe caísse nas mãos e
tivesse letras.
- Sim, é o disfarce perfeito.
- Bem, se for paraíso fiscal está
fora de nossa alçada, isto é lá com os auditores fiscais, mas corredor de
drogas, de onde tirou essa ideia?
Fontes apontou no mapa:
- A Cidade do Poeta está na rota
entre dois aeroportos internacionais. - e sem mais, ante o olhar cético dos
colegas, ele partiu.
Quando o reforço chegou, Fontes foi
com os meliantes até a delegacia e eles entregaram as informações sem
dificuldades. Já tinham limpado 10 das casas vazias. Em uma caminhonete
estacionada na rua de trás os policiais encontraram dinheiro, jóias, dólares e
todo tipo de eletrônicos. O delegado sugeriu que deixassem um aviso para os
moradores para que comparecessem à delegacia a fim de reconhecerem seus
pertences.
Ao fim da tarde vários vizinhos se reuniram em frente à sua casa.
- Quem é o senhor? - perguntou o
coronel, o mais rico da terra, fazendeiro tradicional e neto do fundador da
cidade.
- Delegado Fontes, seu novo vizinho,
a seu dispor. - ninguém percebeu a ironia no sorriso do moço.
- Um delegado!
- Nosso vizinho é o delegado!
- Sou o prefeito.
- Sou o médico.
- Sou o diretor do colégio.
Assim era a Cidade do Poeta. Um
vilarejo com um médico, um colégio e agora, um delegado.
Uma hora depois de sua chegada Fontes
estava íntimo da nata da cidade e a bandidagem local já estava prevenida contra
ele.
Mas faltava algo, e assim que o povo
se retirou, ele olhou atentamente ao redor, até perceber um vulto escondido por
trás da estátua do São José.
- Alberto?
- Sim, doutor. - o homem saiu das sombras, encafifado.
- Que está fazendo aí, que belo
guarda-costas você está me saindo.
- Camuflagem, doutor.
- Enquanto assaltavam a minha casa?
Você estava era dormindo. Está despedido.
- Despedido no primeiro dia? Isso
pode?
- Claro que pode. Você deveria ter ficado de guarda em frente ao portão.
- Exposto ao perigo?
- Não é você que dizia que aqui só tem ladrão de galinha? - mas no cérebro do
delegado a luz vermelha de alerta acendeu.
- Bem, se eu tivesse lá o senhor não
tinha feito essa entrada triunfal na cidade.
- Vá lá. Entra aí hoje para dormir
sob minha vigilância e amanhã você volta para a capital. Escoltado e sem
recomendações. Com uma advertência para o chefe.
Capitão ganhou seu biscoito de
recompensa e dormiu do lado de dentro, vigilante à porta do dono.
No dia seguinte uma aflita mocinha
bateu à porta do delegado.
- Eu vim aqui e peguei nossa TV de
volta. - explicou ela - Moro com duas amigas na rua de trás, nossa casa foi
assaltada. Os ladrões roubaram meu cartão de crédito, um que deixei na gaveta
da cômoda, de uma conta que só uso para pagar a prestação da faculdade.
- Faculdade? Aqui?
- O campus da capital fica a uma hora
de distância, indo de carro, e é mais barato morar aqui.
- Enxugue as lágrimas, não precisa chorar. Se você nos der o número do cartão
tenho certeza que poderemos resolver logo, venha vamos até a sala do detetive .
O detetive fez algumas ligações e
desligou a rir.
- O delegado não vai acreditar nessa.
- O que foi?
- O ladrão fez uma compra de 500 reais no supermercado essa manhã.
A mocinha ficou pálida.
- A boa notícia é que ele comprou
pela internet.
A mocinha gemeu.
- Eu sabia que deveria ter ligado
primeiro para cancelar o cartão, que tolice a minha.
- Ele pediu para entregar em
domicílio e a entrega foi agendada para hoje à tarde.
- Vamos lá.
Dali a uma hora, Fontes, Bernardo e a
jovem Laura observaram o caminhão de entregas parar em frente a bela mansão. A
porta da casa se abriu e um jovem saiu para assinar o recibo das compras, só
percebendo a presença dos dois estranhos que se aproximavam quando o delegado o
abordou.
- Como se trata de um cartão roubado, nós cancelaremos a compra e pediremos ao
supermercado que faça o estorno do valor.
Mas o fato de ter sido esta a única compra feita no cartão deu o que pensar ao
delegado.
- Meu rapaz, diga lá, pela casa em
que você mora, não é dinheiro que lhe falta, o que o meteu nessa encrenca?
O rapazinho hesitou. O delegado
abaixou a voz:
- Eu quero só o nome do traficante.
Pela expressão de terror no rosto do
moço, ele percebeu que acertara o alvo.
Neste momento, adiantou-se uma
senhora já idosa, vindo de dentro da casa:
- É minha avó - suplicou o rapaz -
Ela não sabe…
- Ah, minha senhora - adiantou-se o
delegado, apresentando-se, e acrescentado - Qual é o seu nome?
- Dona Marta de Alencar.
- Este jovem é seu neto?
- Sim, pode me explicar o que está acontecendo? O senhor sabe que meu filho é
vereador?
- A senhora sabe que os jovens fazem bobagens. - ele piscou para o moço - Esse
jovem aqui, por exemplo, furtou um cartão de crédito. Um delito menor que eu
tenho certeza de que consigo manejar, veja bem, se a dona do cartão concordar
em não dar queixa, e esse jovem concordar em fazer alguns serviços comunitários
e me acompanhar até a delegacia.
Dessa forma o delegado Fontes
conseguiu o nome que queria: Mosca.
Porém eu devo acrescentar aqui o
curioso fato que se passou em frente ao olhar do delegado, no final dessa mesma
tarde, na sala em que ele se reuniu com Laura e Hilário. (havia nessa cidade um
ginecologista chamado Hilário e muitas mães o homenageavam dando aos bebês do
sexo masculino esse nome tão peculiar)
O fato foi o seguinte: os olhos
castanhos de Laura encontraram os olhos azuis do moço Hilário e um suspiro
aconteceu. Um duplo suspiro. Uma ideia redentora passou pela mente do delegado,
que já havia presenciado esse fenômeno antes.
- Acho que você deve desculpas a esta moça. Ela esta cursando faculdade de…
- Enfermagem. - completou Laura.
- Uma profissão bastante útil.
Presumo que o senhor saiba a importância de estudar.
- Claro que sei, eu mesmo estava
estudando.. Química.
- Estava ou está?
- Fiquei de DP e estou pensando em trancar matrícula. A minha avó é contra.
- Muito bem. Já sei o que vou fazer.
Faremos um acordo. Você vai se comprometer comigo a fazer um tratamento com
psicólogo ou psiquiatra, e eu mantenho o seu processo aberto por uns tempos.
Essa moça, aqui, vai colaborar comigo. Tenho seis meses para dar andamento ao
processo ou arquivar. Você tem então seis meses para recuperar suas notas e
retomar sua vida normal como um sujeito decente. Incluindo abandonar as drogas
que estiver tomando. Se eu, Laura e sua avó entendermos que o senhor tomou
jeito na vida, a Laura retira a queixa, eu arquivo o processo e é vida que
segue. Claro, nesse seis meses o senhor vai fazer tratamento e algum trabalho
voluntário para a comunidade, digamos, umas duas horas por semana.
Pelo canto do olho o delegado
percebeu a expressão de simpatia no rosto de moça e o alívio do rapaz.
Em seguida, Laura saiu e o delegado
continuou:
- O senhor é inteligente e
compreendeu perfeitamente que eu não sou Papai Noel. Pode entregar tudo o que
sabe da rede e o nome do traficante.
- Sou um homem morto.
- Bem, rapaz, quem compra online com
um cartão roubado e manda entregar na própria casa não é muito esperto, e pode
crer que quando o traficante ficar sabendo disso, sua vida já era. Sua única
chance é colaborar comigo.
Na tarde seguinte, o detetive
Bernardo vou até o bar do Marquinho, na periferia, em companhia do investigador
Soares.
- Vê aí dois pretinhos e dois pães na
chapa.
Os dois sentaram-se em uma mesa na calçada e se ocuparam com as palavras
cruzadas do diário do dia.
- Carinho com seis letras.
- Dengue.
- Dengue é doença, animal. Dengo é
carinho e só tem cinco letras.
Um carro elegante parou, o motorista
desceu e dirigiu-se ao balcão, murmurando:
- Vem buscar o leite. Duas latas.
Bernardo anotou a placa do carro no
jornal, exclamando:
- Cafuné! É isto. Vamos à próxima…
Em quinze minutos, três carros elegantes pararam por ali e seus ocupantes foram
ao balcão pedindo leite e recebendo suas latinhas.
Bernardo anotou as placas e então
afastou o prato com as últimas migalhas de pão sem resistir a proferir em voz
alta:
- Mosca! Mosca!
Rostos espantados voltaram-se para
ele, que abanava freneticamente o ar.
Soares dirigiu-se ao caixa para pagar a conta e reparou no rosto branco do
atendente.
- Quanto foi?
- Por que ele está chamando o Mosca?
- Ah, tinha uma mosca no prato dele,
uma dessas chatas moscas de boi - ele se fez de desentendido, mas registou o
“está chamando”. Fora do bar, ao afastar-se, ele repreendeu o colega - Você
arriscou nossas vidas.
- Não é? Vamos agora procurar pelas
placas
Nos dias seguintes, três rapazes e
seus motoristas foram seguidos e estudados pela polícia. Logo encontraram
pontos em comum: o clube de campo, por exemplo. Certo armazém perto de um dos
aeroportos.
- Hora de sair do caso e passar as
informações para meus colegas das cidades grandes. Agora é com eles.
- Se sair, agora, delegado, eles é
que vão ganhar a fama.
- Fama? Estou pensando é na vida do
moço que prometi proteger.
- Sério?
Mosca acabou levando um tiro no banheiro do aeroporto, em um confronto com os federais e Hilário se recuperou para viver um romance promisso com a jovem Laura.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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