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Antologia Nosso Amor: 2x05 - Eu Vos Abençoo

Conto de Gisela Peçanha
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Sinopse: São Paulo, ano de 1955. Em um tradicional colégio da elite paulistana, uma adolescente nascida em berço de ouro, e outra, que trabalhava limpando a poeira da biblioteca, vivem um amor contido e reprovado. O preconceito da época, quando relações homoafetivas eram entendidas como aberrações, e o sofrimento das duas protagonistas por não poder viver este sentimento, costuram o enredo – culminando em um inesperado desfecho.


2x05 - Eu Vos Abençoo
de Gisela Peçanha
  
 

São Paulo, 1955.

 

           A moça mais linda da escola. Corpinho de arrasar, pele leitosa, coxas carnudas. Claro que todos os mancebos a desejavam, como uma manga rosa brotada em um sol fervente de verão. Babavam. Os cabelos cor de fogo, os cílios cor de fogo, penugens cor de fogo. Fogo! Pernas longas e tonificadas, tais quais mármores eternos: sem manchas, sem marcas, sem deslizes. Asfixiantemente linda e com olhos verdes. Verdes! Como se moldada pelas mãos de um deus obcecado, ensandecido diante das páginas de um livro de magia, criador de seres perfeitos e sem forma igual. Era ela: Rose Mawell. Filha de mãe brasileira e de pai inglês. Mas, quem cuidava de sua vida era um tutor, pois a mãe estava louca e internada num sanatório e o pai velejava pelo mundo, com mulheres às quais pagava para ser amado. Gastar fortuna e esquecer. O tutor era um tio de setenta anos que se importava tanto com a felicidade de Rose, quanto uma onça se apraz com a proteção de uma lebre. E, neste labirinto de solidão, ela tentava vencer a vida. Tímida e recuada, era dispensada dos esportes, indo encontrar alento e refúgio nos livros, nas histórias de beleza e de amplidão, de amores e de alegria. De magia e de alguma vida.

            Era assediada por todos os meninos da escola, e pelos professores também. Bela, alta, bem-nascida em berço de ouro. Aos dezesseis anos jamais namorara ninguém, nem mesmo Frank de Orleans: o rapaz mais rico e desejado do colégio. Ele oferecera a ela um anel de diamantes: recusado. Oferecera uma viagem em um luxuoso cruzeiro: negado. Suplicara um sexo selvagem nunca antes visto: ela, enojada. E, assim, Rose se negava a todos, permanecendo em sua distância-casulo que não era nem soberba, muito menos arrogância. Era a forma de ser que pouco falava, que raramente levantava os olhos, e ocultava-se na biblioteca da escola – escape permanente de seus dias. Todavia, seus olhinhos azuis (pulsantes turquesas) cintilavam fagulhas de alegria quando ela entrava na biblioteca; não somente pelos livros, não tão só pelas histórias, não pelo estudo, mas por encontrar Luiza, a mocinha que passava flanela nos livros. Filha do jardineiro, e que, limpando os livros, ajudava em casa, com o parco dinheirinho que ganhava. Pequena e roliça, com um par de olhos negros e profundos. Rejeitada por ser a filha de um subalterno, sua presença pobre destoava das meninas princesas que existiam na escola; mas, com Rose, era diferente. Quase não se falavam (pois a biblioteca exige silêncio), mas o estar perto era sempre regado a delicadezas, pequenos toques de mãos e olhares de cumplicidade. Rose a tratava com carinho. Luiza, a achava linda como um sonho. E era como se tudo isso já bastasse. O pulsar do silêncio, cheio de afetos e de segredos velados.

            Rose vinha chegando com os olhos baixos de sempre, e o silêncio da biblioteca dava lugar a uma espécie de respiração latejante e muitos olhos curiosos saltando para fora dos livros. Sempre, a chegada dela era uma aparição recheada de burburinhos, e nem mesmo a paz sem som de um ambiente de estudos se continha. Entrava e sentava-se, isolada. Colocava algumas pastas sobre a mesa e, logo, seus olhos buscavam Luiza. E lá estava ela: com os seios volumosos pressionando os botões da blusa puída, e com a flanela suja da poeira da cultura. Ela olhava para Rose, como criança olha para doce. Tal qual mãe olha para rebento. E Rose ia levantando os olhos para enxergar melhor aquele pequeno vulto que a fitava com tamanha delicadeza e parceria. Olhar que entendia. Olhar que conversava sem voz.  A menina passava a flanela três vezes, quando o livro era para Rose. E, da mesma forma, como em todos os dias, os olhares se esbarravam e algo se acendia no coração das duas. Rose nem sabia o porquê. O primeiro olhar, era apenas o primeiro olhar. Depois vinha o segundo e, após, os outros muitos. Luiza escolhia o livro mais empoeirado que conseguisse enxergar – perto de Rose. Neste momento, trocavam alguma palavra: — ‘’Olá’’... Vez por outra, vinha com a flanela e tirava um pozinho qualquer, sobre a mesa aonde Rose lia. Mas não havia pó algum. Ela passava a pontinha da flanela, em uma pontinha de carne da mão de Rose. E, assim, os dias passavam, nas tardes perfumadas da biblioteca esverdeada. Verde vindo da luz incandescente que atravessava os vitrôs das janelas, verde se mesclando com o azul dos olhos de Rose. Verde que luzia... Luiza.

            Até que, um dia, numa tarde fria e chuvosa, Rose chegou e não viu a moça da flanela. Ainda disfarçou por alguns minutos pegando um livro grosso – daqueles que nos obrigam a esperar. Leu da página um a dez e, na dez, parou. Livro aberto, e seus olhos percorrendo toda a biblioteca. E nada de Luiza. Um salgar absoluto na doçura, a ausência perneta do olhar profundo, a solidão. Rose sentiu o estômago dar voltas, e uma ansiedade funesta tomou conta de seu corpo: a dor do abandono a abraçou. De soslaio, via aqueles olhos vorazes dos rapazes lhe despindo por detrás dos livros. Alguns passavam a língua nos lábios, fazendo gestos obscenos para ela – ali, esmagada. Procurou com os olhos a flanela jogada em algum canto, perdida em uma mesa qualquer, largada no chão. Mas não estava. A flanela mais valiosa que uma seda pura, nas mãos afetuosas e certas.

            Os ponteiros avançavam na mesma sintonia em que as batidas do coração de Rose se atropelavam. Cada aluno que adentrava ao salão, capturava o olhar nervoso e impaciente dela, esperando que fosse Luiza. Mas nunca era.

A tarde acabou, e principiou a noite. A bibliotecária chegou na mesa de Rose e intimou:

— Estamos fechando.

Rose ensaiou perguntar o motivo de Luiza não ter ido trabalhar, mas calou a voz. Recolheu suas pastas, a bolsa, entregou os livros que fingia ler e partiu.

            Ao cruzar os jardins coloridos, pensou em rezar um pouco na capela, a abrandar sua ansiedade. Lá havia ainda mais silêncio. O silêncio de sua alma. E, entrando em solo sagrado, avistou a silhueta que conhecia tão bem:  os cabelos negros cacheados, o corpo roliço, rezando angustiada, de cabeça baixa. Rose sentiu faltar-lhe o ar. A capela estava totalmente vazia, então ela caminhou até Luiza, sentando-se a seu lado. Ficou inerte sem nada dizer diante daquele pranto, apenas olhando aquelas mãozinhas em posição de prece e o escape das lágrimas que pingavam. Rose as secou, com a pontinha dos dedos. Repentinamente, buscou a mão de Luiza e a segurou firme.  Aquelas duas mãos se apertaram, se enlaçaram, e tudo o que se ouvia era o respirar ofegante das duas. E nada mais. Se olhavam com ternura e tocavam no rosto, uma da outra. Tudo diante do olhar da imagem de uma Santa com olhos serenos e compreensivos, tal qual o olhar de uma mãe que abençoa um filho. ‘’Onde não há pecado nem perdão’’.

Foi quando, no impulso, Luiza beijou os lábios de Rose. Um sabor de mel e de sal de lágrimas, asfixiante de urgência. Algo sonhado e jamais esperado. Rose se entregou a este beijo-desejo que parecia eterno, pois era sem fim. Repentinamente o padre surgiu do nada, a interceptar a cena com um grito violento de horror:

— EXCOMUNGADAS!! SAIAM DA CASA DE DEUS!!

E foi até elas, gritando palavras de ordem, expulsando-as da capela a toque de caixa. Chamou o Bedel e relatou a cena pecaminosa que presenciara. O inspetor bradou a imediata expulsão de Rose e mandou chamar o pai de Luiza, a informar do ocorrido. Diante disso, as duas saíram correndo. Correram o máximo que puderam atravessando todos os jardins, até alcançar o grande pomar. A lua cheia começava a despontar e as iluminava pelo caminho. O padre tocou o sino da escola, ininterruptamente, procedimento que atestava quando algo muito grave havia acontecido. O humilde jardineiro da escola, empregado há vinte anos, chorava copiosamente.

— Perdoe as meninas, padre — ele murmurava, sendo consolado pelo Bedel e pela diretora da escola, que também fora convocada a estar presente naquela hora perversa.

            Sob o manto da noite, os portões da escola foram lacrados com suas dezenas de grossas correntes. O padre tirou sua batina e rezou dez Aves Marias e dez Pais Nossos, como penitência por ter tido pensamentos libidinosos com a mãe de uma aluna. Ele também se flagelava. O Bedel foi para casa, beijou sua esposa na testa, porém, antes, deu um jeito de enviar um bilhete à amante secreta. A diretora esticou ao máximo a hora de retornar ao lar - como fazia todos os dias - para não encontrar o marido bêbado, a agredindo e deixando marcas em eu corpo. O velho jardineiro foi despedido sumariamente, a servir de exemplo.

            No dia seguinte, encontraram dois corpos que dormiam dentre as rubras macieiras do pomar. Um corpo farto, branco como a neve, com seios sufocados dentro de uma humilde blusa puída; e um outro, cheio de sardas cor da ferrugem... moça tão bela, tal qual uma princesa morta. Um pequeno frasco de vidro foi encontrado caído sobre a grama, umedecida pelo choro do orvalho noturno.

E as duas meninas, de mãos dadas.

Um arco-íris emoldurava o céu daquele instante, e o sopro mudo estava preso para sempre – dentro da biblioteca. Junto a centenas de livros sobre histórias de sentimentos sufocados, incompreendidos, de paixões crucificadas e jamais vividas.

Mas, muitas décadas se passariam...

E os amores condenados um dia teriam voz, gritando todos os silêncios.

Conto escrito por
Gisela Peçanha

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
André Garcia
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Peçanha
Lígia Diniz Donega
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca da Silva
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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