2x06 - Vou Amá-la para Sempre
de Amanda Kraft
Sempre que chegava ao
trabalho ela estava sentada, quietinha, na mesma cadeira fitando o vazio. De
tempos em tempos dava para perceber um sorriso discreto nos lábios, como que
perdida em velhas lembranças. Não era uma das senhoras difíceis de lidar.
Aceitava sua condição de interna na casa de repouso, sem questionar o fato. Sua
única filha vinha sempre visitá-la. Numa tarde de folga, quando eu estava
prestes a deixar o lugar, acenou para mim e sorriu com candura. Aproximei-me e
ela pegou minha mão. Não achei estranho, já que a maioria agia da mesma forma,
entretanto, algo em seu olhar tocou meu coração. Na mão livre, percebi um lenço
amarfanhado. Seus olhos mostravam-se marejados, o que me fez indagar:
— A senhora está bem,
vó? Aconteceu alguma coisa?
— Não, minha filha. Às
vezes o passado volta a me assombrar e fico pensando se minha vida poderia ter
sido diferente. — Sorriu com olhos luzidios.
— Mas a senhora teve
uma vida boa, não teve? — Perguntei, sentando-me ao seu lado.
— Não posso me queixar.
Meus pais me deram de tudo, mas não pude ter o que mais quis e nem tive força
para brigar por ele. Você tem a sorte de poder ser e fazer o que quer. No meu
tempo não era assim. A gente obedecia ao pai.
— Do que a senhora está
falando, exatamente? — Mirei seus olhos, agora perdidos no passado, pensando
que talvez estivesse delirando.
— Fui adotada. Não sei
por que me abandonaram e nunca quis saber. Penso que tiveram um motivo. Sempre
há um motivo. Às vezes não temos escolhas ou somos fracos demais para fazê-las.
Meus pais adotivos me acolheram quando bebê e me amaram em demasia. Moravam em uma
fazenda próspera, onde cresci e fui feliz, até certa idade. Até que descobri o
amor.
— Ah, vó! Quem era ele?
Algum peão musculoso, desses que a gente vê em filme? — perguntei, arrancando
um sorriso dos seus olhos cansados.
Ela me encarou por
alguns segundos, perscrutando-me. Lembro-me que cheguei a pensar se ela estava
buscando confiar em mim.
— Desculpa, vó. Não
quis interromper. Por favor, continue.
Ela assentiu, e voltou
a sorrir daquela maneira que os idosos sempre fazem. Mais com o olhar do que
com os lábios.
— Havia uma menina,
Alda, filha de um dos empregados de meu pai, que foi minha grande amiga. Eu a
considerava como uma irmã. Fizemos o primário juntas, ali mesmo na fazenda.
Então, quando já estava mocinha, papai me matriculou em um colégio de uma
cidade vizinha. Alda não quis ir comigo, pois só voltaríamos à fazenda nos
finais de semana. Ela detestava a cidade. Sempre que voltava para casa, dormia
no meu quarto e então conversávamos até a madrugada. Sonhávamos com os rapazes
quando íamos assistir à partida de futebol aos domingos. Mas eles não eram para
nós. Alda adorava flertar, mas quando a pediam em namoro, não aceitava. Seu
coração era livre. O meu também era, até que foi tomado por algo que jamais
sentira em toda a minha vida, quando voltei da escola. A adrenalina tomou conta
de mim, arrepiando-me inteira quando mirei aqueles olhos. Senti como se um raio
tivesse transpassado meu corpo. Sorriu, de forma acanhada e eu abaixei os meus,
envergonhada, no momento em que um dos empregados dizia alguma coisa em seu
ouvido. Procurei saber quem era, já que nunca esteve na fazenda até aquele dia.
Naquela noite arranquei todas as informações de Alda, sem que ela percebesse
meu interesse. Soltava observações no ar e, ela sonolenta, dizia o que eu
queria ouvir.
Descobri seu nome.
— Começou a trabalhar
logo que você foi para São Carlos. Falei para você não ir — disse Alda, com um
sorriso matreiro nos lábios — Nós três podemos aprontar muito nessa fazenda.
Assistir ao futebol no domingo, andar à cavalo, pregar peças nessa gentarada
medrosa. Sabe o que aprontei outro dia? — perguntou ela, fazendo-me rir.
— Não tenho a mínima
ideia, mas
desconfio.
— Saque aquele rapaz
que te falei? O tal que é noivo de uma moça da cidade? A irmã dele é muito
medrosa. Coloquei as roupas do meu pai, um chapéu e fiquei escondida no meio do
mato. Quando ela saiu na varanda, eu caminhei de fininho e disse com voz
fantasmagórica: “Boa
nooiiteee”.
Escondi-me correndo. Ela gritou e quase desmaiou de susto.
— Alda, você é terrível
— disse-lhe, gargalhando com ela. Porém, meus pensamentos estavam naqueles
olhos claros que pareciam um pedaço de céu. Naquela noite sonhei com eles.
Nunca havia me sentido tão fascinada em minha vida. De certa forma não, entendia o que estava
acontecendo comigo. Por que todo aquele turbilhão de sensações. Recriminei-me
por tais pensamentos impuros. Sentia-me um ser desprezível. Uma moça bem criada
como eu, praticante das leis de Deus, não deveria se comportar daquela forma.
Durante o dia, longe do olhar dos pais, fui andar a cavalo.
Bastou olhar para seu
rosto, enquanto andava por aqueles campos, para que eu passasse a tremer toda.
Aproximou-se de mim. Encarei aquela face límpida e tão clara. Fazíamos um
contraste gritante. Conversamos por alguns minutos, enquanto caminhamos para a
baia dos cavalos. Ajudou-me a arriar o Trovão e nossas mãos se tocaram. Foi
como se o tempo parasse. Seu sorriso iluminou o rosto e tive a certeza que
sentia o mesmo que eu. Não sei como soube. Tudo aquilo era novo para mim. Não
passava de uma menina. Sequer imaginava que um coração pudesse bater tanto.
Passei a desejar que a semana passasse rápido, só para chegar o sábado e poder
passar algum tempo com minha nova amizade.
As coisas fluíram entre
a gente. Sentia medo dos meus pensamentos. Aquele frio na barriga, um desejo
pungente de tocar aquela pele cada vez que estávamos a sós. A necessidade de querer
estar sempre junto, me assombrava. A ideia
de estar fazendo algo errado me torturava, porém o desejo que sentia suplantava
o medo. Começamos a
namorar às escondidas. Nem mesmo Alda sabia. Não contaria ainda. Talvez minha
amiga não entendesse. Como sempre fazíamos quando eu voltava do colégio, Alda
vinha dormir no meu quarto, tornando-se meu álibi. Sentia por usá-la daquela
maneira, mas a necessidade de estar junto com o que acreditava ser o amor da
minha vida, fazia-me esquecer do perigo de perder sua amizade, ou mesmo de ser
descoberta. Conversávamos por um tempo e então, dizia a ela que estava cansada.
Alda se virava para o lado e dormia pesado, já que o trabalho na roça era
extremamente cansativo. Assim que ouvia seu ronronar, saía pé ante pé do quarto
e ia à procura daquela paixão desenfreada. Dormia em seus braços depois de
conversarmos e nos beijarmos a noite toda. Tantas promessas e eu me encontrava
cada vez mais fascinada. Quem se importa em sonhar quando se ama? Mesmo eu
sabendo que se nos descobrissem, nosso amor jamais seria permitido. Papai
jamais daria seu consentimento.
— Ah, vó! Que amor
lindo! — Interrompi-a quando uma lágrima caiu no seu rosto enrugado.
— Foi lindo, minha
filha. Mas acho que você já desconfia que minhas escapadelas não acabaram bem.
— Posso imaginar —
disse, constrangida — Por favor, continue vó.
— Meu pai descobriu.
Alguém contou para ele que nos encontrávamos na calada da noite. Possivelmente
o capataz de papai que, escandalizado, tramou contra nosso amor. Eu sabia do
risco que corria, mas meu desejo foi mais forte. O amor havia me enredado em
suas teias e jamais o esqueceria enquanto eu vivesse. Apanhei de meu pai, que
jamais havia encostado a mão em mim. Mamãe mal olhava em meu rosto. A vergonha
estava estampada em sua face. Criaram-me para ser uma boa moça, temente a Deus
e às leis dos homens. Quase morri quando Clarice foi escorraçada da fazenda
junto com sua família.
Trancaram-me no quarto
com minha dor e vergonha. Fui proibida de voltar à escola e de ver Alda, já que
a acharam responsável por me acobertar. Mamãe chorava sem parar. Mal falava
comigo. Tornei-me prisioneira em minha própria casa. Tudo o que pensava era
nela. Naqueles olhos de céu, gritando meu nome quando nos separaram para
sempre. Gritei, chorei, ameacei fugir de casa, implorei para meu pai trazê-la
de volta, mas ele foi implacável. Disse que me preferia morta a ter uma filha
doente e desonesta como eu. Ameaçou-me internar numa casa de lunáticos a menos
que me casasse rapidamente com um parente distante seu que estava vindo para
fazenda.
— Eu sinto muito, vó.
Que tristeza. — encarei aqueles olhos morenos, cheios de lágrima. Jamais pensei
que estava diante de uma mulher tão doce e tão sofrida. Se os tempos fossem
outros, ela teria ficado com seu grande amor, entretanto, entendo que naquela
época, descobrir-se amando outra mulher, era motivo de vergonha e também de
morte.
— Também sinto, minha
filha. Clarice tentou entrar em contato comigo por carta, usando um nome
masculino. Alda deu um jeito de me enviar as correspondências, através de seu
irmão caçula, mas não pude lê-las. Papai desconfiou e as abriu. Ameaçou mandar
acabar com ela caso a visse ali. Enchi-me de terror. Então escrevi um bilhete e
paguei para a filha da cozinheira entregar a Alda para que enviasse a ela. Não a
queria morta. Eu a amava mais do que a mim mesma. Pedi-lhe que não viesse mais.
Disse que não queria vê-la. Logo me casaria e estava muito feliz. Teria uma
casa linda na cidade e viveria feliz com meu marido. Pedi-lhe que me
esquecesse. Morri nas palavras daquele bilhete. Depois de muito tempo, quando
pude retornar a amizade com Alda, já que ficara esclarecido que de nada sabia, ela
me disse que o semblante de Clarice ficou pálido quando leu minhas palavras.
Ergueu os olhos, fitando o horizonte e disse as palavras que até hoje cortam
meu coração: Ela pode não me querer mais.
Diga a ela, Alda, que vou amá-la para sempre. Sempre. Então fiz a vontade
de meu pai. Casei-me com um homem bem mais velho do que eu.
— Que tristeza, vó –
disse, enxugando minha própria lágrima – A senhora nunca mais a viu?
— Nunca mais. Anos
depois, ao reencontrar Alda, conversamos sobre o passado, sentindo-nos meio
constrangidas. Soube por ela que Clarice também se casou. Seus pais a trataram
da mesma forma que os meus. Ela teve duas filhas, entretanto, seu casamento não
foi feliz. Passou a beber. Seu marido era um bom homem, mas viviam numa
situação difícil, quase de extrema pobreza. Ele o convenceu a ir morar no
Paraná onde tinha parentes que poderiam ajudá-los. Mas ela não ficou lá. Abandonou-os.
Voltou sozinha e, antes de desaparecer no mundo, procurou por Alda uma última
vez. Queria saber de mim. Conversaram e, o que acaba com esse coração velho, é
saber que durante todas essas idas e vindas de nossas vidas, ela manteve o
lenço que lhe dei, com minhas iniciais bordadas, em sua bolsa. Mostrou a Alda
quando lhe procurou, que lhe pediu para me esquecer. Aconselhou-a pensar em sua
família, nas meninas que precisavam da mãe, mas ela não quis saber. Disse-lhe
que nunca me esqueceu e que jamais esqueceria. Que beberia até encontrar a
morte, pois sua natureza não era aquela a que fora imposta.
— Ah, vó! Que tristeza!
Nunca na minha vida iria imaginar um amor assim. — Disse-lhe com tamanho pesar.
— Ela cumpriu a
promessa. Senti em meu coração quando Clarice se foi. Simplesmente soube. Tive
uma boa vida com meu marido, mas nunca o amei. Não como a amei. Cumpri meu
papel de boa filha, acolhendo meus pais em minha casa, principalmente quando
papai perdeu a fazenda e tudo o que nela havia pouco tempo depois que nos separou.
Parece que, de certa forma, o céu conspirou lamentando nosso destino. Às vezes
fico pensando, como hoje, se eu tivesse batido o pé e lutado por ela, minha
vida não teria sido diferente. O que me acalanta é que, mesmo por um breve
período, eu soube o que é amar de verdade e ser amada.
— Nem sei o que dizer,
vó — seus olhos brilhavam na luz tênue do fim de tarde.
— Não diga nada, minha
filha. Viva, apenas. Viva de verdade.
Deixei a velhinha com o
coração pesado. Se fosse comigo teria feito diferente, levando em consideração
as condições daquela época? Talvez também não tivesse força para lutar. Quantas
estórias como aquela não teriam acontecido, antes que nós, mulheres, pudéssemos
ter voz? Quantas não foram massacradas, aprisionadas, para que hoje pudéssemos
continuar ansiando por um lugar melhor na sociedade?
Voltei no dia seguinte,
louca para vê-la. Entretanto, soube que naquela noite
ela havia partido. Encontrei embaixo de sua cama o lenço amarfanhado que a
velhinha segurava nas mãos, enquanto narrava seu desvalido. Abri-o com mãos
trêmulas. Lá havia as iniciais da velhinha e sobre ela, para meu espanto e incredulidade,
a impressão de lábios na forma de um beijo. Não faço ideia de como esse lenço
encontrava-se em suas mãos, uma vez que ela confessara que nunca mais a vira
depois de tê-lo dado a Clarice. Penso que de alguma forma ela veio buscá-la.
Meu coração deseja que as duas finalmente tenham se encontrado.
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Cristina Ravela
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