2x07 - A Decisão
de Ray
Em
meados de agosto, quando
o clima é tipicamente nublado, frio e de temperaturas baixas, na cidade de não
mais de 40 mil habitantes denominada Araxá, no interior do Brasil, um acontecimento curioso
pode ser observado em alguns estabelecimentos de ensino. Na escola de Ensino
Fundamental I chamada “Cantiga de Roda”, com salas de aulas espaçosas, uma
quadra poliesportiva coberta e outra de areia, laboratório de ciências e computação,
bem como uma notável biblioteca, as professoras dos segundos anos começaram os
preparativos das aulas mais essenciais de todo o período letivo. A maioria dos
estudantes já havia aprendido a ler pequenos textos, interpretar o sentido das
frases, escrever de acordo com a norma padrão da Língua Portuguesa e, exceto
uma criança disléxica — portanto, atendida no contraturno com aulas
extracurriculares específicas —, todos conseguiam entender em totalidade a importância das palavras
no mundo em que viviam. E, justamente por isso, eram mais que capazes de
compreender a profundidade da primeira grande decisão de suas vidas: a escolha
de um nome próprio.
Logicamente,
muitos alunos já questionaram familiares e adultos a respeito de não serem
nomeados como outras pessoas, tratadas apenas no coletivo como “pequenos”,
“criançada” ou “meninos e meninas” e
derivados, assim não possuindo uma designação diferenciando-os dos demais. As
respostas que recebiam, porém, estavam longe de serem satisfatórias, geralmente
em torno de “saberão em breve” e “a escola explicará tudo no futuro”.
Dúvidas e desconfianças acabavam surgindo e, agora que já entendiam um pouco
mais sobre as coisas, finalmente eram considerados aptos para descobrir o
grande “segredo”.
Carmen
— a professora de uma das turmas do período matutino — empenhou-se em explicar,
durante as semanas seguintes,
detalhe por detalhe de todo o processo nem tão complicado assim, principalmente
as raízes histórico-culturais. Décadas atrás os bebês recebiam uma designação
logo ao nascer por seus progenitores, saindo da maternidade como “Maria” ou
“João”, sem possibilidade de mudança ao longo da vida, exceto em casos raros
envolvidos em intensas batalhas judiciais. Durante um bom tempo, a situação não gerou
conflitos, mas quando a juventude começou a exigir o poder de exercer a
cidadania em sua plenitude, determinados grupos sociais organizaram-se para
discutir possibilidades, debater questões e refletir sobre o assunto com
pesquisadores, acadêmicos e estudiosos acerca de como poderiam evitar tais
transtornos e, eventualmente, encontrar uma solução satisfatória à toda a
população. Após intensas conversas, reuniões políticas, disputas e tramitações,
no ano de 2027, a
pequena Araxá decretou uma nova legislação: a partir do dia seguinte à
publicação da lei, aqueles que viessem ao mundo nos limites do Município
possuíam o direito de escolher um nome para si quando crescessem o bastante
para aprender a ler e escrever, tornando-se assim, do ponto de vista judicial,
cidadãos conscientes detentores de todos os direitos comuns.
De
tal maneira o direito à vida, saúde, proteção, cultura, viver em ambiente
familiar (recebendo um sobrenome ou dois) ou similares, intrínseco de cada
nascimento, igualmente significa o poder para cada um escolher como deve ser
chamado diante da sociedade. Em outras palavras, decidir sua identidade. Tal
momento ocorre entre 8 a 10 anos — mais tardio, caso houvesse algum impedimento
—, ou seja, exatamente a faixa etária dos estudantes do segundo e terceiro ano
da escola “Cantiga de Roda”. Carmen leu em sala de aula a legislação vigente do
Município, reproduziu vídeos informativos da burocracia e tramitação judicial,
contou a experiência dela anos atrás, ofereceu conselhos e indicações,
respondeu muitas perguntas, reforçando sempre não existir a menor pressão de
agilizar a decisão. Como cidadãos com responsabilidades, direitos e deveres,
dispunham de um bom tempo de reflexão e introspecção, porque apesar de poderem
mudar de ideia e trocar a designação eventualmente, o comum era já apropriar-se
do poder civil a partir de tão importante questão.
As
crianças, animadas com a nova “tarefa” em mãos, não falavam noutra coisa. Com o
passar dos dias começaram a testar nomes até acharem uma preferência. Na terça-feira, uma garota de
cabelos ruivos gostou de Milena; já na sexta-feira durante o intervalo, outra, de olhos claros e
sardas no rosto, optou por Bianca; a filha de uma família com ascendência indígena anunciou Jaciara;
um menino procurou
inspiração em textos antigos e escolheu César; seu amigo seguiu a ideia, querendo Alexander. Vitor,
Sebastiana, Lucas também surgiram, e ao longo das semanas seguintes, cada um tomou sua
decisão. Carmen, orgulhosa, comunicou com satisfação as notícias à coordenação
da escola para iniciar o processo de reconhecimento social em conjunto com as
famílias.
No
fim de novembro, apenas uma garota não havia encontrado o nome ideal — ou era
isso que as pessoas ao seu redor acreditavam. A criança de cabelos dourados,
olhos castanhos, constantemente calçando tênis azuis e usando no pescoço uma
correntinha com pingente de pinguim, ao ser questionada a respeito do assunto,
respondia sempre “estou pensando” e não oferecia maiores explicações, quase
como se escondesse alguma coisa. Um dia, a regente aproximou-se para conversar
durante uma atividade de matemática a fim de conseguir pistas para desvendar o
mistério.
—
Precisa de ajuda, querida?
—
Não, professora.
A
docente olhou para o caderno, colocando o indicador no último enunciado.
—
Quando efetuou essa conta, colocou o número três na coluna da dezena ou
unidade?
—
...ah! — pegou a borracha para arrumar o erro. — Pronto, agora vai dar certo.
—
Muito bem — sorriu, satisfeita. — Soube que um colega da turma B, com quem
sempre te vejo brincando, arranjou um nome. Qual é mesmo?
—
Sam — respondeu, ainda concentrada nos cálculos.
—
Boa escolha.
—
Aham — concordou.
—
E você, querida? Já encontrou um para si? — perguntou suavemente.
—
Não — parou de escrever por um momento.
—
Quer conversar? É difícil, todos nós sabemos, mas às vezes é mais tranquilo se
compartilhar pensamentos... Talvez eu possa ajudar... — ofereceu.
—
Não pode — falou, com uma estranha certeza inabalável.
—
Hmm... — Carmen ficou em silêncio, refletindo. O melhor, no momento, era
esperar. — Tudo bem, eu entendo. De qualquer modo espero que encontre o ideal
para você. E não se esqueça, estarei aqui se precisar de mim.
A
criança, com o decorrer do tempo, percebeu ser a única sem identificação
adequada, inclusive constantemente centro da atenção, orientação e
aconselhamento dos adultos. Detestava os olhares e insistências quase
irritantes, embora entendesse as motivações surgidas de genuína preocupação.
Entretanto, mal completou nove aniversários, dispunha de tempo em excesso para
fazer o tão aguardado anúncio. Resolveu, por isso, continuar em silêncio até
estar confortável o suficiente.
Conforme
o ano letivo terminava, a maioria recebeu as carteiras de identidade com o
reconhecimento da justiça, de acordo com os processos escolares e familiares.
Já em janeiro — o retorno das aulas —, os nomes dos estudantes constariam nos
documentos e na chamada oficial, tal qual desejavam.
Na
primeira semana de dezembro, um dia antes das tão merecidas férias coletivas, a
professora Carmen realizou uma festa de despedida — reencontraria os alunos
pela escola no ano seguinte,
no entanto, não estaria mais encarregada de ensiná-los, deixando a
responsabilidade para outra docente. As crianças brincaram, jogaram em equipes,
trocaram presentes, fizeram guerra de balão de água, pegaram livros para ler
durante o recesso e comeram doces feitos pelas cozinheiras. Foi um dia
extremamente divertido para toda a comunidade escolar. Já na saída, despediu-se
com lembrancinhas, abraços e palavras felizes, sentindo-se satisfeita com o
trabalho feito ao longo dos semestres, um calor no coração de ver todos tão
crescidos. Olhou para a única menina ainda sem nome e desejou, genuinamente,
que retornasse sabendo quem verdadeiramente é.
Muitas
famílias aguardavam do outro lado do portão, mas a criança não teve dificuldade
de reconhecer suas mães. Regina, médica, é uma mulher alta de pele escura,
cabelo preso no topo da cabeça como uma coroa, com roupas de cores exuberantes
e, naquela tarde, argolas douradas elegantes nas orelhas. Enquanto isso,
Betânia, florista, é baixinha de cabelo loiro acinzentado tão curto quanto
possível, vestindo um casaco lilás por cima de roupas de tonalidade neutra.
Juntas formam um casal bonito, principalmente para quem, como sempre, é
recebida de braços abertos.
—
Parabéns, minha menina! Terminou mais um ano e agora é só alegria! — Regina
bagunçou os cachos soltos num gesto de afeto, curvando-se para beijar-lhe a
testa.
—
Já sentindo saudade da escola ou dos amigos? — Betânia perguntou, pegando a
mochila dela e jogando-a por cima de seu ombro.
—
Sam me convidou para uma visita no sábado.
—
Irão se divertir muito, tenho certeza — a médica afirmou. — Bom, o dia de hoje
pede uma comemoração adequada. O que quer fazer, pequena?
—
Hmm... — pensou por alguns segundos. — Milkshake?
—
Gosto da sugestão — Betânia olhou para a esposa. — Sabe se aquela sorveteria
perto de casa está aberta tão cedo?
—
Se não me engano, sim — opinou. — Podemos ir andando e descobrir. Qual saber
vai escolher, filha?
—
Morango.
—
Com cobertura e granulado colorido? — estendeu a mão na direção dela.
—
Muito granulado colorido — respondeu e, antes de caminharem os poucos
quarteirões necessários para chegarem no prédio onde moravam, olhou para as
adultas com determinação. — Mãe, mamãe, tenho uma coisa a dizer para vocês.
As
duas mulheres entreolharam-se, compreendendo imediatamente o tom de voz de quem
vai contar algo importante. Ambas mudaram a expressão facial, prestando muita
atenção às próximas palavras, com consideração e respeito.
—
Eu escolhi o meu nome — declarou.
—
Ah! — a florista mal conseguiu conter a surpresa e a alegria. — Que notícia
maravilhosa! Mais que isso, é incrível! Esperamos tanto por este momento...
Estamos tão orgulhosas de você! — elogiou, radiante.
—
Já contou para mais alguém? — a mais alta começou a questionar.
—
Sam sabe.
—
Comunicou a escola?
—
Ainda não.
—
E decidiu sozinha?
—
Sim.
—
Descobriu quando?
—
Um tempo atrás.
—
E por que não avisou a gente antes? — escutou a esposa limpar a garganta,
encarando-a com certa intensidade. — Bom, de qualquer jeito, estamos aqui, ansiosas
para te ouvir.
A
menina olhou para suas mães por longos instantes, como quem encontra em si
força e coragem. Então, finalmente, revelou sua escolha.
—
Meu nome é Arthur a partir de agora.
Regina
e Betânia demoraram alguns segundos para compreender o que escutaram. A
realização atingiu em cheio, como um balde de água fria cheia de cubos de gelo.
Incapazes de colocar ordem em seus pensamentos, como se não soubesse o que
fazer perante a notícia, encararam a criança que, sentindo o ar estranho ao seu
redor, abaixou os olhos. Mudou o peso do corpo de um pé para o outro. Mordeu os
lábios. Agarrou seu colar com pingente de pinguim. Quando as lágrimas ameaçaram
surgir, a médica ajoelhou-se ficando, assim, um pouco mais baixa que a criança,
segurando em suas mãos enquanto fazia contato visual.
—
Você sabe o quão importante é essa decisão?
—
Sei, sim.
—
Você sabe como não há pressa?
—
Sei, sim.
—
Sabe ser um direito seu demorar o tempo que for necessário?
—
Sei, sim.
—
Você sabe que, se se arrepender mais tarde, tem até os dezoito para mudar de
ideia?
—
Não mudarei — respondeu, como quem tem toda a certeza do mundo.
—
Você... — uma mão em seu ombro foi aviso o bastante para não insistir. O toque
fez Regina perceber o quão invasiva estava sendo, suspirando antes de assentir.
— É essa a sua escolha?
—
Sim, mãe.
—
Arthur Oliveira? — Betânia perguntou, adicionando o sobrenome da família.
—
Arthur Oliveira — repetiu, sem hesitar. — É quem eu sou. É quem eu sempre fui.
É quem eu sempre serei.
As
mulheres nada disseram, ainda absorvendo o impacto da notícia. Inesperado? Sem
dúvida. Indesejado? Longe disso. Naquele momento, aperceberam-se do erro que
cometeram. Pensavam ter filha uma menina e, agora, confrontam-se com a verdade.
Eram
mães de um garoto simplesmente incrível.
—
Tudo bem, minha... — Regina parou, bem a tempo de corrigir-se. — Meu menino.
Tudo bem. Boa escolha. Um nome tão grandioso e honroso quanto você é.
—
... você acha? — ele levantou o rosto, uma frágil esperança nos olhos
castanhos.
—
Definitivamente! Nós queremos que saiba, filho, que não importa o que aconteça,
estaremos sempre ao seu lado para te amar, te proteger, te apoiar — Betânia
proferiu, sincera. — Porque nosso amor é tão forte que moveremos montanhas,
mudaremos o curso dos rios, iremos até o sol, as estrelas e o universo por
você. Nunca se esqueça.
—
Amo vocês também — falou, emocionado.
Arthur
foi praticamente esmagado num abraço apertado de suas mães, porém não reclamou,
sentindo-se aliviado com as palavras delas. Os pensamentos cheios de
inseguranças e o genuíno medo que cresceram nas últimas semanas diante das
respostas que receberia evaporaram, como se não existissem em primeiro lugar.
Podia respirar tranquilamente, agora tendo todo o apoio necessário sua família.
—
Mais um motivo para comemorar! — a mulher mais alta falou, sorrindo para o
filho. — E neste fim de semana, amanhã cedo, vamos ao cartório iniciar o
processo de reconhecimento social. Até o fim deste mês receberá sua nova
identidade e, quando retornar no terceiro ano, todos irão te chamar do jeito
certo.
—
E alguém vai tomar muito
sorvete de morango — a florista completou, olhos suaves e cheios de amor para a
criança. — Está preparado, Arthur?
—
Sim. Estou pronto.
Segurando
a mão de cada uma das mães, juntos, caminharam até a sorveteria. Arthur refletiu
sobre como Sam — a criança que escolheu um nome neutro propositalmente — estava
certa, afinal de contas. Não havia o que temer, não enquanto Betânia e Regina estivessem
ao seu lado apoiando a tão importante decisão.
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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