FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 11
– E daí? Que ouça! Quem manda nessa cidade sou eu, portanto, falo o quiser; aliás, aproveitando, o que a senhora fez no cabelo?
– O senhor gostou?– anima-se. – Fiz uma escova.
– Ficou parecendo um tamanduá de bigode! – escracha. – Não tem vergonha de sair à rua com esse topete? Se eu fosse a senhora – Deus me livre guarde, dava uma boa rastelada nessa juba. De espantalho, já basta minha sogra... Ave! A bicha é feia pra burro – gargalha. – Hum! Mas deixemos de história, peça ao doutor Planta, quer dizer, Paineiras, entrar.
Após cumprimentá-lo, Tanaka encosta a porta.
– Deu certo o plano B? O motorista já bateu com as botas?
– Ainda não posso lhe confirmar, mas tudo estava bem encaminhado, aliás, precisei molhar a mão do Zelão, um antigo apadrinhado meu, para que Joaquim fosse posto na pior cela da delegacia. O problema é que o delegado de lá é um desses caxias, contenta-se com o salário do Estado e pode ter quebrado nosso esquema. De qualquer forma, receberei ainda hoje uma ligação para saber como andam as coisas.
– É bom não falhar novamente, delegado, porque minha paciência está por um fio... O senhor não está se empenhando muito como eu gostaria!
– Faço tudo o que está ao meu alcance!
– É POUCO! FAÇA O IMPOSSÍVEL, SE PRECISAR! – diz, com veemência.
– Sabe, até agora eu não entendo o que se passa... Por que querem tanto a cabeça daquele coitado? Acho que deveriam se preocupar era com o doutor Rubens, ele sim é perigoso.
– O senhor se esqueceu de quem dá as ordens aqui, doutor Plan... Paineiras? Parece o Lula, é cheio de dar palpites! E sabe onde vão parar os palpiteiros? A sete palmos abaixo da terra.
– O senhor está me ameaçando? – desafia.
– Entenda como quiser! Uma coisa eu lhe digo, se não der um jeito logo naquele sujeito, a Corregedoria da Polícia receberá aquele DVD, lembra-se? Imagine o Secretário da Segurança Pública com a mulher dele no quarto assistindo a um vídeo em que um de seus delegados do interior mantém relacionamento sexual com uma garotinha de doze anos. O escândalo varrerá o Estado, cairá na boca do Jornal Nacional e o senhor acabará também no xilindró, porque, só para lembrá-lo, pedofilia é crime, e na cadeia é sentença de MORTE... Temo só em pensar no que a bandidaiada fará com o senhor! – espezinha.
– O senhor não tem o direito de falar assim comigo, prefeito!
– Nem o senhor de sair à caça de menininhas para saciar o desejo de homem, por sinal, irracional, DELEGADO!
– Certo! – morde o lábio inferior com ódio. – Até o final da tarde lhe servirei a bandeja com a cabeça daquele criado.
Uma cantoria religiosa interrompe a conversa dos dois, atraindo-os à sacada.
– O que é isso? Nunca vi tanto pobre na vida! Ave! Dá até arrepio! – diz Tanaka.
– Prefeito, prefeito, o povo está furioso! – agita-se Adelaide, entrando no gabinete. – O senhor precisa fazer alguma coisa!
– E por que deveria? Ave! Quero que essa pobretada se exploda, como diria o deputado Justo Veríssimo² – famoso personagem de Chico Anysio –, e bem longe de mim! Só em vê-los, me dá urticária.
– Senhor – diz a assessora –, escutei na rádio agora, a mulher de um líder comunitário da periferia, grávida de seis meses, morreu soterrada no desabamento de um dos morros da região.
– E eu com isso? Se para cada pobre que morrer resolverem fazer uma passeata, tô lascado!
– Senhor – repreende-o com o olhar –, o homem perdeu a mulher, entende?
– Tá, tá, mande lá uns santinhos meus para confortá-lo.
O cortejo caminha para frente da prefeitura. Liderando-o, está Zé dos Cobres, que segura a primeira alça do caixão roxo, feito de papelão, amparado por milhares de cidadãos principienses, muitos deles desabrigados pela enchente do Rio Feio. Parte dos presentes canta hinos religiosos, enquanto os mais alvoroçados pedem justiça.
Os comerciantes baixam as portas com a aproximação da passeata, temem saques e agressões de toda natureza.
– Eles estão com os ânimos exaltados – observa a assessora. – E não é para menos, muitos perderam os únicos bens que tinham, alguns, como o tal líder, a própria família. O senhor tem que ajudá-los.
– Ajudá-los? Isso é trabalho para o delegado. Prenda todos, inclusive a defunta! Onde já se viu uma arruaça dessas e em minha cidade? NUNCA!
– Como posso detê-los? São milhares! Meus homens jamais dariam conta, aliás, esqueceu-se de que a delegacia está em reforma? Quem deve pará-los é o senhor! – revolta-se. – Para que servem os traquejos da política? Tenha certeza, são para lhe garantir a glória em momentos de turbulência como esse.
– Mas... mas é um covarde mesmo! Hum! Tudo eu! Pois me dê a garrafa de saquê!
– O senhor vai beber de novo? – surpreende-se a funcionária. – E numa hora dessas?
– Como é xucra, dona Adelaide! Vou distribui-la aos pobres! Por bebida, essa gente só falta vender os filhos – diz, retornando ao gabinete.
– Melhor, busque todas as garrafas que estão no estoque, enquanto dou uma retocada na maquiagem...
Abre a gaveta, retira uma cebola das grandes, corta-a com um canivete e a esfrega sobre os olhos.
– O que está fazendo, seu Tanaka? – espanta-se o delegado.
– Chorando... Estou abalado com toda a desgraça que se abatera sobre a bela Vila dos Princípios. Coitada da mulher do...do...como se chama o indivíduo?
– Zé, pelo que ouvi.
– Snif! Coitada da mulher do Mané...
– ...Zé... Zé dos Cobres – corrige-o, Adelaide, com seis garrafas da bebida nos braços.
– Que seja – continua. – Coitadinho do Zé... Sniff! Estou tão triste pela perda de sua mulher. Sniff! Sniff!
O delegado e a assessora surpreendem-se com a improvisação do prefeito que, a julgar por suas últimas palavras e pelo tom de voz, não havia como negar, aparentava mesmo comoção com a morte da desconhecida.
Quando o cortejo para diante da sacada, Tanaka os recebe com acenos, dizendo:
– POVO DE VILA DOS PRINCÍPIOS, SOFRO COM VOCÊS A MORTE DA ESPOSA DO SENHOR MANÉ, DIGO, ZÉ... ZÉ DAS CABRAS, COBRES – corrige-se, graças a Adelaide.
– É REALMENTE UMA TRAGÉDIA PARA NOSSA CIDADE. SNIFF! MAS O QUE SE PODE FAZER? CONTRA A VONTADE DE DEUS NINGUÉM PODE!
– Toda essa desgraça é culpa do senhor. Prometeu-nos, durante a campanha eleitoral, reforçar as encostas dos morros, mas a promessa não saiu do papel, como tantas outras. Agora estou sem casa, sem mulher, sem meu filho... Perdi tudo! – desabafa, aos berros, o pobre Zé.
– Principiense, eu tentei, tentei de tudo para que o Governador liberasse o dinheiro para aquela obra, mas não foi possível, a crise mundial impediu qualquer investimento do Estado. Sniff! Estou tão triste quanto você! Sniff!
– Não queremos sua pena, apenas que cumpra o que prometeu. Veja, mais da metade desse povo está sem casa e o que fará para amenizar a dor deles? Também colocará a culpa na tal crise?
– Que dor estou sentindo com tudo isso... – vira-se para Adelaide – ... De onde surgiu esse cabra? O vocabulário dele não é de gente chula!
– É um líder comunitário – cochicha a funcionária, dono de um ferro velho, daí o apelido de Zé dos Cobres!
– Pois seu Zé dos Cobres – mira o popular, eu PROMETO, todos terão novas casas em breve, muito breve, nem que eu tenha de falar pessoalmente com o Presidente da República.
O povo aplaude, iludido por outra mentira.
– Se há algo de que mais amo nessa vida, são VOCÊS, caros principienses. E para provar que o meu amor é sincero, descerei para dar um abraço de solidariedade em cada um... – retira-se da sacada. – Venham, venham, tragam as garrafas... – pede ao delegado e à assessora.
– Esse sujeitinho verá com quantos cobres se faz a política. Enxerido! Desce as escadarias e ao encontrar os primeiros moradores, faz questão de abraçá-los e de lhes servir uma dose de saquê.
– Tome uma aí, meu filho! É de graça! Vai ajudar a abrir o apetite... ops, quer dizer, suportar a dor.
– Olhem, o prefeito está chorando! Comoveu-se com nossa tragédia! – grita uma mulher em meio à multidão.
– É o pai dos POBRES! – diz um ancião, comparando-o a Getúlio Vargas.
– Principienses – sobe em um caixote improvisado –, para mostrar que não sou só mais um prefeito que passou por essa cidade...
– PARE COM ISSO! – exige Zé, transtornado com toda aquela encenação. – O SENHOR OS ESTÁ ENGANANDO COMO DAS OUTRAS VEZES. COMO PODE? ISSO CHEIRA A MAU CARATISMO! NÃO LHE DÓI A CONSCIÊNCIA?
Tanaka arregala os olhos e tenta se defender, mas o líder da plebe o interrompe com vigor.
– E AS ENCHENTES QUE TAMBÉM PROMETEU COMBATER? A MAIORIA – aponta para seus seguidores – PERDEU SUAS CASAS PORQUE O SENHOR NÃO DESASSOREOU O RIO FEIO, COMO HAVIA PROMETIDO! E AGORA, PREFEITO?
Todos se calam. O silêncio é sepulcral.
– Encontramos o homem ideal para duelar de igual com o vereador George Dumont nas eleições desse ano! – conversam duas figuras, do outro lado da rua, à porta de um botequim. – A oposição agora terá candidato à altura!
– O que está pensando em fazer? – pergunta Maria, vendo doutor Rubens a rigor, com as malas prontas em cima da cama.
– Uma viagem, Maria! – diz, sob os efeitos da ressaca.
– De repente? Mas para onde? Quantos dias passará fora?
– Ainda não sei, o que quero mesmo é deixar essa cidade, esse país; talvez eu vá para a Europa, Ásia ou quem sabe Oceania... O que não quero é ver o sol nascer novamente aqui! – diz, tentando dar o nó na gravata.
– E seus pacientes, como ficarão? O que lhes direi?
– Invente uma desculpa qualquer, não tenho cabeça para pensar nisso agora – impaciente, retira a gravata.
– Venha cá – pede a criada –, deixe-me ajeitá-lo! O senhor está muito estranho, nem se parece com aquele homem feliz de antigamente.
– Eu nunca fui feliz, Maria! – declara. – Apenas encenava! É diferente!
– Pois encenava bem! Até acreditei! – confessa. – Essa sua viagem repentina nada tem a ver com a visita de Ernestina ou tem?
O homem se afasta até a janela, de onde é possível ver a prefeitura.
– O que está havendo lá? – desconversa. – O que são aquelas pessoas? Por que estão em frente à prefeitura?
– Bem, não sei ao certo, mas parece que estão revoltadas com a morte da mulher de um líder da periferia.
– E o que a prefeitura tem a ver com isso?
– A mulher estava grávida e morreu soterrada durante o desabamento de um morro; algo que o prefeito prometeu alicerçar enquanto candidato.
– É, a mentira tem voo curto! Espero que depois dessa tragédia, Tanaka respeite o povo que o elegeu.
O celular toca. Maria o pega de cima da cama, dizendo:
– É dona Catharine Dumont! Vai atendê-la?
– Catharine? – arrepia-se. – Não, não, deixe tocar...
– Doutor, é dona Catharine Dumont, esposa do vereador... O senhor NUNCA lhe negou atendimento, o que há?
– CRISTO! SERÁ QUE UM HOMEM NÃO TEM O DIREITO DE TOMAR AS DECISÕES QUE MAIS O AGRADEM? – descontrola-se. – QUERO PODER ERRAR COMO TODO MUNDO, CANSEI DE SER CERTINHO! ENTENDA!
O telefone fixo toca em seguida. Maria o fita com curiosidade.
– E agora, o que faço, senhor? Deve ser ela.
Rubens corre as mãos pelos cabelos encharcados de suor.
Prefeito Tanaka Santuku faz novas promessas ao povo sofrido de Vila dos Princípios, para a revolta de Zé dos Cobres...
– Joaquim foi esfaqueado! – diz o delegado de Vila Bonita a Ernestina.
– Mas... mas como isso aconteceu? Por que lhe fizeram isso? Ele é um homem tão bom! – os olhos se enchem de lágrimas. – E como ele está, doutor? Morreu?
– Venha comigo, dona, vou abrir uma exceção, porque esse não o horário de visitas... Venha! Venha!
Ela é conduzida à enfermaria, no final do corredor. Sobre uma maca está o motorista, com um corte no abdômen. Levado ao hospital, o sangramento fora contido com oito pontos, mas como não havia leitos públicos disponíveis, retornou à delegacia, onde agora respira com dificuldades, enrolado num cobertor embolorado.
– O que a-acon-con-teceu com você, bom amigo? – aproxima-se, enternecida. Ao tocá-lo, percebe que a temperatura dele excede à normalidade. – Está com febre, doutor! – desespera-se. – Ele morrerá se não retornar com urgência ao hospital.
– Não há vagas para os inocentes, quanto mais para os homicidas.
– Mas...mas ele é inocente! – enraivece a criada com o comentário preconceituoso do oficial.
– Até que provem o contrário! – revida.
– Ernestina? É você mesma? Não acredito! – atrai a atenção da mulher. – Veio me tirar desse lugar? Veio? – tosse. – Por que não ouvi minha mãe? Quero sair daqui e correr para o colo dela.
– Ele está queimando em febre, o senhor tem de fazer algo, delegado?
– Já lhe disse, dona, não há vagas nos hospitais.
– Então ele deve morrer? É o que está me dizendo? Por que é acusado de um crime, não tem direito a um tratamento digno como todos os outros? Negligência também é crime!
– Olhe, dona, se me desacatar novamente, dar-lhe-ei voz de prisão! – ameaça.
– A verdade dói, delegado! Dói mais do que uma facada! E assim como todos os outros que exortam o preconceito, o senhor está enganado. Esse homem tem caráter e amigos como eu, que jamais lhe faltarão! Posso lhe assegurar, ele não morrerá aqui!
Saca-se do celular e comunica à patroa os acontecimentos.
– A senhora tem de salvá-lo! Que não venha vê-lo, mas abandoná-lo seria desumano. Por favor, por mim, por nossa história, estenda-lhe as mãos, dona Catharine!
– Ernestina, acalme-se! Estou tentando falar com o Rubens para que ele faça uma visita a Joaquim, mas não sei o que acontece, ele não atende nem o celular, nem o telefone fixo.
A criada sente o peso do remorso.
– Está aí, Ernestina? – indaga, percebendo um silêncio repentino.
– Fale!
– Sim, estou senhora!
– Verei o que posso fazer! Aguarde!
Desliga o telefone e senta-se numa cadeira.
– Eu jamais a deixarei sozinha nesse velório, dona Catharine! Sei o quanto sofre com a morte de Alana, mas seja forte, nada acontece por acaso... – relembra a mulher.
– O que será de mim, Joaquim? Estou só nesse mundo, sem amigos...
– Sem amigos não, eu estarei sempre do seu lado.
– E eu também! – diz, abandonando as lembranças. – Não vou lhe faltar num momento como esse, como também não me faltou quando mais precisei. Seria injusto de minha parte! Que se danem George e todos os outros... Uma vida depende de mim!
Grita por Moacir.
– Venha comigo! Precisamos resolver um problema.
– Dê-me aqui essa porcaria! – resmunga Rubens, bastante impaciente, vendo o celular tocar novamente.
– Não irá mesmo atender a ligação? – insiste Maria. Contrariado, responde à empregada:
– Já disse que não! Agora me ajude com as malas, o avião para São Paulo partirá dentro de alguns minutos.
– O senhor está sendo negligente! Como pode deixar à deriva uma de suas mais antigas pacientes? Decepciona-me tanto!
Os dois discutem.
– Se não quer me ajudar com a bagagem, tudo bem, mas quando eu voltar, teremos uma boa conversa – diz ele.
Abre a porta e quase grita de espanto. À sua frente está Catharine.
Maria acompanha com atenção todos os gestos do patrão.
– Posso entrar, Rubens? Precisamos conversar! – pede Catharine.
– A-agora? Mas... mas estou...quer dizer, bem, tenho de viajar, ministrarei uma palestra aos residentes do Hospital das Clínicas de São Paulo. Infelizmente, nossa conversa ficará para outro momento. Desculpe!
– O senhor não irá para o exterior? – interfere a empregada, para o desespero do homem, que a fuzila com os olhos.
– Como pode viajar, se é a única testemunha do suposto crime? Comunicou as autoridades?
– Isso não vem ao caso, até porque, como você mesma disse, sou a testemunha, não o acusado. E que eu saiba – seu tom de voz é agressivo, apenas quem está sob a custódia da Justiça tem a liberdade cerceada, o que não é meu caso.
– Rubens, o que há? Apenas fiz uma pergunta, não uma acusação! Por que age com tanta violência? Você nunca foi assim.
– Sempre há uma primeira vez! – completa o médico, fugindo dos olhos dela.
– Preciso de você, não me falte nesse momento, por favor!
– Já disse, terei de viajar, aliás, não posso viver em função de sua família... Basta uma dor de cabeça para me tirarem da cama ou mesmo mudarem meus planos. Se precisa de ajuda, aqui está o cartão – retira do bolso – de outro renomado clínico geral da cidade.
– Não compreendo, você é o médico de minha família há décadas, viu-me nascer, crescer, casar, e, em momento algum, negou-me seus préstimos; de repente, sabe-se lá o porquê, deixa de atender minhas ligações, meus pedidos de socorro... O que lhe fiz, homem, para me tratar assim? O que recebe não é o suficiente? Então faça o seu preço que eu o cobrirei.
– Não insista, já disse, tenho de viajar... Se me der licença, tenho de carregar as malas até o carro.
– Rubens?! – espanta-se com a frieza dele. – Deixe-me ao menos entrar, contar-lhe o que está acontecendo.
– É melhor não, meu voo partirá daqui a alguns minutos.
– Entre, dona Catharine! – interfere Maria, importunada com o descaso do patrão. – Ele é de lua, um dia está sorrindo, noutro dando patadas, não é mesmo doutor Rubens Arraia? – pronuncia o nome dele com indignação.
O médico dá um passo para trás, permitindo que a mulher adentre a residência. Antes de fechar a porta, inspira com vontade; o embate com a única filha é inevitável.
– Seja breve, o que a traz aqui? – sua aspereza a inquieta.
– Joaquim! Ele foi esfaqueado e está entre a vida e a morte! Não há quem possa lhe prestar socorro, os hospitais estão sem vagas.
– Esse é o problema de todo pobre nesse país: quando adoece ou sofre alguma agressão inesperada do destino, vai para o C.T. I ou para o cemitério. Hum! Tome o telefone do prefeito daquela comarca e solicite sua intervenção. Use meu nome – se for o caso, ele me deve muitos favores – diz, simulando desinteresse pelo caso.
– Vá atendê-lo, doutor! O que lhe custa? – Maria reforça o pedido.
– Cale a boca! – a ressaca lhe devora os sentidos. – Cale a boca! Já disse que não posso...
– Como me decepciona, Rubens! Pensei que fosse humano, de um coração belo, de uma alma pura. Estava errada! É como todos os outros, incapaz de estender a mão a um semelhante! – confessa a herdeira dos Dumont, com os olhos tomados por lágrimas. – Joaquim morrerá e por negligência sua.
– Minha?!! Não! Em nenhum de meus afazeres consta que devo atender a um reles motoristazinho – a vontade é a de lhe revelar todos os segredos daquela carta; entretanto, contém-se, para o bem dela. E, ao invés de acariciá-la, chamá-la de filha, opta por maltratá-la.
– E ajudar o próximo não faz parte de seus afazeres, aliás, de seu juramento médico? – pergunta Maria, entrando na conversa, para o profundo descontentamento do homem, que pede, uma vez mais, que ela se cale.
– Ele está falando como George! – constata Catharine.
– Tens a audácia de me comparar àquele homem vil? Coitada! Não consegue discernir o belo do rústico, o joio do trigo.
– Por que me ofende? – magoa-se. – Pensei que fosse meu amigo, meu melhor amigo; mas o que está a minha frente é apenas a imagem desmistificada de uma fantasia, que de tão cultuada, às vezes parecia real. Talvez George esteja mesmo certo, você jamais gostou de mim, obteve apenas prestígio com seus préstimos a minha família. Quem não desejaria o status de “médico dos Dumont”?
Um resquício de pena recai sobre os ombros do homem, que ainda assim se mantém firme, porque se esmorecesse, os podres de um passado poderiam condená-la à dor eterna.
– Como é tola, menina! Acha mesmo que a ladeei todo esse tempo para usufruir de seu sobrenome? Não me vendo por tão pouco! Hum! Você não me conhece!
– Não mesmo! – rebate a filha de Franceline, para o espanto dele.
– Você não cresceu, é uma garota mimada, basta estalar os dedos para que tudo lhe caia às mãos como num passe de mágica. Não lhe cansa ser assim tão frágil, tão pedante? – aproxima-se de uma adega. – Você sofre de egocentrismo; é como se tudo girasse ao seu redor e as pessoas só existissem para servi-la. Olhe, vá embora, antes que eu acabe falando mais bobagens! Ah, me esqueça! Destituo-me do cargo de médico de sua família... – pega a garrafa de vinho do Porto, enche o copo até a boca e o entorna de uma vez.
– Doutor, o que faz? – intervém a criada. – O senhor está sendo grosseiro!
– Cale a boca, serviçal, se não a demitirei!
– Pois faça; quero ver! O senhor não merece o nosso apreço.
– Você não é o Rubens que conheço, é outra pessoa, como se quisesse me ver mal, destruída. Cadê todo aquele carinho, aquele afago? – desola-se a esposa de George. – O que o fez mudar tanto?
– Quer mesmo saber? – Maria entra na conversa de novo. – Ele ficou assim depois da visita de Ernestina.
– ERNESTINA? – espanta-se. – Como assim? Ela esteve aqui? O que queria?
Rubens engasga com o segundo copo ao ouvir o nome da criada.
Encerra com a música (Dio Dei Buoni - Agnaldo Rayol).
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