Flor-de-Cera: Capítulo 12 - WebTV - Compartilhar leitura está em nosso DNA

O que Procura?

HOT 3!

Flor-de-Cera: Capítulo 12

Novela de Carlos Mota
Compartilhe:




FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 12


– Doutor, o que faz? – intervém a criada. – O senhor está sendo grosseiro!
– Cale a boca, serviçal, se não a demitirei!
– Pois faça; quero ver! O senhor não merece o nosso apreço.
– Você não é o Rubens que conheço, é outra pessoa, como se quisesse me ver mal, destruída. Cadê todo aquele carinho, aquele afago? – desola-se a esposa de George. – O que o fez mudar tanto?
– Quer mesmo saber? – Maria entra na conversa de novo. – Ele ficou assim depois da visita de Ernestina.
– ERNESTINA? – espanta-se. – Como assim? Ela esteve aqui? O que queria?
Rubens engasga com o segundo copo ao ouvir o nome da criada.


– Maria, já disse, vá para a cozinha... Ela não sabe o que diz, Catharine! É a velhice chegando.
– Sei sim! Ernestina esteve aqui ontem à noite, depois disso, ele virou o capeta, dona Catharine. Acho que vou chamar o padre para exorcizá-lo!
– Está demitida! – sentencia o patrão. – Pegue suas coisas e dê o fora de minha casa. Fora!
– Não faça isso com ela, por favor! A culpa é minha, portanto, desconte em mim o seu nervoso! – pede a herdeira dos Dumont.
Maria sobe a escadaria contrariada. Aquele homem, outrora amável, agora nega socorro aos que mais o prezam, e ainda tem a coragem de mentir para justificar sua atitude.
– O que Ernestina veio fazer aqui?
– Então me fale a verdade, Catharine! – desconversa, aproximando-se, com o olhar dominado pela curiosidade. – O que você tem com Joaquim? Ele é apenas um criado seu ou algo a mais? Seu marido sabe que está aqui, pedindo para que eu salve a vida dele? Sabe?
Ela não responde.
– Ah, faça-me o favor, mulher – diz, pegando-a pelos ombros –, quantas humilhações ainda terá de sofrer para perceber que me cansei de você?
– Rubens?!! – lágrimas descem-lhe o rosto, desordenadamente. – O que está fazendo? Solte-me, está me machucando.
– “Se um dia tivermos um filho, dar-lhe-ei tanto amor, Franceline, que nunca sentirá o vazio que ora mora dentro de mim. Farei de tudo para que seja o mais feliz possível! E se tivermos uma menina, então? Acho que deixarei até o emprego para paparicá-la. Sou muito apegado às crianças, quando as vejo, tenho vontade de brincar... É verdade! É como se eu me sentisse VIVO, entende? – sua singeleza é embriagante.
– Jamais deixaria um filho meu sofrer, seria o pai mais perfeito...” – alça do baú do tempo um dos momentos mais íntimos com Franceline. – CRISTO! O que estou fazendo? – cai em si.
– Não tenho nada com Joaquim, se é isso que quer saber – diz, libertando-se.
– Eu o flagrei a beijando no quartinho de Ernestina! Não minta para mim, sei de tudo.
– Tudo o quê? Sou uma mulher casada, respeito meu marido, o brasão de minha família.
– Então o que faz é por pura caridade? Palmas para você, acaba de ganhar o troféu Madre Teresa de Calcutá¹. Poupe-me de seu cinismo, por favor, porque diante de ti está um homem vivido, que aprendeu com a vida todas as traquinagens dos amantes.
– Eu não tenho nada com ele! Apenas não posso deixá-lo entregue própria sorte. Se não ajudá-lo, quem mais ajudará?
– Ó, Catharine, não minta para mim nem para ti, pois o ama, não é isso? Trai seu marido com aquele coitado, não é? Fale! Por isso todo esse interesse em salvá-lo!
– Não!!! – descontrola-se. – Não!!! Nunca traí meu esposo!
– É como sua mãe... Tens um amante!
– Como pode dizer tal coisa? Por acaso era confidente daquela “mulher de rua”? – estranha.
– E quem em Vila dos Princípios não sabe que seu pai tornou-se desgostoso após descobrir a traição de dona Franceline? – encena um deboche típico dos urubus de plantão. – Na época, a cidade pegou fogo!
Catharine abaixa a cabeça, surpresa com a revelação do homem.
– É como ela, Catharine? Traiu George com Joaquim, não foi?
– Como pode fazer tal comparação? Aquela peste desgraçou nossas vidas; meu pai estaria vivo, se ela tivesse contido o cio que lhe corria às veias – há muito rancor em suas palavras.
– Você está se referindo a sua mãe? E com essas palavras? Como pode? Ela a amava mais do que tudo nessa vida, sou testemunha disso. Quantas vezes a socorri depois de ser espancada por Dilermando... E sabe por quê? Ele dizia que você, menina, havia trazido dor àquela casa! E ela nunca aceitou isso!
– Mentiroso!!! – afirma, enraivecida. – Meu pai me amava; já ela, só pensava em se deitar com outros homens, ou Vila dos Princípios também não sabe disso? – desafia. – Ele era e permanece sendo tudo para mim! Aliás, depois de Alana, ele foi a pessoa que mais amei nessa vida.
–Vejo que conhece pouco seu pai! – lamenta-se o doutor.
– Você quer me confundir, deve ser isso!
– Longe de mim!
– Então, por que defende aquela criatura?
Rubens não se contém e faz outra comparação:
– Tens os olhos, os lábios e o modo de ser iguais aos dela; falta-lhe a força arrebatadora que a levou para os braços do homem que tanto a amou nessa vida.
– Do modo como fala, até parece que conheceu esse homem... – insinua, com os olhos reluzentes de curiosidade.
– Está enganada! O nome do infeliz foi para o túmulo com sua mãe, ou se esqueceu? – segura-se outra vez, para não se revelar.
– Quem pensa que é para falar assim comigo?
– O seu melhor amigo ou não foi assim que me intitulara?! Não seria melhor confessar ao mundo que ama um chofer a sofrer nas mãos daquele marido psicopata? Pobreza não é doença, querida! Pelo contrário, são os pobres que vivem o verdadeiro amor, porque entre eles não figuram seres ardilosos como a ganância e o poder; apenas a vontade de ser FELIZ!
– Vou-me embora, chega de tanta humilhação.
– Não! – segura-a pelo braço. – Agora você me ouvirá!
– Largue-me, já! Sou uma DUMONT e exijo respeito!
O celular dela toca.
– Dona Catharine, pelo amor de Deus, corra, Joaquim está convulsionando.
Ela desliga o telefone e cai ao sofá, gélida como os mortos. Rubens quer tocá-la, senti-la sua, revelar o seu segredo, mas o receio – ah, o receio, aquele verme que mora na cabeça dos fracos – o impede, até porque, ela já não é mais sua filha... É uma legítima Dumont, com a graça de Franceline e a arrogância de Dilermando. Se lhe dissesse tudo, um terremoto varreria Vila dos Princípios e o escândalo não teria fim. De um sobrenome de que tanto se gaba a uma simples Arraia... Que sina a sua!
– Eu confesso... – diz, cabisbaixa.
– Confessa o quê? – é apanhado de improviso. – O que está me dizendo?
– Eu amo Joaquim! Era isso que queria ouvir, não era? – indaga, com os olhos mergulhados na dor. – Eu o amo! Por favor, agora o salve! Ele está muito mal! Precisa de sua ajuda. Por favor! – suplica. – Por favor!
Ele corre as mãos pelo cabelo encharcado, dá um passo para trás, olha-a com o amor de um pai... Que felicidade ouvir aquilo! Estava enganado, ela não era apenas uma Dumont; sua essência também corria dentro dela! Era visível por meio daquele medo em cujas raízes não havia o horror, mas a eterna vontade de amar e de ser feliz dos Arraia. E isso o esperançava! Quem sabe um dia não poderá chamá-la de filha e ter o prazer de ser chamado de pai.
– O que está me dizendo, Catharine?
– Que amo Joaquim e ele está morrendo... – levanta-se, para cair em seguida, abatida por uma vertigem.
– Querida, acalme-se! Venha cá!
Ao socorrê-la, percebe outra mancha roxa em seu colo.
– O que é isso?
– Não sei, estão aparecendo em todo o corpo – responde a mulher. Pensamentos ruins enchem-no de preocupação.
– Ajude-o, por favor! – suplica mais uma vez.
Ele se refugia dentro de si por alguns segundos, depois sobe as escadarias, onde encontra Maria.
– Isso é do senhor? – diz a mulher, com a carta em mãos.
– Por favor, dê-me isso! – pede, sem responder à pergunta.
– Cuidarei dela, enquanto o senhor socorre o tal criado – os olhos da mulher parecem águias atrás de presas, para o pavor do homem, que teme a revelação de seu segredo.
Estacado ao corredor e de costas para a empregada, ele não diz qualquer palavra.
– Não se preocupe, doutor, não direi uma só palavra; sei o que está sentindo e peço desculpas pelo meu julgamento precipitado! O senhor é um homem de bem, Deus sabe disso, como também sabe que o senhor não poderia ter ficado com dona Franceline. Muito sangue teria sido derramado! Muito mesmo! E ela também sabia disso!
– Se há algo de que me orgulho nessa vida é o de tê-la em meus braços! – recorda o homem, dominado pela emoção.
– Como está romântico, querido! Queria que esse momento não findasse nunca! Como é bom estar com quem amamos, não é?
– Mas esse momento pode ser eterno, deixe Dilermando e venha viver comigo!
– Não posso, Catharine ainda está novinha, como deixá-la distante do pai? Seria crueldade de minha parte.
– E como pode viver com um homem que não ama? Como pode beijá-lo sem sentir náusea? Como pode tocá-lo sem sentir asco?
– Por uma filha, uma mãe é capaz de qualquer coisa, até mesmo de encenar o amor...
– Você me assusta, sabia?
– Por ser tão sincera? É o meu grande defeito!
– E é o que me amedronta!
– Você é uma dádiva celestial – revela a mulher, olhando-o fixo.
– Queria ter a coragem de dizer ao mundo que tu és o meu grande e único amor – sorri, abraçando-o.
– Doutor – chama novamente a empregada, percebendo-o letárgico, tudo bem? Parece tão distante.
– Estou bem, fale!
– Assim que o senhor voltar, eu arrumarei minhas coisas.
– Esqueça tudo o que lhe disse, você não é minha empregada; é minha amiga. Aqui não é o seu local de trabalho; é a sua casa.
– Como é? Catharine está providenciando auxílio médico ao motorista? – berra o vereador, ainda no hospital, ao prefeito, que acabara de chegar.
– É o que o doutor Paineiras me disse! Ele acabou de chegar à delegacia de Vila Bonita e soube dos fatos pelo delegado de lá. Coisa de louco essa sua mulher, né, George? Eu lhe disse, aplique-lhe um bom corretivo, aquilo lá tem sangue ruim... – esbraveja o prefeito. – Mas não, só sabe dar aquelas surrinhas que nem marcas deixam!
– Isso atrapalhará novamente os nossos planos. Droga!
– E tudo por causa daquela empregadazinha dos infernos, a tal da Ernestina! Essa é outra que temos de apagar logo, parece um cão de guarda! Ave! – retira uma pequena garrafa do bolso e a vira na boca. – Esse saquê está divino! Quer um pouco?
– Como pode pensar em bebida numa hora dessas, Tanaka?
– Meu filho, cada um se apega ao que tem... Uns se apegam a Deus, outros aos santos e eu ao saquê! Quer algo mais relaxante? É graças a ele que estou aqui agora...
– Como assim? Do que você está falando? – estranha o vereador.
– Passei por uma agora há pouco, mas dei a volta por cima. Sabia que aquela gentalha não se recusaria a provar do meu saquê – ri. É, não foi fácil, mas dobrei a todos com mais promessas. Também, bêbados daquele jeito, tudo o que eu dissesse viraria gol do Corinthians. Pobre é tão previsível!
– Está louco, homem? Não estou entendendo nada do que está dizendo!
– O que seria do político se ele não tivesse o dom da mentira, George? Estaria arruinado! Mas algo me intriga, aquele Zé dos Cobres um bicho rasteiro. Hum! E bicho rasteiro se mata a porretada.
– Zé dos Cobres? Quem é esse? Ah, Tanaka, poupe-me dessas histórias provincianas! O que quero é ir a Vila Bonita, flagrar Catharine prestando socorro ao motorista.
– E para quê? Aí sim dirão que é um corno! – percebe ter falado demais.
– Corno, EU? – o sentimento mescla fúria e admiração.
– Até agora a mídia não entendeu o que se passou naquele quartinho! Supõe uma traição, daí a afirmá-la é outra coisa! Temos que ter cuidado, George, pois a campanha à prefeitura se iniciará dentro de algumas semanas, e não quero vê-lo desenhado com chifres por aí.
– E o que sugere? Que eu fique quieto enquanto ela me humilha? Porque isso é uma humilhação! Como pode estender as mãos ao homem que pretendia me matar?
– Estamos num fogo cruzado! – dá outro gole na garrafa. – Mas, pelo o que o doutor Paineiras falou, ela ainda não chegou à delegacia; então, que tal simularmos uma crise, dessas de apavorar até centro de macumba?
– Como assim? – pergunta o curioso vereador. – Não entendi!
– Mas logo vai entender – diz, sorvendo outra dose da bebida. – Espere e verá! – gargalha.
– Se percisá de arguma coisa, é só pidí, Zé! Nóis é probi, mais tem bão coração! Ondi comi deiz, comi onzi – o alcoolizado ancião presta solidariedade ao ferreiro Zé dos Cobres, durante o enterro da esposa dele.
– Obrigado, seu Juca! Deus lhe pague por tanta bondade! Abraçado a mais dois amigos, Zé acompanha o caixão ser engolido pela terra. O silêncio do lugar é de arrepiar... A alguns metros, os dois homens de outrora o acompanham com discrição.
– Será que dará certo? Acho-o pacato demais!
– Pacato? Ele é um pedacinho de carvão a ser lapidado... – responde Alberto, o líder da oposição, ainda encantado com a postura insurreta do ferreiro.
– Não sei! Apesar dele falar bem, parece muito honesto para entrar para a política – responde Ricardo, seu assessor.
– Ele me lembra alguém, mas quem? Já sei – estala os dedos, Paul Potts!
– O vendedor de celulares, de olhar melancólico, com defeito nos dentes, que emocionou o mundo ao cantar ópera naquele programa inglês?
– Exatamente! Assim como Potts, alguém daria alguma coisa por esse coitado? No entanto, ao peitar o prefeito parecia um leão, fazendo das palavras o seu urro. E que urro! Tanaka quase caiu do caixote. Não havia quem não se impressionasse com sua braveza, palmas foram ouvidas... Zé dos Cobres é o nosso Paul Potts, homem ideal para derrotar nas urnas o petulante vereador George Dumont e seu fiel escudeiro, o prefeito.
– Mas... mas...não sei, esse coitado? – hesita.
– Cuidado com o preconceito, Ricardo! Não são as roupas nem as contas bancárias que fazem um Homem, mas o seu caráter. E isso ele tem de sobra! – coça o cavanhaque, imaginando o futuro político do rapaz. – “Para enxergar claro, bastar mudar a direção do olhar”, como diria Exupéry².
O coveiro joga duas ou três pás no buraco, quando se ouve um estouro; a tampa do caixão, de papelão, rompe com o peso, deixando mostra os enfeites mortuários, para o desespero do marido, que se ampara nos ombros amigos.
– Ajudarei Joaquim! – diz Rubens, retornando à sala de estar. – Pensei bem, devo-lhe isso!
Catharine alumia a face entristecida com um enorme sorriso.
– Eu sabia, você jamais deixaria de atender a um pedido meu! Obrigado, meu amigo!
– Antes de qualquer coisa, precisamos de um bom advogado, alguém com experiência suficiente para burlar todos os entraves burocráticos e conseguir um habeas corpus em curto espaço de tempo. Temos de retirar Joaquim daquela cadeia, caso contrário...
– Falarei com o doutor Jaime, o advogado de minha família, ele saberá como proceder.
– Tomara! Estou indo para Vila Bonita.
– Vou com você!
O celular dela os interrompe.
– O que aconteceu com George? Meu Deus! Ele foi levado para o C.T.I? Como foi isso? De repente? Tanaka, me explique direito, não estou entendendo nada! Fale devagar!
– O que aconteceu? – indaga o médico, num misto de estranhamento e desconfiança.
– George teve um infarto! Como pode uma coisa dessa, Rubens? Estava tão bem ontem à noite... – abraça-o, para o espanto dele, que se limita a alisar os cabelos dela. Como é difícil estar diante da própria filha e não poder se assumir como pai. A dor é fina, mas perfura o coração com a força de uma estaca.
Ernestina mede novamente a febre do rapaz, que bate os quarenta e um graus.
– Como ele está? Já bateu as bot... melhorou? – pergunta Paineiras ao delegado daquela comarca.
– Está mais pra lá do que pra cá! Não tenho coragem de expulsar essa dona daqui – aponta para a empregada, ela tem grande apreço pelo meliante, veja, está a lhe molhar a face com uma paciência de mãe...
– ...ou de amante! – zomba Paineiras. – Mas precisa retirá-la daqui, sabe como é, se alguém resolver denunciá-lo à Ouvidoria, poderá ser punido. Hum! O secretário não lhe poupará o fígado, ainda mais que se encontra em estágio probatório². Deixe o infeliz trilhar o seu caminho; que se há de fazer se não há vagas nos hospitais da região?
– Tem razão! Obrigado por me abrir os olhos, como é bom contar com amigos nessas horas.
A empregada resiste às investidas do delegado, quer permanecer ao lado do motorista, mas ele está irredutível, teme infringir as orientações da Secretaria e ser alvo de uma sindicância, como alertara Paineiras. Então era melhor não arriscar, por mais pena que isso lhe causasse.
– Como lhe prometi, prefeito, de hoje esse infeliz não passa! – delicia-se Paineiras ao celular, enquanto a mulher é arrancada à força da enfermaria.
Assim que ela sai, Zelão entra e fecha a porta. Com o pedaço de uma camiseta, ele tapa a boca de Joaquim, que se debate, enquanto a face é tomada pelo sangue.
– Chegou seu fim! Vai estar com os vermes daqui a pouco – afirma, vendo-o revirar os olhos.
Moacir conduz a patroa ao hospital, sendo obrigado a parar, durante o caminho, quando uma multidão invade a avenida.
– De onde surgiram todas essas pessoas? – pergunta a mulher. – É uma passeata?
– É us amigu du seu Zé dus Cobre, a muié i u filhu deli morrero nu desabamento dus morru... Elis devi tá vortano du cimitério. Coitado du Zé, é um homi tão bão, capaiz de passá fomi para ajudá o próximo.
– E quantos anos tinha o filho deles?
– Tava inda nu buchu da muié...
– Como assim? Ela morreu grávida? É isso que entendi?
– Sim, dona! A muié tava prenha, di barriga...
– Que tragédia, Moacir! – compadece-se. – Ele é querido, não?
– Eli é nossu líder lá no Bairru das Frores... Tá venu essa gentarada toda, dona Catharini? Assim como o Zé, perdero as casa, tão drumindo debaxo de lona e comenu restu dus otros enquanto o prefeito vê o que faiz. O Zé diz que tudo é curpa do prefeito, ele prometeu pra nóis reforçá us barrancu, mai num féis nada, dona! Uns acredita, outros não! Inquanto num si resorvi, ajudamu uns aos zoutros. Nóis é tudo probi, mais nós tem bão coração.
– Você também perdeu sua casa? – inquire, indignada com o sofrimento daquele povo.
– Virge Maria, ieu não! Minha casinha fica bein no começu du bairro, longi dus morru, mai muita gente qui conheçu, sim! O dia qui a sinhora quisé i lá, eu levo, dá dó di vê... É tanta genti passanu fomi, sem ropa, sem tetu!.. Indá inté vontadi di chorá!
Enquanto ouve com atenção os relatos do jardineiro, ela observa cada uma das figuras que cruza a frente do carro; uma pontada lhe inquieta o coração, talvez seja o remorso, porque como herdeira de uma das famílias mais ricas da região, poderia ter ajudado a evitar tanta dor, bastaria custear as obras então exigidas pela comunidade ou provocar os órgãos competentes com o seu sobrenome divino. Mas, encarcerada em uma verdadeira redoma de vidro – assim nomeava a relação matrimonial, fora incapaz de enxergar a dor alheia; o que importava era o seu bem-estar. Era como se aquela gente fosse invisível, peça insignificante do quebra-cabeça humano, como gostava de afirmar George. E onde estava sua consciência social? Não tinha ou perecia em algum canto de sua alma vazia, assim como a de tantos outros abastados.
– Óia, dona, aqueli ali é o Zé – aponta... – Óia! Óia! Óia, intá choranu feito criança.
Em farrapos, com os fios de cabelos embaraçados pela terra, o homem chora. É de causar mesmo pena!
– E o que disse o prefeito sobre isso? – pergunta, acompanhando o ferreiro até sumir de vista. – Por que ele não acionou a Defesa Civil do Estado para auxiliá-los?
O jardineiro não responde, está com o choro preso à garganta.
– Moacir?! – ao vê-lo comovido, pede para prosseguir a viagem. Alguns minutos depois...
A limusine se abre, Catharine passa pelos repórteres sem dizer uma só palavra e se dirige à recepção.
– Como está meu marido? – demonstra ansiedade.
– Senhora Dumont, tenho uma notícia para lhe dar... – responde a recepcionista, consultando o computador.
– E-ele morreu? – Catharine segura-se à bancada.
– Pelo contrário, está bem! Receberá alta no final da tarde.
– Co-como assim? – a face empalidece. – Está bem? Ele... ele te-teve um infarto, está no C.T.I, foi essa a informação que recebi. Como receberá alta hoje? Há algum equívoco! Olhe de novo, por favor! Será que não checou a ficha do paciente errado?
– Acalme-se! Verificarei novamente... – retorna ao computador.
– O vereador George Dumont encontra-se bem; em sua ficha não há qualquer menção a infarto, apenas ao tiro que levara... Não teria entendido errado?
Arfando, Catharine ameaça cair, para desespero da jovem, que pede ajuda ao segurança.
– Joaquim, venha, a senhora Dumont não está passando bem...
– Joaquim??? –pergunta-se em meio à confusão. – Joaquim! Tantos nomes, mas logo esse... Que ironia do destino!
– Senhora? Ei, respire! – o segurança a põe em um sofá.
– Quer uma água, um suco, um café...? Acho que a senhora teve uma queda de pressão – constata a moça.
– Estou melhor! – diz, levantando-se. – Deixem-me, já estou melhor! Preciso ver meu marido.
– Joaquim, acompanhe-a!
– Não é necessário! – corre os olhos assombrados pelo rapaz. – Já estou melhor! Com licença!
Já no elevador, contém as lágrimas. Ainda havia um fio de esperança de que a moça errara o paciente e de que Tanaka não pregara tal maldade. Mentir sobre uma doença tão grave e a troco de quê? Meu Deus! Sua cabeça estava confusa e isso a enfurecia; preferia imaginar que tudo não passava de um engano, seria menos cruel!
O elevador se abre, ela caminha lentamente até o leito. Suas mãos, gélidas como a dos mortos, gotejam em meio à trepidação. Os cabelos esvoaçam com o vento de uma janela no final do corredor.
Está diante da porta, roda a maçaneta, antes de abri-la, suspira fundo e para. E se George estiver bem? Não! Não quer acreditar nisso, solta a maçaneta e se afasta; sua vontade é retornar à recepção, fazer nova consulta; por pior que seja, a dúvida é menos espinhosa que a realidade.
Confusa, estaca no meio do corredor, fecha os olhos e, em seus pensamentos, ouve Ernestina macular o vereador e aconselhá-la para que o deixe. Mas seu coração não acredita que o homem com quem se casara seja um monstro, pelo menos não como os que o cinema está acostumado a retratar em suas tramas mirabolantes.
Enche-se de coragem, volta à maçaneta, gira-a com discrição e abre a porta bem devagar; quando entra no quarto, o choque. Com um belo terno Armani cinza médio acompanhado de um cabelo penteado em estilo clássico, George concede entrevista a um repórter do “Tributo ao Povo”.
– Creio que aquele motorista tenha sido motivado pela oposição... Que partido não me quer fora das eleições, principalmente depois que eu conseguira o tão sonhado Posto de Saúde às famílias principienses? Eles sabem que não me vencerão nas urnas, por isso, instigam figuras insignificantes como a de Joaquim para me tirar a vida.
– Isso é uma acusação séria, vereador! – afirma o jornalista. – Doutor Alberto Médici, o líder local do partido de centro-direita, prestando-se a tal baixeza? Desculpe-me, mas isso me cheira à falácia...
– ...Considera-me um mentiroso? – interrompe o edil, sentindo-se ofendido.
Encerra com a música: (Brasil - Gal Costa).
_______________

1. Missionária católica albanesa, nascida na República da Macedônia e naturalizada indiana, beatificada pela Igreja Católica em 2002. Considerada, por alguns, a missionária do século XX, fundou a congregação “Missionárias da Caridade”, tornando-se conhecida ainda em vida pelo cognome de “Santa das sarjetas”.
2. Antoine de Saint Exupéry (1900-1944) foi um escritor, ilustrador e piloto francês, é o autor de um clássico da literatura ―O Pequeno Príncipe, escrito em 1943. Era o terceiro filho do conde Saint-Exupéry e da condessa Marie Fascolombe, família aristocrática empobrecida.
3. Período em que o servidor público terá seu desempenho avaliado, onde será verificado se ele possui aptidão e capacidade para o desempenho do cargo de provimento efetivo no qual ingressou por força de concurso público.


REALIZAÇÃO




Copyright © 2020 - WebTV
www.redewtv.com
Todos os direitos reservados
Proibida a cópia ou a reprodução

Compartilhe:

Capítulos de Flor-de-Cera

Drama

Flor-de-Cera

No Ar

Novelas

Romance

Comentários:

0 comentários: