1x02 - O Ingazeiro
de Danilo Giroldo
O
bairro todo havia sido planejado. Imaginava-se que aquela área da cidade,
próxima ao aeroporto, poderia se tornar um subúrbio rico. As ruas eram longas e
formavam uma curvatura suave de modo a não se perceber o final. Porém, com o
tempo, a desigualdade se instalou, todos aqueles arredores se transformaram em
bolsões de pobreza formados por operários e trabalhadores do campo, cada qual
explorado à sua maneira, sem que qualquer infraestrutura pública pudesse
acompanhar o crescimento desordenado. O bairro, pensado para ser o destino de
latifundiários, grandes comerciantes e industriais com as suas mansões,
transformou-se aos poucos em um espaço de classe média baixa, cercado
concentricamente por uma miséria progressivamente maior. Restavam as belas ruas
e alamedas largas, a imponente caixa d’água, pequenas praças abandonadas e o
isolamento do centro de desenvolvimento da cidade. Aliás, o isolamento é uma
característica capaz de produzir muitos fenômenos. Base para a especiação
biológica, em grupos humanos produz padrões de linguagem e comportamentos
particulares, hierarquias sociais não convencionais e relações de poder
bastante curiosas, que somadas à ausência do estado, cria regras e convenções
próprias.
As
ruas eram também muito arborizadas. Principalmente Sibipirunas, mas também se
via Magnólias, Jambolões, Jacarandás, alguns poucos Eucaliptos e os Ingás.
Estes últimos espalhavam-se em terrenos baldios e estavam dispostos arborizando
as alamedas planejadas para funcionar como a entrada oficial, onde estavam também
os letreiros com o nome do bairro. Como muito pouco deste planejamento
funcionou, todos os moradores entravam por outros atalhos e a rua dos ingás
ficou praticamente abandonada. A parte asfaltada ainda tinha casas esparsas,
mas a maior parte dela era de chão batido e os ingás delimitavam os lotes.
Eu
não nasci neste bairro. Vim
de outra cidade ainda bebê, mas todas as minhas memórias de infância são
daquelas longas ruas que pareciam nunca ter fim. Ali conviviam diversas
gerações de crianças, adolescentes e jovens adultos. Depois de certa idade as
pessoas sumiam dali, arrumavam emprego no centro ou mudavam de cidade. Havia
uma hierarquia social entre faixas etárias, com os grupos mais novos
respeitando amplamente os mais velhos, seja pelo risco de tomar uma surra feia,
seja pela admiração e maior conhecimento da vida exibido pelos maiores. Já
dentro dos grupos etários, a hierarquia se baseava na capacidade de zoar os
outros e depois pela força, de modo que as brigas de soco eram comuns como
resultado da zoação e, eventualmente, podiam reverter alguma posição na
hierarquia. Eu nunca fui muito forte e sempre fui péssimo em zoar os outros,
mas era respeitado pelo jeito calado, por não me expor muito e também pela
minha altura, o que não significava força, no meu caso.
Desde
que comecei a interagir no meu grupo etário, a história do Ingá mal-assombrado
já era contada. Todos respeitavam a terceira árvore da rua dos ingás. Ela tinha
alguns nós no tronco que lembravam olhos com pupilas em fenda, um padrão incomum
que não era visto nos outros ingazeiros. As idas diurnas já tinham produzido
histórias trágicas que aconteceram naquela árvore, como o menino que quebrou o
braço em quatro lugares caindo sem explicação, o outro que furou o olho com um
galho que quebrou e o atingiu no rosto, a menina que ouviu barulhos estranhos e
quebrou o tornozelo ao sair correndo de lá e outras pequenas tragédias. Visitar
a árvore à noite
era fortemente desaconselhado pelos mais velhos. Havia relatos de pessoas que
enlouqueceram e nunca mais foram vistas no bairro e outros que passaram semanas
inteiras chorando depois de ficar ali algumas horas após o pôr do sol.
A
história que eu escrevo aqui me aterrorizou pela vida inteira e nunca foi
contada antes. A versão para as autoridades foi inventada, pois ninguém
acreditaria e certamente me internariam até que eu dissesse alguma mentira.
Voltei poucas vezes depois disso ao bairro e jamais me aproximei novamente da
rua dos ingás. Também não soube de novas tragédias ali ocorridas, mas certamente
eu contribuí para ampliar a fama e o terror que cercam aquele ingazeiro.
Nossa
turma de amigos era bem grande, uns quinze moleques de idades próximas,
nascidos entre 1973 e 1976, com algumas exceções de meninos mais velhos e
atrasados que andavam conosco e outros mais novos e mais espertos. Rafael era o
mais próximo a mim e também um dos líderes, pois zoava os outros como ninguém.
Não era forte e apanhava frequentemente, mas a sua inteligência para
esculhambar os colegas era tamanha que rapidamente a liderança era retomada
após a última surra. Ele era questionador e revoltado com o mundo como eu.
Vandalizamos muitos muros e construções abandonadas, pontos de ônibus e
orelhões e passamos muitas noites com outros amigos nas calçadas do bairro
falando sobre as injustiças da vida, das nossas casas e comentando as histórias
assustadoras do bairro. Jamais durante a infância e a adolescência
desrespeitamos a regra e fomos à noite na árvore. Íamos sempre de dia com nossas bicicletas. Só
uma vez o nosso amigo Leandro começou a chorar sem explicação e fugimos rápido
dali. Essa era uma reação comum que muitas crianças sentiam na árvore.
Quando
eu passei no vestibular e estava prestes a mudar de cidade, decidimos conhecer
os mistérios noturnos da árvore de perto. Éramos ateus e nos sentíamos
confiantes para passar algumas horas ali depois da meia noite. Não avisamos
ninguém, ele passou perto das dez horas na minha casa, enrolamos um pouco na
frente da casa dele e,
quando deu meia noite, rumamos a pé para a rua dos Ingás. Era uma noite quente
de janeiro, mas o céu estava carregado e a lua cheia conferia uma certa
claridade, mesmo atrás das nuvens. Levávamos apenas uma garrafa de vinho
barato, já devidamente consumida pela metade, uma lanterna e o coração
disparado. O medo pesava a cada passo dado, mas um não queria dar o braço a
torcer para o outro, então, por volta da meia noite e dez, estávamos em frente
a ela.
Os
olhos com pupilas em fenda pareciam mais vivos com o jogo de luzes e sombras
produzido pela lanterna. Sabíamos que eram seis e começamos a rodeá-la para ver
o aspecto de todos eles durante a noite. O capim passava da altura dos joelhos
e dava para ouvir a nossa respiração em meio aos gravetos se quebrando com os
nossos passos. “Eu contei sete”, disse o Rafael. Eu respondi que devia ter sido um engano e
assumi a contagem enquanto ele segurava a lanterna. Eram quatro na primeira
ramificação e mais dois no primeiro nó do galho mais grosso. “Eu vi mais um
ali, quando a luz da lanterna passou”. Ele se referia ao galho um pouco menos
robusto, onde não subíamos com tanta frequência e eu tinha certeza de que ali
não havia nenhum. Fomos muitas vezes durante o dia para fazer a contagem e
analisar a característica daqueles nós em forma de olho. Eu disse que não era
possível, mas o Rafael insistiu procurando com a lanterna. “Ali, eu vi de
novo!” O terror começou a tomar conta do meu corpo e senti uma espécie de
congelamento na coluna. Era um nó quase da espessura de todo o tronco e,
diferente dos outros, ele não ficava em nenhuma ramificação. Ele apontava diretamente para baixo e parecia mirar no centro
dos meus olhos. Eu entrei em uma espécie de transe e a terra toda começou a
girar quando eu notei a luz da lanterna se apagar. Senti uma tontura profunda,
já não via mais o Rafael e ouvia um zunido agudo nos ouvidos que parecia
perfurar os meus tímpanos.
Aquele
olho começou a formar contornos demoníacos, perdeu a característica esférica,
parecia estar mais alongado e ganhava expressões irônicas e aterrorizantes. Eu
já não tinha qualquer noção de tempo e espaço. Por alguns momentos me sentia
flutuando e contornando todo o ingazeiro, tinha a impressão de vê-lo de cima.
Em outros, ele é que parecia estar acima de mim, eu via as suas raízes com
milhares de nós em forma de olhos apontados para mim e eu me sentia em um
buraco afundando na terra. O zunido acelerava e reduzia a velocidade e eu me
perguntava se o Rafael estava sentindo o mesmo que eu. Em um raro momento em
que me vi de novo em pé sobre o solo, com a mesma perspectiva de quando cheguei
naquele maldito lugar, vi
emergir um grande redemoinho que passou ao meu lado, me congelou completamente
e atingiu em cheio o Rafael que parecia estar em coma profundo. Ele foi lançado
mais de trinta metros de altura e caiu feito uma pedra no capim mais alto que
havia no fundo do terreno baldio. Quando eu pensava não ser possível me
aterrorizar mais, o redemoinho trouxe novamente meu amigo e a imagem jamais
saiu da minha mente. Ele estava completamente dobrado para trás, com a nuca
encostada nos calcanhares, os olhos abertos e brancos e eu tive certeza de que
ele havia morrido. O vento o atirou no galho, exatamente no ponto em que o
sétimo olho havia surgido. Seu corpo ficou ali repousando de barriga para
baixo, com os braços e pernas pendendo também para baixo.
Neste
momento o redemoinho e o vento sumiram. Eu senti controle sobre meu corpo novamente,
além de uma dor na barriga muito forte. Deitei-me abraçado aos joelhos e acabei
desmaiando ali mesmo. Acordei já com o sol alto e a sirene da ambulância. Vi
quando os bombeiros chegaram e retiraram o Rafael de cima do galho e ele foi
colocado direto na ambulância, aparentemente com vida. Outra ambulância me
levou também, mas eu me sentia bem, apesar de um pouco confuso, mas com toda a lembrança da noite
anterior e seus terríveis impactos. A polícia chegou no hospital e colheu o
primeiro depoimento de uma longa série que viria depois. Eu sabia que não
poderia contar nada do que aconteceu, sob o risco de nunca mais sair do
hospital, principalmente depois que eles começaram a perguntar sobre os
cogumelos dentro da garrafa de vinho. Eu já tinha tomado chá de cogumelo
algumas vezes e sabia que a onda era totalmente diferente, então simplesmente
disse que havíamos subido o mais alto que podíamos na árvore, depois caímos e
eu só retomei a consciência no dia seguinte. Eu soube mais tarde que o Rafael
estava em coma com fraturas múltiplas e uma lesão irreversível na lombar que o
deixaria com severas sequelas se voltasse a acordar. Penso que uma simples
queda jamais faria tudo aquilo, mas como não havia testemunhas, nenhuma outra
prova, os investigadores arquivaram o caso e eu convivi até hoje com estes
fatos.
Hoje
recebi a notícia que o Rafael, depois de quinze anos em coma, teve uma piora. Foi constatada sua morte cerebral e
desligaram os aparelhos. Se eu tivesse o mínimo de respeito pelo meu amigo, me
jogaria pela janela neste momento. Talvez eu ainda tenha coragem de fazer isso
um dia, ou talvez esse relato, escrito de próprio punho, possa trazer um pouco
de alívio à culpa e aos pesadelos que nunca me deixaram depois daquela noite.
Mudei de cidade, minha família mudou de bairro e hoje, quando vou visitá-los,
nem passo perto dali. Vivo em um buraco sujo e faço pequenos bicos para
sobreviver. Larguei a faculdade e aqueles nós em forma de olhos com pupilas em
fenda nunca me abandonaram. Não tenho muito a perder e o que me impede de
consumar o meu suicídio é o medo de encontrá-los novamente. Acho que naquela
noite entregamos nossas almas ao ingazeiro. Jamais nos livraremos dele. A
imagem das raízes repletas de olhos me aterroriza e a sensação que eu tenho é
que, mesmo que eu seja cremado e me transforme em cinzas, a minha mente estará
em alguma dimensão presa para sempre naquela noite.
Conto escrito por
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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