FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 16
– Então de quem é esse sangue?
– O que há com Catharine, doutor Rubens? Meu Deus, por que sangra desse jeito? – cobra Ernestina, prevendo o pior. – O que há de errado?
– Senhor – achega-se o enfermeiro –, precisa vir, o caso é grave.
– Meu Deus! Preciso ir! Se não iremos perdê-la.
– Doutor, eu lhe imploro por tudo que há de mais sagrado, o que tem nossa menina?
– Hematêmese.
– He... o quê?
– Hematêmese, em outras palavras, a saída de sangue pela boca, originário do sistema gastrointestinal, habitualmente do esôfago ou do estômago. É também conhecido como vômito de sangue.
Ernestina se recolhe a um banco, enquanto o médico, arquejando de medo, parte para o C.T.I. A vida da herdeira dos Dumont, ou melhor, de sua filha, está por um fio.
Pietro está na redação do Jornal “Tributo ao Povo”, sentado diante do computador, de onde observa uma fotografia. Alguma coisa o angustia, por isso evita conversas com os outros repórteres, o que desperta a curiosidade de Leandro, seu melhor amigo no trabalho, que lhe pergunta:
– Está tudo bem? Desde que chegou, não saiu dessa mesa, não trocou uma palavra com ninguém.
– Mais ou menos! – inspira fundo. – Sabe como é entrevistar a patota politiqueira desta cidade, não sabe? Quase fui às vias de fato com o prefeito, aquele pinguço de botequim.
– Com o Tanaka? – espanta-se.
– Sim! Ele pensa que pode fazer o que quer com todo mundo, como se as pessoas fossem simplesmente peças de um tabuleiro de xadrez, prontas para mudarem de lado a um simples desejo dele.
– Não entendo o que quer dizer!
– Para ele, somos apenas números de um título eleitoral. Só! Não importam os valores, os princípios construídos por cada um ao longo de toda uma vida, porque isso tudo é uma bobagem, que se joga no lixo e se ateia fogo, sem qualquer constrangimento ou remorso – pelo menos o que pensa.
– Nossa! – assusta-se. – Você nunca foi assim tão... tão... tão cruel com as palavras. Algo de muito grave deve tê-lo mordido!
– Mordeu, sim! Acredita que o Tanaka e o vereador George Dumont querem que eu publique uma história para lá de fantasiosa sobre o doutor Alberto Médici, o líder do partido adversário?
– Como assim?
– Querem incriminá-lo pelo tiro disparado por Joaquim, aquele pobre motorista, como se o crime tivesse motivação política e não passional.
– Acredita mesmo em crime passional?
– Veja... – Pietro mostra-lhe a foto que está à tela do computador –, esta é Dona Catharine Dumont, a esposa do então vereador, deixando a limusine e adentrando a delegacia de Vila Bonita, e sabe para quê? Para salvar a vida do homem que quase matou o marido dela. Tem cabimento?
– Não creio! – diz Leandro, com as mãos à boca.
– Pois é! Estou tão abismado como você, por que não é estranho que uma dama da alta sociedade principiense se preste a descer todos os degraus da escala social só para amparar um homem como aquele, sem qualquer relevância, acusado de homicídio, e contra um membro da família dela? Por mais compaixão que possa por ele nutrir, já que era seu empregado, o que justificaria ir até uma delegacia e de lá retirá-lo, contando, inclusive, com o aporte intelectual do renomado doutor Jaime?
– Espere aí, esse Jaime é aquele que abriu uma ONG contra a exploração sexual infantil, há duas semanas? Seus honorários são uma verdadeira fortuna, como Joaquim irá pagá-los? A não ser que ele o tenha feito por caridade.
– Ainda não entendeu, Leandro? Catharine o está pagando à revelia do marido.
– Que história louca, cara!
– E por que ela faz isso? Por amor? Não sei dizer...
– Como não sabe? Se o disparo tem aparente motivação amorosa, como alega, há de enquadrá-lo como passional.
– Também penso assim, entretanto, não consigo acreditar que ela tenha tido um caso com aquele homem, há uma cratera cultural e financeira entre ambos.
– Que preconceito é esse, cara? E desde quando amor vê dinheiro ou conhecimento? Quando se ama, todas as barreiras se rompem.
– Não nesse caso! Essa história carece de argumentos, de nexo... Eu sinto!
– Por acaso tem tendência à premonição? É a versão masculina da Mãe Dinah ? – escarnece. – Me poupe!
– Como pode ser tão debochado, Leandro? O assunto é sério!
– Não estou sendo debochado, apenas realista, algo que lhe falta!
– Então acredita que eles tenham...??? Hum! Não sei! Tenho certeza apenas de uma coisa, Tanaka e George, aquela dupla de anti-heróis, está tratando o atentado como crime político. Fica mais fácil vestir a carapuça de vítima à de vilão, aliás, essa já está encomendada ao doutor Alberto. Coitado! E nada poderei fazer para ajudá-lo, porque se não publicar, na íntegra, a entrevista que me concederam no hospital, pedirão minha cabeça ao doutor Tobias.
– Chegaram a isso?
– O que acha?
– E onde está a liberdade de expressão?
– Infelizmente, Leandro, a liberdade de expressão, enaltecida pela Constituição Federal, não passa de balela, alpiste no bico dos urubus, pelo menos é o que acha a gentalha politiqueira daqui. Mas o que me deixa mais deprimido é saber que dona Catharine também é vítima nessa trama toda.
– E como pode afirmar isso? Tens provas do que diz?
– Materiais, não!
– Então?!!
– Sei lá, ela não me parece capaz de tamanha maldade...
– E por que não? Do modo como se expressa, parece que é amigo íntimo dela, alguém que frequenta os mesmos lugares que ela e que tem os mesmos amigos; saiba, meu caro, os ricos vestem máscaras, interpretam inúmeras personagens, cada uma para uma ocasião, com legados psíquicos distintos, como se a vida não passasse de uma peça de teatro, e seus espectadores, críticos boçais. Com ela não seria diferente!
– Tenho medo de cometer outro crime, o da difamação!
– Cara, eu não queria estar em sua pele – suspira o rapaz. – É constrangedor ter de inventar uma trama sórdida como essa, só para ferrar com os opositores. Isso me cheira a política mundana, de país africano, que não goza de alicerces democráticos como o nosso.
– Exatamente! Aí mora minha dor. Se eu a publicar, a história perderá os elementos passionais e se verterá a um atentado contra a democracia, assim, o motorista, que agora está no hospital entre a vida e a morte, passará a um criminoso comum, motivado pela ganância e pelo poder; não pelo amor, que é o que eu suponho.
– Se não publicá-la, irá para a rua. Já tentou falar com o chefe, apesar de que você, devido à experiência, tem permissão para levar a público o que quiser.
– Pietro, doutor Tobias o está chamando – informa a secretária, aproximando-se.
– Prepare-se, cara, para ele chamá-lo, a esta hora, em sua sala, o chumbo deve ser dos grossos.
O rapaz ajeita a roupa, arruma os fios de cabeços com as mãos e se dirige ao gabinete do proprietário da empresa.
– Entre! – ordena o octogenário, na companhia de Júlio Avanzo, o editor-chefe do jornal.
– Em que posso lhe ser útil, doutor?
– Li sua entrevista com o vereador e posso lhe assegurar que está esplêndida, todavia, possui alguma prova sobre o que escreveu? Desde quando o doutor Alberto, um homem de carreira sólida, reconhecido por seus préstimos à sociedade principiense, seria capaz de contratar um pistoleiro travestido de motorista para matar o vereador a quem servia? Isso é brincar com nossa imaginação, não concorda, jornalista?
– Doutor... doutor... – engasga-se com as palavras – o que está escrito aí é apenas o relato do que disse o entrevistado, sem o acréscimo de uma vírgula sequer.
– Se ele disse isso, possui as provas ou então quer nos usar – afirma Júlio, sereno, do alto de seus óculos grandes. – Não percebeu isso, Pietro?
– Se a publicarmos, será o fim do “Tributo ao Povo”. Sabe o que isso significa, jornalista? – interroga Tobias, deixando transparecer a indignação. – O fim de toda uma era! É como se o passado de minha família fosse jogado ao lixo, destituído de qualquer valia.
– Senhor, eu sei de tudo isso... – tenta se justificar... - acontece que o prefeito...
– O que tem o prefeito?
– Ele ameaçou cortar todas as verbas publicitárias aportadas a essa empresa se a matéria não estiver na primeira página de amanhã; também não quero assistir a derrocada de nossa credibilidade, mas...
– Mas...mas... o quê? Por acaso o senhor sabe quantos anos têm esse jornal? A mesma idade de Vila dos Princípios. E lá se vão décadas de confiança do público em nossa linha editorial; agora, abrir as páginas de nosso ganha pão a urubus como Tanaka e sua trupe? Isso é aviltante, para não dizer outra coisa.
– Doutor Tobias, faço de suas palavras as minhas; porém, se não me falhe a memória, estamos no vermelho há meses. Os funcionários da produção me informaram de manhã que não há mais bobinas para se imprimir a quantidade diária constada na página principal, o que significa, num primeiro momento, o encolhimento das vendas e, depois, a insolvência desse grupo de mídia. Assim, se o prefeito cumprir a ameaça – como disse Pietro, não contaremos mais com o último fôlego que temos para continuar o trabalho que sua família tão bem conduziu ao longo dos anos – alerta o editor.
Tobias se contém.
– O maior patrimônio desse jornal é a credibilidade de suas notícias e a imparcialidade de sua linha editorial; se estamparmos essa agrura na página principal, como querem aqueles dois, seu conceito cairá por terra, feito um castelo de areia... – persuade Pietro, na tentativa desesperada de evitar a publicação.
– ...e se não a publicar, também cairá por terra – completa o editor, por falta de recursos. Então, o que fazer, senhor?
– Diante disso, não vejo saída, teremos de levá-la aos leitores e seja o que Deus quiser – lamenta o empresário.
– Senhor, isso é muito arriscado, não seria melhor então editarmos o material, retirando os trechos mais contundentes? Pelo menos amenizaria o impacto das denúncias.
– Até pode ser, de qualquer forma, estamos nas mãos deles – adianta o editor. – Aliás, podemos fazer o seguinte, para não soar como um apoio descarado desse jornal à situação, o que motivaria uma perseguição desenfreada por parte dos opositores e da própria Justiça Eleitoral, publicaremos também, na mesma página, a fotografia de dona Catharine Dumont chegando à delegacia de Vila Bonita, juntamente com texto dúbio, para não dizer pernicioso, que desperte no leitor a curiosidade quanto à sua relação supostamente perigosa com o motorista, a ponto de não discernir mais a vil realidade de uma obra shakespereana¹. Faça isso, Pietro, deixe uma pulga atrás da orelha dos leitores, eles adorarão conhecer a nova versão nada convencional de Romeu e Julieta. Vamos vender jornal como nunca!
– Boa ideia, Júlio! – comemora Tobias. – Assim passaremos ilesos pelos comentários do tipo “manipuladores da opinião pública”.
“Estão cometendo uma injustiça!” – as palavras de Catharine, dentro daquele elevador, saltam à razão de Pietro, que escandalizado com a desfaçatez de seus superiores, desafia:
– E não estamos manipulando a opinião pública? Se o crime tem viés passional, por que então associá-lo a interesses politiqueiros? Essa é a tal credibilidade de que tanto nos orgulhamos? – rebate, atemorizado com a repercussão de amor e ódio que ambas as reportagens suscitarão.
– E o que propõe, jornalista? Que vamos à bancarrota, deixando milhares de funcionários e agregados sem condições mínimas de sobrevivência? – dispara o empresário, com cara de poucos amigos.
O telefone interrompe a discussão.
– Verdade? Pode deixar! Já sei até quem mandar para cobrir esse evento – diz Júlio, com os olhares ferinos em cima do jovem repórter.
– Até mais!
– O que houve? – pergunta o mandatário.
– Dona Catharine Dumont foi levada para o hospital com um suposto quadro hemorrágico.
– Quadro hemorrágico? – assombra-se. – Eu a vi há pouco... Como?
– Você também a conheceu? – provoca o editor, percebendo uma preocupação excessiva em suas palavras. – Então é mesmo a pessoa ideal para saber o que há por trás dessa inesperada enfermidade, não é mesmo, doutor Tobias?
– CÓDIGO VERMELHO! ATENÇÃO, DOUTOR RUBENS! DIRIJA-SE IMEDIATAMENTE AO C.T.I. – berra o alto-falante, em todas as dependências do hospital, para o desespero do médico, que corre o mais que pode.
– O QUE ESTÁ ACONTECENDO? – pergunta o homem a uma das enfermeiras de sua equipe, achegando-se à porta que dá acesso ao centro de tratamento intensivo.
– Senhor, corra, é código vermelho! – responde a mulher, visivelmente nervosa. – Está tendo uma parada cardiorrespiratória; sua vida se esvai!
– Como assim? Cristo! Não pode ser! Não pode ser! – desacredita, com os olhos convulsos, a tez rígida e os dentes trepidantes. – Não pode ser! – segura o choro com enorme sacrifício. – Não pode ser! – as palavras não são de um médico, mas de um homem que acabara de resgatar a filha que o destino o roubou e, que, por alguma ironia da vida, estava partindo outra vez, sem ao menos ter a possibilidade de conhecer a própria origem, e de saber que ele, um simples Arraia, destituído de qualquer ambição ou fortuna assemelhada à dos Dumont, era seu verdadeiro PAI.
– NÃÃÃÃÃÃÃÃÃO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! – grita Ernestina, em desespero, na recepção, ao ser impedida de ir até sua patroa, após ouvir o alerta.
– A senhora não tem autorização! Sinto muito!
– Ela está morrendo, eu sinto, me deixe entrar – implora.
– Eu já disse que não!
– Deixe-a comigo, senhor! – pede Pietro, chegando ao hospital, ao se comover com o choro sofrido daquela criatura.
– Moço, me ajude, preciso entrar, minha menina está morrendo... Eu sinto!
– Acalme-se, dona! Pare de chorar, olhe para mim, e me diga quem é sua filha, só assim poderei colher algumas informações sobre seu estado – segura-a pelo queixo, com a cabeça inclinada na direção de seus olhos. – Olhe, sou repórter, posso ajudá-la, se me disser ao menos o nome dela.
– Catha-tha-rine Dumont.
– CATHARINE DUMONT! – arqueja. – Ela...ela...é sua filha?
– Por consideração, moço – o ar lhe falta.
– Dona, dona, alguém me ajude – procura pelos funcionários, ela está desmaiando.
Ernestina é conduzida à sala de observação, onde é medicada. Com a permissão da recepcionista – uma amiga de infância, Pietro invade as entranhas do lugar, na busca por informações sobre a única herdeira dos Dumont.
Instigado por um sentimento distante da curiosidade e por pensamentos para lá de confusos, o noticiarista avança pelos corredores; só não colide com o carrinho que transporta as refeições dos adoentados, porque a cozinheira o desvia para o canto, a tempo de evitar o acidente.
Os segundos, como ervas daninhas, são ceifados pelo tempo...
Já diante da porta de entrada do C.T.I., vê sua imagem refletida no vidro e se assusta. Seus olhos de jabuticabas em plena estação estão tensos, os fios de cabelo negros, finos, que descem da cabeça em voltas, como as ondas do mar, encharcados de suor. Respira bem fundo, toma coragem e entra.
Está trêmulo; pudera! Nunca esteve em um lugar como aquele...
Caminha entre os doentes, que se encontram em fileiras, separados por biombos. Alguns, ali há meses, exalam o odor nefasto e embriagante da desesperança; parecem pagar em vida os pecados de toda uma eternidade. Não percebem o tempo passar; a vida, para eles, resume-se a olhar o infinito através das frestas das largas janelas de madeira e esperar por uma nova oportunidade celestial ou pelo último suspiro.
Um gemido apavorante, no final do corredor, atrai sua atenção e, para lá se dirige, a passos lentos. As mãos gélidas, sem controle, pingam suor, enquanto o corpo, aparentemente dopado, se enverga, vez ou outra, como se quisesse cair, tal a indisposição. Ainda assim, mantém-se firme e chega ao biombo, que está isolado dos demais pacientes por uma cortina branca, manchada por vômito. Bastava um puxão para que pudesse, enfim, reencontrá-la.
“E quem não a conhece, dona Catharine Dumont? É uma lenda viva, um mito; cheguei a pensar, inclusive, que não existisse, que não passasse de mera fantasia da cabeça dos principienses – sorri. – Mas como é bom ter me enganado, porque é tão real como eu! Pelo menos eu acho...” – lembra-se das últimas palavras ditas horas antes à filha dos pioneiros de Vila dos Princípios. – Que fim triste – lamenta-se.
Sem titubear, arranca a cortina com um único golpe.
Encerra com a música (Do Amor e da Guerra - Adriana Mezzadri)
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1. William Shakespeare é considerado o maior escritor do idioma inglês e o mais influente dramaturgo do mundo. Suas primeiras peças eram principalmente comédias e histórias, gêneros que ele levou ao ápice da sofisticação e do talento artístico ao fim do século XVI. A partir de então, escreveu apenas tragédias, incluindo Rei Lear e Macbeth. Entre suas obras mais conhecidas estão Romeu e Julieta, que se tornou a história de amor por excelência, e Hamlet.
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