1x03 - Defunta
de Eudes de Pádua Colodino
Contam os antigos que, há
muitos anos, um homem enfrentou a viuvez bem cedo. Foi de forma repentina,
pois, tão logo houvera se casado, sua esposa adoeceu de um mal desconhecido e, em menos de um mês,
faleceu. Como a amava demais, ficou tão abalado que não conseguia se desgarrar
dela; por conta disso, resolveu não enterrá-la. Juntou suas economias e,
contrariando totalmente o bom senso, contratou um taxidermista da capital,
convencendo-o — a muito custo — a empalhar o cadáver.
OK, não preciso nem dizer
o quanto isso soou estranho e repugnante aos que ficaram sabendo. Ele,
consciente da inevitável rejeição dos demais, procurou envolver a história em
segredo, mas não teve jeito: o caso tornou-se conhecido nas redondezas, logo
causando rebuliço.
O pobrezinho estava
maluco.
E assim foi. Ao receber a
esposa de volta da taxidermia, assentou-a na única poltrona da casa e manteve-a
ali, sempre limpa e bonita, próxima de si. Conversava com ela, cuidava,
cantava, penteava seus cabelos, arrumava suas roupas… Enfim, zelava muito por
ela.
Mantinha a casa e as
cortinas sempre fechadas para evitar a curiosidade dos moleques e futriqueiros,
e evitava ir à cidade ou coisa assim. Só saía se fosse para trabalhar em sua
plantação, voltando para casa sempre depressa, preocupado se alguém a havia
invadido para ver e mexer na esposa empalhada. Graças a Deus ninguém fez isso,
pois o povo daqui sempre foi muito ordeiro, sabe. Por mais estranho e macabro
que fosse o caso, ninguém tencionou entrar na casa dele — muito pelo contrário:
na verdade, o povo tinha medo. Ninguém queria visitá-lo, nem mesmo sua família.
Entretanto, conforme a
poeira ia baixando, o rapaz foi aceitando a perda da amada e passou a pensar
bastante a respeito. Acho que sua ficha foi caindo. “Conversava” cada vez menos
com a defunta, e logo começou a sentir necessidade de tocar sua vida pra
frente. Foi aí que a coisa principiou a ficar realmente estranha para ele.
Conforme ia saindo mais
de casa, voltando a interagir com o mundo, foi reparando que a esposa ia… Comportando-se de forma diferente. A
primeira mudança que ele percebeu foi nos olhos dela. De fato, o taxidermista
colocou belos olhos de vidro, muito reais, mas o rapaz achava que eles estavam…
vivos demais, sabe? Em dados momentos
parecia que o acompanhavam para onde quer que fosse, e frequentemente se sentia
observado.
O próximo passo foi a
posição dela na poltrona. Muitas vezes, quando ele voltava para casa mais tarde
do que o habitual, reparava que ela estava sentada de um jeito diferente. Numa
hora estava meio de lado, noutra levemente reclinada… Isso sem dizer da posição
da cabeça, meio torta, pescoço virado… Ele a ajeitava, mas a mulher sempre
voltava a mover-se sozinha.
Não preciso nem falar que
ele estava ficando mais amedrontado do que enamorado por aquela casca vazia de
gente, né? Passava minutos contemplando seu rosto sem vida, pensando no que
fazer. Embora fosse ficando cada vez mais consciente da sua morte, ainda não
sentia a coragem suficiente de enterrá-la e dar-lhe o devido descanso… Enfim,
estava confuso. No ponto de viragem. Só precisava de um empurrãozinho para,
enfim, decidir-se pelo mais sensato a fazer.
E isso não tardou a
acontecer.
Numa quermesse, por acaso
conheceu uma moça de fora dali, que não sabia do caso. E, papo vai, papo vem,
acabaram se interessando um pelo outro. Como ela estava nas redondezas só de
passagem, trocaram endereços e passaram a corresponder-se por carta. Foi a gota
d’água.
O cadáver “soube” de alguma
forma. Sei lá, aquilo não era normal. De algum jeito ficou sabendo, por mais
que seu viúvo guardasse isso em segredo, já temeroso de alguma reação dele. Os olhares e
movimentos da defunta deixaram de ser uma impressão, passando a ser certezas.
Ele a via, de relance, se mexendo. Voltando-se em sua direção conforme ele
passava. Movendo-se no assento. De noite, ouvia o barulho da poltrona estalar,
como se a mulher estivesse se levantando. Chegava a ouvir até alguns balbucios.
Pela manhã, os olhos dela estavam arregalados, e a boca, escancarada; punhos
cerrados, expressão retorcida, como se estivesse magoada ou brava. Sempre a
aprumava, mas isso repetia-se cada vez mais intensamente no dia seguinte.
Por tudo isso, decidiu o
que ia fazer: enterrá-la.
Acordou em certa manhã
nublada e arrumou-se para ir à cidade chamar o coveiro e o padre. Enquanto
calçava os sapatos, percebia que a defunta tremia-se inteira, e um murmúrio
grave saia ininterruptamente de seus lábios entreabertos. Apavorado, mal
amarrou os cadarços e, ao dirigir-se para a porta, assustou-se com o barulho de
um corpo caindo. Voltando-se na direção do som, viu que a mulher lançara-se ao
chão, arrastando-se na direção de seus pés e rosnando seu nome, visivelmente
enfurecida. O rapaz, num grito, destrancou a porta e lançou-se para fora como
um raio, trancando a defunta em seguida. Desceu correndo o caminho para a
estrada que levava à cidade, ouvindo os berros tenebrosos da morta clamando por
ele. Imagine, você, o estado de pavor em que ele ficou!
Chegado à cidade, não
pensou duas vezes e foi chamar o padre. Não precisou explicar-lhe tudo desde o
começo, pois o sacerdote já sabia a maior parte da história, então pulou logo
para aquilo que presenciara naquela manhã, sobressaltando o velho. Saíram da igreja
correndo e, chamando o delegado de polícia, subiram rapidamente até a casa do
viúvo para buscar o cadáver e proceder com seu sepultamento.
Quase chegando lá, mal
acreditaram no que viram: uma grossa coluna de fumaça erguia-se da região.
Acorreram depressa, pois havia um incêndio em curso. Como não existia outra
casa por perto, logo concluíram que era na residência do rapaz. Chegados, não
puderam aproximar-se muito, pois o fogo era anormalmente quente. Vizinhos já
estavam postados na colina ao redor, observando atônitos aquele estranho
espetáculo de destruição. Diziam que o calor era o fogo do Inferno queimando
aquele lar desgraçado. O rapaz ajoelhou-se em prantos, sem ter o que fazer.
Bom, ninguém tinha o que fazer. Na época não havia bombeiros com hidrantes e
mangueiras potentes. Como ninguém podia se aproximar muito para tentar apagar o
fogo com baldes, tudo o que puderam fazer foi observar a casa arder até o chão.
E isso não foi o pior. No
meio dos sons do incêndio, de vidros quebrando e madeiras caindo e estalando,
vez ou outra escutavam um urro de dor animalesco, inumano, que ecoava na
região, causando arrepios em todos que ali estavam. Nenhum dos presentes nunca
mais se esqueceu disso.
Aquilo foi demais para o
rapaz. Retirado dali em choque, foi levado pelos presentes até a cidade. No dia
seguinte, soube-se que ele foi embora, para a casa de parentes. Nunca mais
voltou para sua antiga morada. Ninguém mais ouviu falar dele. E ninguém,
também, encontrou os restos mortais da falecida quando as cinzas da casa
esfriaram. Seu corpo desapareceu sem deixar vestígios.
Hoje a cidade cresceu,
aquelas terras foram loteadas e há um grande bairro residencial lá. Mas há quem
diga que ainda se ouvem gritos na região quando é aniversário do estranho
incêndio. Por conta disso a lenda continua viva, e ninguém daqui a esquece.
Conto escrito por
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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