
1x05 - São Genório?
de Ilberto Luis Trentin
Ambrósio era um homem de quarenta anos.
Pode-se dizer que ainda tinha muito a aprender, pois suas
inquietudes diante dos dias que transcorriam eram perceptivelmente notadas.
Isso não significa que as pessoas inquietas são aquelas que estão
constantemente trocando de lugar. Muitas vezes, elas estão sentadas num canto
qualquer, sem um movimento muscular sequer, mas seus pensamentos estão viajando
numa velocidade vertiginosa.
Ambrósio tinha um grande amor. Não um amor perfeito, pois um
grande amor tem lá suas broncas também, mas o sentimento que levava consigo em
relação à sua companheira era de elevada consideração, e, naquele momento
exato, ele estava estaqueado na sala de espera do hospital, totalmente sem
ação.
– Senhor Ambrósio dos Santos! – chamou a enfermeira.
– Sou eu – respondeu rapidamente, pensando também no seu
próprio sobrenome: dos Santos. Sim, agora iria precisar deles todos, com toda
certeza.
– Pode me acompanhar, por favor? O médico precisa falar com
o senhor.
Diante dele, Ambrósio ficou praticamente sem palavras. Que
entidade seria aquela que decidia qual o caminho a tomar? Que autoridade tinha
para decidir entre a vida e a morte de uma pessoa? Essas questões passavam
incessantemente por sua mente, ao mesmo tempo que uma lágrima teimava em descer por seu rosto.
– Ambrósio, infelizmente a notícia que tenho para lhe dar
não é nada agradável. O diagnóstico de sua esposa é de câncer no pâncreas, que
já se encontra num estágio bastante avançado. Prosseguiremos com o tratamento,
mas lamentavelmente o tempo de vida pode não ser longo.
Para Ambrósio, naquele momento, o médico nem tinha
necessidade de recitar todo o texto que havia planejado para tornar as palavras
mais macias. Já na primeira frase, Ambrósio percebeu que a situação de sua
esposa era crítica e sem volta. Sentiu uma tontura súbita e, sem dar qualquer
resposta ao profissional, retirou-se da sala um tanto desequilibrado. Numa
atitude impensada, adentrou a capelinha do hospital, que cumpria sua função de
dar um alento a quem acreditava em uma força superior naqueles momentos mais
turbulentos da vida.
Não havia ninguém lá naquele instante a não ser uma estátua
de São Genório. Eles se olharam e compartilharam seus sofrimentos. Ele sequer
precisava orar. Sentia que o santo já sabia de tudo o que ele ia pedir.
No entanto, mesmo assim, pediu em voz alta e de joelhos para
deixar registrado para todo o sempre:
– São Genório das Alturas! A Neiva é o grande amor de minha
vida. Por favor, não a leve. Leve a mim.
Eis que o santo respondeu, em voz clara e límpida:
– Mas não é tua hora, caro Ambrósio.
Os lábios de gesso não se moveram, mas Ambrósio nem se deu
conta disso. Ora, não é dessa forma mesmo que falam os santos, com pouca
condescendência para com detalhes carnais?
Apesar da gentileza, havia um quê de burocrático na resposta
do santo. São Genório poderia fazer melhor, pensou. Decidiu prosseguir na
barganha, com a intimidade de tratamento que lhe concedera o dito cujo:
- Ó Genório, que seja, mas tem que haver outra saída. Eu
aceito qualquer condição.
– Queres a Neiva viva.
A obviedade e frieza na fala do santo ao mesmo tempo
aborreceu e animou Ambrósio:
– Claro que sim, faço qualquer coisa.
O homem de gesso permaneceu imóvel, mas a voz ressoou clara
novamente:
– Na verdade, você não precisa fazer nada. Haverá só uma
condição, mas se tens amor pela Neiva certamente ela não lhe aborrecerá. Fica
bem assim?
Ambrósio não pensou muito e concordou. Neiva viva era só o
que lhe passava pela mente.
- Ah, fica. Grande São Genório!
Com medo de prolongar a conversa, saiu sem se despedir do
santo.
Ao chegar, compartilhou a notícia com seu filho.
– Como assim, pai? Você falou com o São Genório? Ah! Nunca
ouvi falar desse santo – falou o filho, incrédulo, e dando pouca atenção ao
relato do pai.
– Sim, tenho certeza de que logo, logo ela estará bem –
respondeu Ambrósio.
O dia seguinte amanheceu lindo. O sol iluminava cada canto
dos lugares por onde Ambrósio passava. Naquele dia, pensou que todos os dias
afinal eram lindos e ensolarados. Ao chegar à portaria do hospital, perguntou
pelo nome Neiva dos Santos, paciente do quarto 53.
– Deu alta esta manhã. Não está mais aqui – respondeu o
responsável.
– Ótimo, mas para onde ela foi? – perguntou Ambrósio.
– Saiu por esta porta e pegou um táxi.
– Que estranho! Posso falar com o doutor responsável?
– Aguarde um pouco na sala ao lado – respondeu o
recepcionista.
Ambrósio aguardava impaciente o médico. Aquele “aguarde um
pouco” lhe custou uma hora e meia de espera. Assim que este abriu a porta,
abriu um sorriso também:
– Bom dia, entre, por favor. O que deseja?
– Tudo bem, doutor? Preciso saber da minha esposa – disse
Ambrósio, impaciente.
- Sua esposa...
- O senhor havia diagnosticado câncer de pâncreas. Grave...
– Ah, sim, lembro. Bem, acredito que foi um desses registros
da área biológica que não conseguimos entender. Refizemos todos os exames e
constatamos que não havia mais doença alguma. Existem muitos casos semelhantes.
Esta manhã, assinei a sua alta, e um enfermeiro a acompanhou até a saída.
– Certo. Fico feliz em saber disso. Mas gostaria de saber
onde ela está agora. O senhor sabe me dizer? – perguntou Ambrósio, com a voz
trêmula.
– Como lhe informei, ela saiu daqui muito bem. Quem a levou
foi o enfermeiro.
– Posso falar com ele, por favor?
O médico discou um ramal e solicitou a presença do
enfermeiro, que prontamente compareceu à sala:
– Sim, acompanhei a paciente até a saída. Embarcou num táxi
com o seu marido – disse o enfermeiro, com muita segurança.
– Mas eu sou o marido dela! – respondeu Ambrósio, zangado e
incrédulo.
– Marido dela coisa nenhuma! Ela entrou aqui ontem com outro homem.
Incrédulo, Ambrósio saiu pelos corredores, questionando
enfermeiros e serventes no local. Depois, ainda bufando, voltou-se para o
enfermeiro:
– Tudo bem. Você pode me informar qual foi o taxista que os
levou? – perguntou Ambrósio, como se fosse um detetive.
– Claro, foi o carro do Seu Aristides.
Agora Ambrósio já estava entre a fila dos taxistas,
solicitando o carro do Seu Aristides.
– Pois não, senhor. Sou eu – respondeu Aristides.
– Minha esposa deu alta esta manhã. O enfermeiro informou
que você a levou. Pode me dizer onde a deixou? – perguntou, num tom de súplica.
– Bem, o senhor me desculpe, mas acho que não entendi bem.
Pensei que a pessoa que acompanhava essa senhora fosse o marido dela –
respondeu o taxista, tentando entender o que estava acontecendo.
– Não! Eu sou o marido dela – respondeu o outro. – Quem era
a pessoa que estava com ela?
Algumas pessoas têm o dom da empatia e da solidariedade.
Contudo, convenhamos, todo ser humano poderia e deveria levar consigo essas
características, pensava Ambrósio. Por isso, o taxista entendeu, em pouco
tempo, que a pessoa que estava à sua frente era vítima de uma traição sem
tamanho. Chamou-o para um lugar mais reservado e relatou tudo o que viu e ouviu
durante o trajeto num tom de compaixão por Ambrósio. Por bem, achou melhor não
informar o paradeiro de Neiva, mesmo diante das súplicas do pedinte.
Nas tardes que Ambrósio caminhava pelos arredores sentia que
algumas pessoas direcionavam um olhar curioso sobre sua pessoa. Agora sabia da
condição que o santo lhe impôs. Ela viveria sim, mas com outra pessoa. Alguns
conhecidos perguntavam sobre seu estado de saúde, sobre o tempo, mas jamais
citavam o nome de sua esposa. Às vezes, até dizia algo sobre ela, porém a
resposta dos conhecidos era sempre a mesma:
– Nem sabia que o senhor era casado.
O filho, que jurava que a sua mãe tinha falecido anos antes,
não entendia por que o pai cismava em falar tanto na Neiva. Cabisbaixo e
triste, andava pela rua sem saber se tudo não passava de um delírio. Mas como
ele se lembrava da face, dos gestos, do carinho e cheiro da Neiva?
Nunca deixou de procurar Neiva em cada rosto feminino da multidão. Mais de uma vez, voltou à capelinha do hospital na tentativa de retomar o diálogo com o santo. Porém, São Genório teimava em permanecer calado.
Conto escrito por
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO

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