1x10 - Senhora Neves
de Rafael Ferrara
Quem
crescia no bairro do Ingá, sabia da fama de uma senhora que morava numa casa
antiga, mal conservada e muito falada. Isso vinha da época em que meus pais
eram crianças. Sua fama - a da
senhora, e não do bairro, nem dos meus pais - era terrível. Tanto que, aos poucos, os terrenos que a cercavam
foram ficando abandonados, as casas caiam aos pedaços, até que tudo virou um
enorme terreno baldio. O tal terreno baldio, para ser preciso, era quase um
quarteirão inteiro, se não fosse
pela tal casa. Lá morava a Senhora Neves, uma mulher idosa, famosa pela
antipatia. Morou só a vida toda. Várias lendas sobre ela eram conhecidas pela
vizinhança. Uma delas, dizia que ela tinha mais de 100 anos.
- Quando eu
era criança, essa mulher já era muito velha – disse o meu pai para mim. – Eu
não me lembro da Senhora Neves com outra aparência a não ser a mesma que ela
tem hoje. Parece que parou no tempo com 80 anos.
Raramente
se via a Senhora Neves. Era possível saber que alguém morava naquela casa,
porque de noite se viam luzes acesas e movimentação do lado de dentro. Pela
rua, eram raras as suas aparições e, nas poucas que aconteciam, ela estava
sempre coberta por lenços escondendo seus cabelos e rosto.
Dentre as
lendas mais famosas, estava a que ela era uma bruxa que enfeitiçava a molecada
da região. Um dos enfeitiçados foi o Armandinho, que ficou conhecido como
Armandinho Molha Selo. Sua história começou depois de uma tentativa de
recuperar uma pipa que caiu no telhado da Senhora Neves. A lenda dizia que a
Senhora Neves, quando viu que ele estava no telhado dela, transformou o
Armandinho em um sapo. Ela passou a deixar o Armandinho em sua mesa de
escrivaninha dentro de um pequeno aquário sem água, e toda vez que precisava
mandar uma carta, ela umedecia os selos no corpo gosmento dele.
- Eu não me
lembro do Armandinho Molha Selo, mas lembro da Bibi Ding Dong – falou o Toninho
enquanto conversávamos, certo dia.
- Essa eu
nunca ouvi falar – respondi.
- Era a Bianca
que morava na rua do ferro-velho. Ela odiava a Senhora Neves. A menina ficava
de hora em hora indo na casa da bruxa tocar a campainha e depois sair correndo.
Ela só queria fazer a bruxa sair de casa. Um dia, a Senhora Neves se escondeu
num arbusto que tinha crescido perto do seu portão. Quando a Bianca se
aproximou da campainha, a velha, de
tocaia, deu um bote e capturou a
Bibi.
— E o que
aconteceu com ela? – Perguntei assustado.
— Acredita
que ela transformou a Bianca num relógio de parede? Daqueles, do tipo cuco. Daí, toda vez que queria saber as horas, a Senhora Neves
perguntava para a Bianca, que respondia imitando a campainha da casa: “Ding!
Dong! São duas e meia!”
Apesar da
fama, eu e os meninos da rua íamos para o terreno baldio bater uma bolinha.
Existem coisas que as crianças fazem, que são sem explicação. Para ser bem
honesto, não achávamos que estávamos correndo risco no terreno baldio. O
problema era entrar na casa da Senhora Neves ou provocá-la. De resto, não
existiam relatos de algum acontecimento sem uma dessas possibilidades
envolvidas.
— Ué? E a
história do Haroldo? – Perguntou o PH.
— Quem é
Haroldo? – Perguntei, quase que ao
mesmo tempo que o Toninho.
— Aquele
mendigo que vivia dormindo encostado no muro da casa dela, aproveitando a
sombra do pé de caqui.
— E o que
tem ele? – Voltei a perguntar.
— É mesmo –
completou o Toninho. – O Haroldo é um ótimo exemplo de que se você não entrar
na casa ou não provocar a veia, nada acontece. Tanto que ele sempre estava
dormindo por lá.
— Falou e
disse – prossegui. – O cara dormia sempre por lá e ainda ganhava uns lanchinhos
dela de vez em quando.
— Aí que
vocês se enganam – o PH veio com a réplica. – Pois saibam que o Haroldo morreu.
— Não fala
bobagem, PH – discordei e completei. – Ele morreu atropelado lá na travessia do
trem.
— E vocês
não acham estranho o Haroldo passar mal logo quando estava atravessando a linha
do trem? Para mim, tinha algo naquela comida que fez ele cair ali mesmo. Daí já
sabem, né? O trem passou por cima.
— NADA
DISSO! – gritamos, eu e o Toninho.
— Ele
estava bêbado, tropeçou e caiu. Não inventa também – o Toninho sacramentou o
assunto.
Certa manhã
de sábado, estávamos pelo terreno jogando bola, eu e os dois de sempre, o
Toninho e o PH. A brincadeira era a tradicional altinha. Usando somente os pés,
peito e cabeça, não podíamos deixar a bola cair no chão. Em um determinado momento,
para fazer graça, o Toninho deu uma bicuda para o alto. Era um recurso para
atrapalhar a jogada dos outros. Ela foi por cima de mim. Não me dei por
derrotado. Continuei correndo de costas para ficar debaixo da bola e dar aquela
matada no meu peito. Enquanto estava correndo apenas olhando para a bola, perdi
a noção de perspectiva e dei uma trombada no muro da senhora Neves. Apaguei.
— Você está
bem, cara? – perguntou o Toninho enquanto eu ainda recobrava a consciência. –
Você deu uma baita pancada de cabeça.
— Acho que
sim – respondi, enquanto apalpava a cabeça à procura de galos ou machucados.
— Que bom!
Porque a bola caiu por cima do muro da senhora Neves.
Segundo a
regra da galera, quem deixava a bola sair,
tinha que resgatá-la. Eu achava que a culpa era do Toninho, mas, como ainda
estava um pouco desorientado por conta da pancada, acabei aceitando sem
relutar. Pedi apenas uma ajuda para subir no muro, e lá fui eu, entrar no
quintal da Senhora Neves. Aquele era um local sagrado que, segundo as histórias,
poucas pessoas já haviam pisado e depois
conseguiram voltar.
A cena era
algo bem próximo do meu imaginário. Um jardim com mato alto indicando descuido.
Alguns vasos quebrados, um banco de madeira apodrecido e caindo aos pedaços, a
parede da casa com a pintura descascada, e as janelas estavam enferrujadas.
Garrafas vazias acumuladas no canto. Noutro, pilhas de fardos de jornal. Tinha
o que pareciam ser restos de
material de construção esquecido, também. Gastei um bom tempo reparando naquele
cenário que parecia o que chamamos de curva de rio. Um monte de coisas
entulhadas. Fiquei tanto tempo olhando, que cheguei a esquecer de procurar a
bola.
— Moleque
enxerido, vai se arrepender de ter entrado aqui.
Antes que
pudesse me virar para trás, senti sua mão pesando em meu ombro. Para uma
senhora tão idosa e com aparência debilitada, aquela mão pesava tanto quanto a
de um caminhoneiro. Tentei me desvencilhar, mas ela era incrivelmente forte.
Implorei pela minha vida e que me soltasse. Ela então arregalou seus olhos de
maneira macabra, como nunca tinha visto antes - nem em filmes de terror - e
disse:
— Nem mais
um pio. Passarinho meu, só canta quando eu mando.
Assim que
terminou a frase, ela tinha me transformado em um passarinho! E lá estava eu, um frágil passarinho na mão
da Senhora Neves. Com aquela mão firme, a bruxa me levou para dentro da sua
casa. Tentava me debater, mas era impossível. Se, na forma de um garoto de doze
anos não consegui fazer com que ela me soltasse, imagine agora como um
pardalzinho fuleiro. Indefeso, ela me colocou em uma gaiola e, depois, a cobriu
com um pano. Ficou tudo escuro. Ouvi apenas os passos da velha bruxa se
afastando, e mais nada. Estava na sala da casa dela, onde reinava um total silêncio. Restava-me apenas esperar o que
iria acontecer.
O dia foi
passando, até que anoiteceu. Foi o
que presumi, pois dentro da gaiola ficou menos escuro, por conta de uma suposta
luz que se acendeu do lado de fora. Imaginei que ela estivesse de volta e tinha
acendido a luz da sala. Pude notar uma vasilha com água no chão da gaiola, e um
recipiente com alpiste pendurado à meia altura. Era isso, então. Passaria o resto da minha vida como um passarinho preso na
gaiola de uma velha bruxa que me amaldiçoou. Imagine a reação do meu pai ao
saber disso! Ao menos ia falar para ele:
- Parece
que agora a ideia de ser desenhista de histórias em quadrinhos não soa tão ruim
assim, não é mesmo?
Os minutos
daquela primeira noite pareciam dias. Ouvia os passos da Senhora Neves indo e
vindo. Escutava também outros barulhos que pareciam ser de panelas sendo
usadas, coisas sendo lavadas em uma pia,
e até barulho de uma máquina de costura. O que não surgiu uma vez sequer, foi o som de vozes. Nem de rádio ou
televisão. A voz da bruxa se ouvia, também não se
ouvia. A danada da velha nem para cantarolar, servia. Que mulher amarga!
A noite ia
passando e comecei a aceitar a minha situação. Não foi difícil beber água em
uma vasilha, tendo apenas o próprio
bico. Comer é que foi mais complicado. Não bastante, alpiste é uma coisa muita
ruim. Deu até saudades da aveia que a mamãe insistia em colocar nas minhas
vitaminas.
Certo
momento, tudo se apagou e o silêncio retornou absoluto à casa. —Ela foi dormir – imaginei. Achei que
seria um bom momento para descansar também. Demorei um tempo tentando entender
como faz para dormir de pé. Até que ouvi um som. Como se alguém estivesse
chamando por outra pessoa, disfarçadamente.
Tipo um “psiu” tímido. Resolvi
prestar atenção e comecei a desconfiar que fosse comigo.
— A velha está achando que sou bobo
– pensei.
Vai ficar me chamando para ver se me animo a interagir com ela. Uma pinoia! Vai
ter a gaiola mais silenciosa de todas.
— Ei,
passarinho – quem estava fazendo o “psiu” resolveu falar bem baixinho. — Você
está aí? Está tudo tão silencioso… Está tudo bem?
A voz
parecia a de uma criança. Refleti: a
velha não podia ser tão ardilosa assim. Era uma voz muito natural e infantil.
Resolvi dar uma chance e respondi meio que cochichando:
— Sim,
estou aqui. Um pouco assustado e confuso com tudo o que havia acontecido em meu
dia.. Quem está falando?
— Eu te
entendo. Todos nós passamos por isso quando chegamos aqui. Meu nome é
Armandinho.
—
ARMANDINHO MOLHA SELO? – Não pude conter minha reação.
— SILÊNCIO,
SEUS DIABINHOS! – Surgiu a voz da Senhora Neves, como se estivesse gritando de
outro cômodo.
Tudo voltou
a ficar quieto. Nenhuma voz, sussurro ou “psiu”. Tampouco passos acusando a
aproximação da Senhora Neves. Assim permaneceu, até que Armandinho voltou a
falar. Digo, a sussurrar bem baixo:
—
Passarinho, precisamos ser bem discretos. A Senhora Neves não gosta que
fiquemos conversando. Ninguém fala nessa casa sem a ordem dela. Bem, imagino
que, pela sua reação, você conheça a minha história.
Sim, mil
vezes sim! Eu conhecia muito bem a história dele e a de outras crianças também.
Todas me aterrorizavam e, diante da minha situação, estar falando com ele
naquele momento era algo reconfortante. Era como ter alguém íntimo por perto.
Não estava mais sozinho naquele suplício. Aliás, lembrei que ele disse algo
como: “todos nós” - há pouco. Perguntei então o que quis dizer com isso.
—
Passarinho, somos muitos por aqui. Eu já perdi as contas. Estamos todos
espalhados pela casa. Alguns conseguem se locomover um pouco. Assim como você, aí dentro dessa gaiola, ou eu aqui, no meu aquário. Aliás, somos duplamente sortudos, porque além de
podermos nos locomover, conseguimos nos comunicar. Nem todos têm essa sorte. A
Bianca, por exemplo, que também está aqui na sala, fica estática ali na parede,
mas, ao menos, ela pode se comunicar.
— Ding!
Dong! Não tenha medo! – Surgiu uma voz metalizada que imaginei ser da Bianca. –
Ding! Dong! Temos uns aos outros por aqui.
— Sim,
passarinho, temos uns aos outros por aqui – Armandinho prosseguiu em seu
sussurro.
— Não
podemos fazer muito, mas damos suporte para que seja possível suportar essa
tortura. Isso é muito importante, e
você nem tem ideia. Como dizia, nem todos tiveram tanta sorte. O Nicolas não se
mexe, nem fala. Portanto, qualquer tentativa de suporte para ele tem muito
valor. Não é mesmo, Nicolas
Ficamos
todos em silêncio esperando sabe-se lá o quê. Afinal, o Armandinho tinha
acabado de afirmar que o tal Nicolas não falava, nem se mexia. De qualquer
forma, o Armandinho quebrou o silêncio novamente.
—
Passarinho, é que você está com esse pano cobrindo sua gaiola. Devia ter visto.
Sempre que fica feliz ou quer nos agradecer por algo, o Nicolas faz brotar uma
flor. Eu não comentei, né? O Nicolas era um menino que, certa vez, pulou o
muro da casa para beber um pouco de água da mangueira do jardim da Senhora
Neves. Marcou bobeira e foi capturado por ela, que o transformou em um cacto.
Agora ele vive num em um vaso, recebendo água uma vez por mês. Enfim, as flores
dos cactos são raras e muito admiradas. Por isso ele as usa para se expressar.
Fiquei por
dias preso em uma gaiola na sala da Senhora Neves. Toda tarde, ela me levava
para a varanda, tirava o pano que me cobria e dava a ordem para que eu
cantasse. Quando não obedecia, ela enfiava a mão na gaiola e me dava um
peteleco. Isso só aconteceu nos primeiros dias. Depois cansei de levar
petelecos e passei a obedecer. Cantava de tudo. Qualquer música que me vinha à
cabeça. Com o tempo, ela me ensinou algumas músicas do Ataulfo Alves. Sempre
que as cantava, ganhava um gomo de tangerina. Era bem melhor do que aquele
alpiste seco e sem graça.
Já de
madrugada, era sempre a mesma coisa. Eu e Armandinho conversávamos num cochicho
que quase parecia assombração. A Bianca fazia umas participações pontuais, mas,
por ter um som mais alto, ela as evitava sempre que podia. Quando não conseguia
evitar, levava um esporro meu e do Armandinho. Nos momentos em que isso
acontecia, Nicolas mostrava uma flor, para dizer que estava rindo. Era engraçado,
preciso confessar. Sem as nossas madrugadas de conversas, eu teria ficado
completamente louco. Mesmo assim, tudo tem um limite…
Certa noite
cansei daquilo tudo. Precisava pular fora dali, ou voar fora, se assim
preferirem. Esperei a velha dormir e, com a gaiola coberta, falei para meus
colegas sobre meu objetivo. Aos
sussurros, fui desaconselhado a seguir com ele. Os raros que tentaram fugir, sequer puderam permanecer sob a
maldição da transformação que a bruxa havia aplicado a eles – alertou o Armandinho.
— Ding!
Dong! Ela mata quem foge! – Avisou a Bianca. — Ding! Dong! Ela não perdoa
fujões!
Nunca
ninguém tinha conseguido, e quem
tentou, foi exterminado –
sacramentou o Armandinho. Não sabia como iria viver na forma de passarinho no
mundo lá fora, mas ali não ficaria mais. Bolei um plano e convidei o Armandinho, que refugou
de imediato. Resolvi colocá-lo em prática sozinho, então.
Na tarde seguinte, quando a Senhora Neves estava levando a minha gaiola para a varanda, esperei que tirasse o pano que a cobria e, então, joguei-me na vasilha de água. Pulei, bati as asas freneticamente, fiz um escarcéu! Foi água para todos os lados, inclusive, molhou a Senhora Neves que, com o susto, deixou a gaiola cair de suas mãos. Com o impacto no chão, as varetas de bambu da gaiola se partiram. Mesmo atordoado com a queda, saí da gaiola e disparei a voar. Parti na direção do quintal, com a velha bruxa me seguindo. Estava com uma das asas machucadas e batendo em menor velocidade que a outra. Minha vantagem de distância da Senhora Neves, não era tão grande. Ainda assim, fugi. Reuni minhas forças e consegui subir a uma altura suficiente a passar por cima do muro. Assim que o cruzei pelo ar, foi como se o feitiço só tivesse efeito dentro da casa da Senhora Neves, e voltei a ser gente novamente!. Estava a uns três metros de altura, quando o pardalzinho frágil se transformou de volta no menino que vos fala. Caí me espatifando no chão - e desmaiei.
— Você está
bem, cara? – perguntou o Toninho,
enquanto eu recobrava a consciência. — Você deu uma baita pancada de cabeça.
— Cara,
você não vai acreditar. Aquela velha maluca da Senhora Neves me transformou em
um passarinho e me colocou para cantar para ela! Devo ter ficando uns...
— Você está
doido? – Fui interrompido pelo PH. – Tem uns vinte minutos que você está aí, desacordado. Estávamos quase indo na
sua casa chamar seus pais.
—Ué! Será
que sonhei isso? – Perguntei.
—Claro que
sim, seu doido – Respondeu o Toninho.
—Que bom
então, né? – Comemorei, tão aliviado
que nem sentia mais dor.
— Bom nada!
Você ainda tem que ir lá pegar a bola – Disse o Toninho.
—Droga… — eu resmunguei.
E fiz uma pausa, para procurar galos ou machucados na cabeça.
— Só quero
pedir uma coisa para vocês. Chamem imediatamente a polícia, caso me escutem
cantando Ataulfo Alves.
Conto escrito por
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2022 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: