As Duas Espécies
de Adriano Monte Alegre
Apesar
da distância evolutiva entre os dois, seus hábitos e maneirismos eram muito
parecidos. A mais notável similaridade, no entanto, despontava do modo de
caminhar, mais especificamente do esforço que tinham de efetuar para alcançar
deslocamento. Um deles: Homo sapiens
sapiens, bípede e obeso; o outro: Canis
lupus familiaris, quadrúpede e obeso. A demasiada massa corporal
obrigava-os, de modo semelhante, a penderem muito para um dos lados antes de
levantarem o(s) membro(s) do lado oposto, como se possuíssem uma muleta
imaginária responsável pelo freio no movimento. Não obstante, se o cão portasse
coleira e guia durante os passeios cotidianos, o humano não parecia conduzir o
animal. Inexistia uma relação de dominância. Eram como cúmplices. A impressão
que tínhamos ao ver a cena era a de que ambos pactuavam com a ação e
apoiavam-se emocionalmente. Na hora de urinar, devido ao peso, o quadrúpede não
erguia uma de suas patas traseiras, por isso acostumou-se a baixar o quadril
antes de soltar o jato amarelo que escorria pelo cimento áspero da calçada. Ao
seu lado, o homem arfava fazendo seu ventre subir e descer. As pausas eram
sempre bem-vindas. O suor brilhava nas dobras de seu pescoço largo. A língua do
outro pendia grande e solta ao lado da boca. Arrastavam suas gorduras enquanto
superavam a constante falta de ar. À pouca distância, era possível perceber-se
chiados e sopros produzidos na árvore respiratória de ambas as espécies. Eles
também se assemelhavam na cor. O labrador possuía uma pelagem dourada, próximo
do tom amarelo da pele do homem. Para além disso, eram inseparáveis: comiam,
dormiam e passeavam juntos. Lamentavelmente, a dita condição compartilhada por
ambos deixava-os suscetíveis às investidas de vizinhos que não poupavam
anedotas e comentários malfazejos. “Olha lá, gordão e gordinho”, dizia um;
“Finalmente completaram a volta”, adicionava outro; e era sempre assim. A
verdade é que aquele homem, ao lado de seu labrador, estava exposto à chacota,
ao escárnio. E de fato, estudos confirmam que, frequentemente, cães tendem a se
parecer com os seus tutores. Ocorre que, nesse caso, as semelhanças físicas, o
jeito de olhar, o modo de caminhar e os traços emocionais entre os dois eram
surpreendentes.
O
final de tarde já despontava quando homem e cão entraram em casa. Nesses
momentos, o comum era beberem muita água e, em seguida, buscarem o descanso. O
homem largava-se no sofá de couro, enquanto o cão folgava no piso de cerâmica
junto aos seus pés. Bem diante deles, quase sempre um ventilador soprava no máximo um vento morno.
Ofegavam. A língua de um descansava tocando o chão, ao mesmo tempo que o outro
mantinha a boca aberta para melhor respirar. Em instantes, cochilavam
entremeados por ressonos e “tiros” de gases. Há quase onze anos, mais ou menos,
a idade do velho labrador, mantinham-se cotidianamente lado a lado. Eram como
seres simbiontes, estabelecendo uma relação ecológica de mutualismo
obrigatório, como se dependessem de alguma maneira um do outro para
sobreviverem.
A
aquisição do seu cão aconteceu em um momento de crise com o falecimento do pai
do homem. Todos os filhos, oriundos de duas famílias, e alguns parentes
próximos entraram em discussão por causa da herança. Os conflitos se
intensificaram, e o homem desenvolveu uma depressão. Isolou-se de todos. Foi
nessa ocasião que,
para amenizar a solidão e a dor, ele adquiriu o cão labrador.
Na
casa em que o homem vivia, o telefone tocava muito raramente. E quase sempre
era sua irmã, residente há anos em Portugal, quem fazia a chamada. A única,
dentre todos os irmãos do homem, que pela distância não se associou às
discórdias. Apesar disso, quando ligava fazia uma ou outra pergunta sem sentir
verdadeiramente o desejo de escutar as respostas. Na maior parte das vezes,
seus contatos ficavam registrados na secretária eletrônica. “Olá, Fofucho? Já
retirou de sua dieta os alimentos calóricos? Coma legumes. Os brócolis são
ótimos... E seu cão, continua urinando sem levantar a pata? … Você sabe que nós
te amamos, quando puder venha nos visitar em Lisboa. Não retornaremos ao Brasil
este ano. ”
Na
sala, as duas espécies despertaram quase ao mesmo tempo. Fungaram, bocejaram,
olharam-se. E os meses foram fluindo no seu comum, até a chegada do feriado
natalino. Exatamente no Natal do ano 2000, o homem não se sentiu bem e resolveu
recolher-se mais cedo. Dirigiu-se à cama com passos pesados e curtos, sempre na
companhia do cão. Dormiram. Tratava-se de uma noite quente, e talvez, por isso,
os ressonos de ambos não deram trégua. Sobre e sob a cama, os ruídos diferiam
apenas em seu volume. Na sala, a secretária eletrônica entrou algumas vezes em
funcionamento: “Como vai, Fofucho? Não exagere no panetone. Coma pêssegos, são
ótimos. Aqui em Lisboa nevou. Tenha um Feliz Natal”. “Feliz Natal, tio. Aqui é
seu sobrinho, Leo, de São Paulo. Você sabe que não te visito por causa da minha
mãe. Beijos em você e no Dolche. Ele deve estar bem velho, não é mesmo? Que
Jesus te ilumine. ” “Alô, Fofucho! Aqui é Luca, estou ligando para informar que
já reservei a ração de Dolche. Terminando o feriado, entregarei o pacote. Feliz
Natal! ” No quarto, os roncos diminuíram apenas durante a madrugada, justamente
quando os sinos e as músicas natalinas ecoaram nos lares ao redor.
Pela manhã, só o labrador se levantou. O
animal gemeu estranhamente ao apontar o focinho na direção do leito onde seu
dono estava deitado. Repetiu o gesto algumas vezes. Depois, passou a caminhar
manco nos espaços da residência, inquieto. Deitou-se, levantou-se. Muitas horas
se passaram, até que a casa foi invadida pelo zelador do condomínio e um dos
vizinhos. O labrador, sem compreender os acontecimentos, esboçou latir para os
intrusos, mas desistiu. As cortinas foram abertas. A luz penetrara no recinto como
uma faca dourada em um cuscuz de tapioca. Os dois intrusos conversavam entre
si. A claridade fez os olhos do animal lacrimejarem mais do que o normal. Foi
quando despontei diante da porta da casa
e toquei a campainha duas vezes. Fui atendido pelo
vizinho que fez questão de ser direto na pergunta.
—
Quem é você?
Disse-lhe
que era o vendedor de ração para cães e que havia prometido trazer ao
proprietário um pacote do produto.
— E
você conhece o Fofucho há muito tempo?
Notei
que o indivíduo havia se sentido no direito de esmiuçar minha vida. Mas eu não
quis aprofundar a conversa e procurei saber o que estava acontecendo. E a
resposta foi direta:
— O
homem morreu; é isso, o Fofucho morreu.
— O
quê? – retruquei assustado.
— E
você conhece a família dele? – perguntou-me com ar grave. O vizinho não
abandonava o papel de detetive. Ainda sem nada responder, vi o conhecido
zelador se aproximar. Ele saía do quarto meio transtornado e assombrado, já
despejando o anúncio:
—
Serão necessários quatro ou cinco homens para carregá-lo.
Aquela
frase molhou meus olhos. Bem ao lado, vi Dolche com suas quatro patas separadas
esforçando-se para sustentar o próprio corpo; sua cabeça apontava desanimada
para o chão. Senti um aperto na garganta. Dificilmente nos apropriamos da dor do
outro, mas foi isso o que aconteceu quando olhei para o animal. Disse-lhes que
não conhecia qualquer familiar, mas que já havia escutado algo sobre uma irmã
que vivia em Portugal. Em seguida, me prontifiquei a ficar com o animal como
forma de apoio. Eles aprovaram a minha iniciativa de ficar com o bicho. E, de
modo prático, após assegurarem que cuidariam do corpo de Fofucho,
cumprimentei-os com um sinal de cabeça e despedimo-nos.
Saí
dali amparando o labrador mais triste e gordo do mundo. Foram precisos mais de
dois meses antes de tudo ganhar um ar de normalidade. Descobri que os irmãos
distantes e outros familiares de Fofucho apareceram para avaliar o destino dos
bens do gordo. Todos desejavam tirar algum proveito. A sensação que tive era a
de que os familiares já esperavam pelo desfecho. Enquanto isso, Dolche
mantinha-se abatido em um dos cantos de sua nova casa. Nem a melhor das rações
devolveu-lhe a fome. Devia estar sentindo falta da caminhada com o amigo, do
seu cheiro, de deitar-se aos seus pés e sentir a brisa do ventilador. E
aconteceu de Dolche fugir de casa e seguir solitário até as portas do antigo
lar que distava mais ou menos 400m – as duas residências eram relativamente
próximas. Todavia, a antiga casa de Fofucho e Dolche encontrava-se fechada.
Isso obrigou o labrador a deitar-se na calçada e ficar ali esperando só Deus
sabe que tipo de alívio à dor. Enquanto isso, dentro da residência, alguns
irmãos, a portas fechadas, brigavam e discutiam sobre o destino do imóvel e
outros bens.
Quando
encontrei Dolche ressonando, solitário, olhos caídos naquele lugar, mantive-me
ao seu lado. Fiquei naquela calçada o tempo suficiente para escutar detalhes da
discussão exaltada entre os familiares de Fofucho. E durante aqueles breves
instantes senti, pela primeira vez, vergonha da minha espécie. Dolche, com a
cabeça apoiada sobre as minhas coxas, gemia baixo. Cheguei a conduzi-lo de
retorno à casa, mas em outra oportunidade o cão voltou a fugir. Desta vez,
encontrei-o morto no calçadão, próximo ao lugar em que costumava urinar durante
os passeios com o seu dono. Foram preciso dois homens para carregá-lo.
Enterrei-o no quintal da minha própria casa. Todavia, como o cão nunca
conseguira se acostumar nem comigo e nem com o novo lar que tentei oferecer,
cuidei de escrever um epitáfio na pequena lápide que fosse o mais justo
possível e que pudesse honrar a vida daquele animal: “Aqui jaz o maior amigo
que Fofucho possuiu, trata-se de Dolche, um labrador que perdeu o lar, e duas
vezes a sua vida”.
Desenho
Louisa Monte Alegre
CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Peçanha
Liah Pego
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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