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Antologia Lendas Urbanas: E se forem reais? - 1x14: Mais uma Noite (Season Finale)

Conto de Marcela Fassy
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Sinopse: Mais uma noite traz a história de um homem solitário, vivendo numa velha casa cheia de fantasmas e em companhia de sua falecida avó. No dia em que a casa recebe uma visita, coisas surpreendentes começam a acontecer...

1x14 - Mais uma Noite
de Marcela Fassy
  
   

Gostávamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (hoje que as casas antigas sucumbem à liquidação mais vantajosa de seus materiais), ela guardava as lembranças de nossos bisavôs, do avô paterno, de nossos pais e de toda a infância.

Julio Cortázar, Casa tomada

 

Os dias são muitos, mas à noite é uma coisa só: como o véu negro que Vovó usava para ir à missa, e que agora mais parece uma teia de aranha, tão esgarçado e cheio de buracos está, mas que continua a ser uma coisa só, um contínuo de tramas negras, embora a luz do dia lhe penetre pelos rombos do tecido.

Vovó está no porão, sentada em sua cadeira de balanço, e nunca se move. Conservo-a na mesma posição em que estava quando morreu, pois
me falta decisão para levá-la a algum lugar. Morreu adormecida, sentada em sua cadeira de balanço, pobrezinha, mas o certo é que teria sido muito improvável que morresse de outra maneira, pois no final já se movia muito pouco e só raramente estava desperta. Por esta razão, parece-me natural que permaneça ali.

Além disso
, os afazeres do dia, essa contingência de claridade por entre as tramas do tecido negro, tomam-me muito tempo. Tenho de passar os dias mostrando casas às pessoas que desejam comprar ou alugar um imóvel; recém-casados, famílias que subitamente se tornam mais ou menos numerosas com a chegada de uma criança ou um parente defunto. Quanto a mim, nunca desejei uma casa nova; o fato de percorrer a cidade todos os dias mostrando  casas às pessoas me é mais que suficiente, e quando lhes falo sobre os armários espaçosos na cozinha ou sobre a boa incidência de luz nos ambientes, sinto-me um pouco morador de todas aquelas casas. Afinal, possuo as chaves de todas elas e, além disso, creio que Vovó teria dificuldade em se adaptar a uma mudança.

Está muito bem instalada no porão, coisa que nas residências de hoje não se usa mais. As mais requintadas dispõem de closets com plafons iluminados, revestimentos de mármore nos salões e cozinhas em formato de ilha. Pouca gente aprecia hoje um bom piso de tábuas que rangem, paredes ligeiramente oblíquas, um forro sobre o qual o barulho do vento se faz
mais audível.

Há quem insinue que os ruídos de minha casa me impedem de dormir; nada mais distante da verdade. Se porventura consigo fechar os olhos e adormecer por algumas horas durante a noite, devo isso ao estalar da madeira, à algazarra do vento sobre o forro, ao ranger das dobradiças, a esses sons que me acalentam desde a infância na casa onde cresci com Vovó. Nossa casa sempre esteve cheia de fantasmas, quase todos muito gentis. Sempre me senti muito à vontade em sua companhia; são em geral muito compreensivos e possuem uma capacidade admirável de não se espantar com as coisas, tudo lhes parece corriqueiro.

Talvez
seja esse o motivo pelo qual, quando menino, não apreciava os jogos dos garotos no pátio da escola; eram ruidosos e agitados demais para mim. Eles me davam bofetadas e colocavam aranhas em meu sanduíche, mas eu não devia me importar, conforme me explicou Vovó, pois era minha culpa, pelo fato de eu não gostar deles e preferir jogar com os fantasmas.

Vovó era a única que me compreendia, embora às vezes me corrigisse, porque me amava muito. Para me corrigir, me deixava trancado por dias no porão, sem comida, porque sabia que eu gostava muito de jogar com os fantasmas que viviam no porão.

À noite, quando fecho os olhos para tentar dormir, rostos diversos desfilam diante de mim como numa grande tela: alguns conhecidos, outros que surgem pela primeira vez; alguns me deixam confuso quanto ao fato de já tê-los visto antes. São rostos de mortos. Não falam comigo, apenas desfilam diante de mim, vivendo suas vidas e tendo a bondade de me proporcionar um pouco de entretenimento. É como assistir a um filme, ou a vários filmes em sequência; na medida em que as imagens vão se sucedendo, vou me sentindo cada vez mais sonolento e adormeço. Nunca sei o ponto exato do filme em que adormeci; de todo modo creio que, uma vez adormecido, só sonho com fantasmas.

Há o menino que espera por sua mãe; ela lhe disse que precisava viajar para um lugar distante e que um dia voltaria para buscá-lo. O menino tem olhos chorosos e nunca se separa de seu tamborzinho de brinquedo, para não correr o risco de esquecê-lo no dia em que a mãe vier buscá-lo, caso eles precisem sair apressados. Tenho pena do menino, embora o toque do tamborzinho me seja irritante e sua dor me seja incompreensível, pois Vovó nunca teria me abandonado como fez a mãe dele.

Há a senhora gorda que procura por seu gato; está sempre arrastando os chinelos de pelúcia cor-de-rosa pela casa e chamando: Aziz! Aziz, onde você se escondeu? Volte
, por favor, assim você deixa sua mãezinha muito triste! Até que num determinado momento deixo de ouvir o som dos chinelos se arrastando pelo assoalho; a senhora está sentada sobre a poltrona da sala e olha para o vazio. Observo as veias azuis em suas canelas enormes; penso que ela sabe que Aziz não voltará, mas se esquece.

Há a mulher que espera pelo noivo que a abandonou e partiu com outra; é magrinha como um cisne, e sua camisola de tule branco se arrasta pelo assoalho, cobrindo-lhe os dedos dos
pés. Usa rouge nas bochechas para disfarçar a palidez; quer estar bonita para o noivo, para quando ele se arrepender e voltar para ela. Passa as noites a chorar, estirada sobre a banheira; seu choro tem o som de um ratinho assustado se esgueirando pelas frestas.

Há o homem que se enforcou no quarto de leitura, e quando isso aconteceu tiveram de reformar a casa, porque o forro não era tão resistente e acabou despencando junto com ele. Nas noites em que o homem se enforca desperto assustado pelo ruído das vigas de madeira desabando.
Tenho especial afeição pelo suicida. Nunca pude confiar inteiramente nas pessoas que nunca tentaram se matar; seu apego incondicional à existência me parece de mau gosto.

Os sons que fazem os mortos vão se embaralhando com os ruídos da casa velha, os rostos conhecidos dos mortos vão se embaralhando com rostos novos, desconhecidos, de modo que nunca estou
inteiramente certo se as coisas existem ou se as estou inventando, se estou desperto ou adormecido. Penso que no fundo não faz diferença; a noite é uma coisa só. Penso que estou finalmente enlouquecendo: que grande alívio! É gratificante alcançar algo que almejamos a vida toda; a sanidade é extenuante. Entretenho-me enumerando formas de provar que enlouqueci, para que os outros me possam tirar a razão: 1- nunca mais cortar o cabelo; 2- deixar de falar sozinho; 3- dar um tiro no pé e sair voando; 4- agir como se eu e as coisas ao meu redor existíssemos; 5- falar sempre a verdade. Os pensamentos, os rostos e os sons ao meu redor vão se embaralhando até se tornarem uma só coisa, suave, quente e macia como o cobertorzinho de lã com que Vovó me embrulhava nas noites de frio. Tenho, então, a impressão de estar adormecendo.

A noite é uma coisa só, mas os dias por vezes trazem fatos inesperados. Geralmente desagradáveis, às vezes apenas insólitos; outras (poucas), nos trazem coisas alegres. Sinto- me mais seguro durante a noite, protegido pela casa onde todos os ruídos e todos os fantasmas asseguram que nada vai me acontecer. Por isso, quando o sol entra pelas frestas da janela e me obriga a constatar que amanheceu, sinto-me triste e cansado.
Tenho de levantar, me lavar e me barbear, preparar o café antes de tomar o ônibus para o trabalho. Era tão bom quando Vovó coava o café todas as manhãs, e deixava uma camisa branca engomada sobre o cabide. Era como se os dias, e não a noite, fossem uma coisa só, e eu não precisava despertar com essa sensação de que os dias são longos e traiçoeiros.

No entanto, há dias em que tenho sorte. Há dias em que o ônibus passa vazio e consigo um lugar próximo à janela; há dias em que a recepcionista da imobiliária, uma mocinha muito gentil, me oferece rosquinhas de nata; há tardes em que o Cine Nazaré exibe reprises de fitas antigas. Há três dias encontrei um broche dourado com pedras azuis sobre a calçada; na tarde de quinta-feira encontrei Fernando, meu antigo colega de classe, que visitava um
dos quartos na Praça Nilo Peçanha.

– Desde que nos casamos vivemos com os pais de Lúcia, disse-me, mas agora com a criança queremos um lugar só nosso, é melhor assim.

Fernando, mesmo sendo bom no futebol, não ajudava os meninos quando eles enchiam de formigas o meu café com leite, e olhava-os com desaprovação quando me davam rasteiras para que eu caísse e quebrasse as lentes. Lúcia também era gentil, embora um pouco gorda, o que é compreensível em seu estado. Usava um vestido azul com babados que lhe cobriam
a barriga pontuda e transbordante, e quando sorria as manchas em forma de asas de borboleta, que são comuns nas grávidas, tornavam-se mais evidentes em suas bochechas. Quando íamos descendo as escadas que davam para a área de serviço imaginei Lúcia tropeçando e voando como uma grande borboleta azul escada abaixo; não sei por que, às vezes tenho pensamentos assim, fantasiosos. Vovó sempre dizia que eu tinha propensão a sonhar acordado.

Estavam muito contentes com o apartamento; conversavam sobre as cores do quarto do bebê e sobre onde colocariam o bercinho. Os pais de Lúcia ajudariam com a entrada. No dia marcado para a assinatura do contrato preparei biscoitos amanteigados, sanduíches e torta de maçãs com merengue; não me esqueci da pitada de noz-moscada que é o segredo do recheio da torta de maçãs, conforme
Vovó me ensinou.

Limpei o serviço de chá de
Vovó que estava guardado no porão, aquele com desenhos de salgueiros e um casal de pombinhos voando no bule e nas xícaras. Vovó me contou que as estampas do serviço de chá remetiam a misteriosas lendas orientais, e que falavam sobre o amor proibido entre a filha do Imperador e um de seus criados; após serem punidos com a morte, os amantes se transformaram em pássaros, e puderam voar lado a lado no azul do céu. Vovó nunca permitiu que eu me aproximasse da porcelana inglesa, que fora presente de casamento da Baronesa; “não é brinquedo para meninos descuidados”, dizia. Eu então me punha diante da cristaleira a admirar a louça azul e branca e a sonhar com salgueiros à beira do lago, com histórias de amores impossíveis e com amantes que se transformavam em pombinhos azuis, voando juntos pela eternidade.

A campainha tocou às cinco. Fernando vinha só; Lúcia estava com enjoos e preferiu ficar
com  a mãe, repousando. Senti-me aliviado, porque, por distração, acabei colocando o serviço de chá só para dois – Vovó sempre dizia que eu era muito distraído. Fernando teceu elogios à nossa casa que era, em sua opinião, encantadora e muito espaçosa; pude ver que olhou com admiração para a renda de bilro e para os esquilos de porcelana sobre o aparador.

Enquanto tomávamos chá e conversávamos sobre os tempos de juventude – Fernando corou e encarou as pontas dos sapatos quando me lembrei do dia em que, por brincadeira, os meninos me penduraram na goiabeira atrás do campo de futebol, e de como aquela tinha sido uma tarde divertida – enquanto falávamos dessas recordações preciosas e nos dávamos conta de como o tempo havia passado, achei que Fernando se sentia bem em nossa casa; parecia integrado ao ambiente e era quase como se já tivesse me visitado outras vezes. Repetiu a torta de maçã e deixou que eu o servisse com uma grande colherada de merengue; não era aquele tipo de visita cerimoniosa, que deixa a gente pouco à vontade. Gosto de receber visitas, quando são gentis; às vezes sinto-me só nesta casa, apesar da companhia de
Vovó e dos fantasmas.

Tive
a impressão de que a casa também aprovava a presença de Fernando. Fazia boa figura sentado sobre a poltrona azul, bebendo seu chá e experimentando os biscoitos amanteigados preparados por mim; sua maneira de estar ali era muito natural e não entrava em conflito com o assoalho, com os móveis e paredes de nossa casa. Tive certeza de que, se vivesse conosco, Fernando seria bem recebido e querido por todos; saberia respeitar e compreender a casa. Poderíamos tomar chá no serviço de porcelana inglesa de Vovó aos domingos; eu poderia experimentar novos preparos de tortas e Fernando diria se seria preciso acrescentar mais claras ou mais açúcar à receita. De manhã, durante o café, conversaríamos sobre os estalos e rangidos que tivéssemos ouvido na noite anterior; poderíamos trocar impressões sobre os fantasmas que visitassem nossos sonhos.

O primeiro estampido que se ouviu foi o bule de chá se partindo em dezenas de cacos. Em seguida as xícaras e os pires, de modo que os salgueiros e os pombinhos se separaram para sempre, e então as luzes começaram a piscar e ouviram-se fortes batidas vindas do porão, ruídos secos de madeira sendo golpeada, em intervalos maiores a princípio, e depois com fúria e obstinação. O ar tornou-se de repente gélido, e uma onda de frialdade, cheia de ódio e inconformidade, varreu o salão.

Expliquei a Fernando que a louça era frágil, a rede elétrica precária e o estalar da madeira bastante comum em casas antigas como a nossa; as paredes velhas estavam embebidas de umidade e não havia o que temer. Mas eu soube, no entanto, que Vovó estava zangada: no fundo, nunca gostou que eu jogasse com os meninos da escola.

Nunca temi os fantasmas de nossa casa – seria insensato temer criaturas que só fazem cuidar da própria vida. De Vovó sim, sempre tive muito medo, porque ela me amava muito; quando se ama verdadeiramente uma pessoa, é preciso corrigi-la, e Vovó sabia demonstrar seu amor por mim.


Não procurei deter Fernando, que se desculpou por sair apressado; não podia deixar Lúcia sozinha por muito tempo naquele estado.
Tive raiva de Lúcia e tive raiva de Vovó, por me privarem da companhia de Fernando. A raiva, como a noite, é uma coisa só; quando se sente raiva de alguém ou de alguma coisa, uma corrente elétrica se acende em nosso sangue e nos obriga a constatar que o mundo é um lugar cruel e merecedor de nossa revolta. A raiva nos torna cegos a qualquer objeto que não ela mesma, e se torna uma fúria indistinta contra tudo e contra todos. Eu, no entanto, nunca quis que Vovó estivesse morta: foi por distração que troquei os remédios naquela tarde de abril.


Depois de algum tempo a corrente se apagou; os ruídos que vinham do porão foram cessando e a eletricidade se estabilizou. Comecei a juntar os cacos e tive muita vontade de chorar, porque Vovó me amava muito, porque por minha culpa o serviço de chá de Vovó fora destruído e os pombinhos azuis estavam agora separados por toda a eternidade, porque o contrato continuava intacto sobre o aparador, sem a assinatura de Fernando, e porque era tudo uma coisa só.
 

 

* * *

 

A noite é uma coisa só, mas essa noite Vovó se mudou. Escolhi para ela uma casa de dois pisos, bastante arejada, no Bonfim. O imóvel está a venda há muito tempo, pois a proximidade do cemitério dificulta os negócios; “a morte desvaloriza”, disse o dono da imobiliária. O Senhor Marini disse que o mais provável será que os herdeiros aceitem a proposta da construtora, que pretende demolir a casa e levantar em seu lugar um prédio de salas comerciais. Será uma pena se destruírem as lajotas vermelhas da fachada frontal, em estilo art-decó.


A mudança de
Vovó foi simples; não foi difícil acomodá-la no banco traseiro do velho automóvel, cujo motor apenas engasgou um pouco, pois estava há muitos anos sem sair da garagem, mas em seguida avançou calmamente pelas ruas silenciosas. A noite era fresca e suave.


Seus pertences de maior estima couberam todos no baú; Vovó já se tinha desapegado do serviço de chá, que tomaria mais espaço, para nossa sorte e nosso infortúnio. Tive que transportá-la com muito cuidado, pois os ossos já estão muito frágeis, e acomodei-a na cadeira de balanço ao lado da janela da cozinha, de onde poderá ter uma boa vista das sepulturas e, em especial, de um belo jazigo encimado por um anjo de mármore, que estende aos céus suas magníficas asas e prescreve silêncio.


Despedimo-nos e eu prometi voltar em breve para visitá-la. Apaguei as luzes ao sair, e as sombras leitosas que a lua projetou sobre a penumbra me fizeram pensar no véu que Vovó usava para ir à missa, no contínuo de tramas negras e na luz que penetra pelos rombos do tecido, da noite e de todo o resto. Antes de cruzar a porta, senti pela última vez o cândido olhar de Vovó sobre meus ombros. Não olhei para trás.



Conto escrito por
Marcela Fassy

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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