5x03 - Aurora do Natal
de Marilei Cassemiro
Naquela pequena rua sem saída, da periferia de
uma grande cidade deste Brasil, as histórias dos que ali habitavam estava
escrita nas fachadas das antigas casas simples, onde a pobreza tomava lugar.
Todos se conheciam, eram na maioria parentes e conhecidos como compadres e
comadres, sogros e sogras, irmãos, primos e parentes por afinidade. A maioria, funcionários
aposentados da antiga estrada de ferro e pedreiros, tecelões, porteiros,
empregadas domésticas, lavadeiras, babás, que ao raiar do dia saiam apressados
para o trabalho. Se lhes perguntassem se eram felizes, diziam que sim, mas
relatavam as agruras da vida durante a conversa e demonstravam uma esperança
peculiar no olhar. Pobreza sobrava, mas fé e um riso fácil no rosto eram
constantes. A iluminação à
noite vinha de dois postes, um no início e outro no fim da rua, que era calçada de
paralelepípedos, coisa rara, graças a estrada de ferro que passava por perto.
Para os que ali moravam,
ela tinha um nome importante, rua Primeiro de Maio, que os mais antigos se
referiam com orgulho como sendo a rua do Trabalhador. Festas de aniversário
tinha toda semana, pois o que não faltava era criança e mais criança dentro dos
lares, no mínimo eram seis filhos, a partir daí, quando se perguntava a razão
de tantos filhos, a resposta era certa: Porque
DEUS quer! E a conversa tomava outro rumo. Tinha ali também o boteco do
José da Sardinha, que era conhecido como “Boteco Pé Redondo”, ele era
especialista em sardinha frita, tira-gostos e uma cachaça que descia redonda,
além de vender velas de todas as cores para os santos. Era querido por todos na
rua, bom camarada, sempre sorridente, mas vivia sozinho. Abria seu boteco a
partir da uma hora da tarde e fechava a uma hora da manhã, ali tudo cheirava
gordura e cachaça, que os pinguços despejavam o primeiro gole para o santo,
assim o boteco era batizado. José da Sardinha era devoto de São Jorge, este
santo guardava a entrada num pequeno aparador de madeira ao lado do único
balcão, tinha sempre uma vela acesa para o santo protetor, havia três
prateleiras na parede atrás do balcão, onde se viam as garrafas de bebidas
destiladas, uma pia, uma mesa, além dos copos. No fogão potente borbulhava uma
gordura sempre fervente num tacho e no pequeno espaço fora do balcão se via
duas mesinhas encostadas perto de uma janela antiga, que ficava sempre aberta,
algumas cadeiras avulsas. Os bêbados não se sentavam para que não fizessem
parada, as cadeiras eram para quem fosse degustar as especialidades do boteco a
partir do momento que abria, eram assíduos os frequentadores.
Chegou o mês de dezembro, por todo o canto da
cidade, tudo era
enfeitado, o brilho das luzes nas ruas e lojas, pacotes de presentes, os
sorrisos das pessoas que iam e vinham, o movimento festivo era constante, menos
na rua Primeiro de Maio, que seguia como sempre, simples, as festividades do
fim do ano não se via ali. As casas não eram enfeitadas com luzes, nem papéis
brilhantes, árvores de Natal, uma ou outra tinha em seu interior uma
arvorezinha e faziam uma pequena novena para o Menino Jesus. Era isto, não
havia planos para as festas, pois o pouco que ganhavam era para o sustento de
muitos. Um ou outro falava sobre o Natal, que para a maioria era dia comum.
O que diferenciava e mudava um pouco o clima do
lugar era o boteco do José da Sardinha, ele era assim, conhecido por conta da
deliciosa comida e a sardinha que fazia no capricho. Toda noite, a luz morteira
no interior do boteco era chamarisco de mariposas, os homens iam ali no final
do dia, vindos do trabalho para esquecer suas mágoas e frustrações com um bom
gole de cachaça, algumas cervejas, tira-gostos e as fumaças de cigarros,
clientela não faltava.
Ele ali estava desde as primeiras horas da tarde
até a virada da noite, lá por volta da uma hora da manhã, quem por ali passasse,
via ele lavando a calçada ou empurrando algum bebum para fora do boteco.
Dezembro trouxe calor sufocante, acompanhado de
tempestades à noite,
no boteco o velho ventilador não dava conta de refrescar o ambiente, muito
barulho e pouco vento. Quando a luz dos raios brilhava no céu e eles estalavam,
logo se ouviam os trovões que balançavam as estruturas, seguido de ventos e a
chuva pesada despejava do céu, os poucos fregueses que ali estavam se
encostavam no balcão,
demostrando certo receio. José da Sardinha encostava a velha porta de madeira e
vidro, ali todos se sentiam seguros e ficavam até altas horas.
Era véspera de Natal, no boteco não tinha nada
que lembrasse esta data, era igual a todos os dias, mas havia no ar um cheiro
de bacalhau e pernil assados, peixes fritos e muita fumaça de cigarros. Neste dia o boteco esteve cheio de seus
fregueses, que além de comer, levavam para casa um bom pedaço dos petiscos.
Enquanto esperavam tomavam um trago de cachaça para abrir o apetite.
O José da Sardinha não parava um segundo, muito
trabalho o dia inteiro, o calor era tanto que vestia uma camiseta cavada, e
sobre o ombro desnudo tinha um pano de saco que ele enxugava o suor do rosto
constantemente, o bafo quente que subia do fogão era escaldante. Ele servia as
bebidas e as porções de bacalhau e pernil, lavava os utensílios, limpava as
mesas e balcão, varria o chão, fritava os peixes, guardava as garrafas e
entregava as encomendas, era ágil e prestativo, sempre com boas palavras e um
sorriso no rosto.
Lá pelas dez horas da noite daquela véspera de
Natal, José da Sardinha não tinha mais o que servir. Ali estavam, Mané das
Quantas, frequentador do boteco, estava encostado no balcão e sorvia uma cerveja gelada, e, sentados em uma das
pequenas mesas próxima a janela o ferreiro, Tião Melado e sua mulher dona Amélia dos Anjos,
todos muito amigos. Contadores de causos, sorviam as bebidas e comiam os
tira-gostos com prazer e alegria, eles se gabavam de não ficarem tontos, mesmo
tendo tomado umas cachaças.
O ar estava quente, abafado, conversas e risos
corriam soltos entre os amigos, nisto um raio corta o céu e se houve um trovão
forte, acompanhado de vento. A tempestade se anunciava. Tião Melado se levanta, fecha a porta e
encosta uma folha da janela. Eis que a chuva cai pesada, a lâmpada acesa pisca dando sinal de que a energia elétrica
ia acabar, José da Sardinha, acende uma vela num aparador de metal perto da
imagem de São Jorge, para que não fiquem no escuro, vai até o forno do fogão e
de lá tira o bacalhau e um bom pedaço do pernil que guardou, além da travessa
de peixes fritos que coloca sobre o balcão e um garrafão de vinho que leva até
a mesa para que comessem juntos. Desce um lado da porta de aço e deixa apenas a
porta de madeira fechada sem tranca.
Ele era sozinho, depois que sua mulher o deixou
não arrumou mais ninguém, não tinha filhos, isto era tudo o que sabiam dele.
Seu Natal era igual a todos os dias do ano, era feliz assim, eles conversavam
animados. Quando ouvem o estalar e
brilho de um raio que caiu perto, logo acompanhado de um estrondo de
trovão que tremeu a terra, a luz elétrica piscou. Todos ficaram calados diante
do barulho do vento forte e da
chuva torrencial que caia, e dona Amélia dos Anjos fez o sinal da cruz, neste
momento alguém abre a porta do boteco, uma rajada de vento acompanhado de chuva
entra junto com a pessoa.
Os três homens e dona Amélia dos Anjos se
viraram para olhar quem chegou, uma mulher muito molhada adentrou no boteco,
ela era pequena, frágil e estava grávida, fechou a porta atrás de si e parou
olhando para eles e os cumprimentou. José da Sardinha se levantou e foi ao encontro dela, que
com uma voz fraca lhe pediu se podia lhe servir um copo de vinho, ela tremia de
frio.
O dono do boteco estranhou, pois nunca havia
visto aquela mulher na redondeza, tudo indicava que era uma dama da noite, mas
estava com a gravides avançada. Ao ver ela tão molhada e frágil, de pronto lhe
serviu o vinho e lhe perguntou se aceitava umas toalhas para se enxugar e um
pouco de comida, pois era quase meia noite. Ela aceitou as toalhas e enxugou os
cabelos e o corpo, ele lhe deu uma toalha seca que ela colocou sobre os ombros,
depois se dirigiu para a mesinha vazia, ele a serviu. Começou a comer devagar,
com ar sofrido e cansado, os homens e dona Amélia dos Anjos, se afastaram,
foram para perto do balcão onde conversavam baixinho.
Por três vezes ela se levantou e foi até a
porta, olhou para a rua que estava alagada pela chuva torrencial que caia, numa
dessas vezes, ela gemeu alto e olhou para José da Sardinha e com a voz sofrida
lhe disse que estava em trabalho de parto e a criança ia nascer, precisava de
ajuda.
Todos tiveram um minuto de paralisação, contudo,
dona Amélia dos
Anjos tomou a frente e pediu ao senhor José da Sardinha que colocasse rápido
água para esquentar e depois arrumasse o que tivesse de pano e lençóis velhos
para lhe dar. Que os outros dois homens unissem as mesas e deixassem forradas
com as próprias toalhas e ajudassem a mulher a se deitar. O trabalho de parto
estava adiantado e dona Amélia dos Anjos disse que era parteira desde mocinha,
esta profissão santa que aprendeu com sua avó.
Não teve nenhum filho, mas trouxe ao mundo muitas crianças que ela
considerava como seus, enquanto isto o mundo lá fora despencava com a
tempestade que caia.
A dor aumentou e a criança estava prestes a
nascer, Amélia dos Anjos perguntou o nome da moça, que disse se chamar Maria, e qual
seria o nome da
criança? Ela lhe disse que ainda não tinha nome, a criança nasceu, era um lindo
menino! Tião Melado olhou para o relógio que tinha na cintura e viu que era
meia noite, disse que nasceu na mesma hora do Menino Jesus, em um pobre lugar e
entre trapos.
Todos que ali estavam se emocionaram com o choro
do recém-nascido e do amor com que a mãe o acolheu no colo, tão pobre e desnudo
de toda riqueza, pois não tinha uma roupinha, estava envolto em trapos. Lá fora a
tempestade continuava ainda mais forte, então José da Sardinha falou com dona
Amélia dos Anjos que seria melhor colocar mãe e filho na sua cama, no pequeno
quarto que tinha nos fundos do boteco. A parteira concordou, foi até lá, fez
uma pequena limpeza, trocou a roupa de cama por uma limpa, dona Amélia tirou a
roupa úmida de Maria, colocou uma camisa limpa e os panos necessários, a
acomodou na cama junto com o pequenino e eles dormiram.
Os amigos voltaram para o boteco, limparam o
lugar e se sentaram para comer e festejar alegremente o Natal, mesmo com a
tempestade que ainda caia, eles sentiam paz, felicidade e um amor profundo no coração, o ar
estava diferente, como se tivessem acendido uma luz imensa. Eles acabaram
dormindo debruçados sobre as mesas, e logo no amanhecer dona Amélia dos Anjos
foi ver a mulher e a criança, mas Maria não estava lá, a cama estava
vazia. Chamou José da Sardinha e os
outros homens que foram para a rua em busca de Maria e do menino. Despertava a
aurora do dia de Natal, a chuva havia passado e tudo estava úmido.
Enquanto isso dona Amélia dos Anjos foi lavar os
panos que usou durante o parto e arrumar a cama onde mãe e filho haviam
dormido, mas para sua surpresa os encontrou limpos e novos sem uso, e a cama
estendia, sem marca de que ali havia dormido alguém, exalavam um perfume
suave. Procurou os trapos, que havia
enrolado o pequeno, e não encontrou nenhum, eram lençóis e toalhas novos.
A emoção foi demais, dona Amélia dos Anjos
chamou os homens para que vissem aquilo, não havia vestígios de que ali foi
feito um parto, como um milagre. Tudo novo, limpo, perfumado, algo divino,
diante disso, tiveram a certeza de que na noite tempestuosa da véspera de
Natal, acolheram no boteco que cheirava gordura, cachaça e fumaça de cigarro,
naquele bairro tão pobre e esquecido, uma mulher em trabalho de parto que ali
apareceu, cujo nome era Maria e deu à luz a um lindo menino. Lá dentro de seus
corações, a alegria tomou lugar, pois eles sabiam que tiveram a honra de terem
trazido ao mundo o Menino Jesus.
Desenho
Marcel Cassemiro Santos
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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