5x05 - Fim de Ano
de Carlos Dantas
A neve caía lá fora.
Dentro da tv, passava pela milionésima vez um daqueles filmes “xaropados” da
época de Natal. As propagandas “jingle bell” tocavam em todos os lugares, e os
papais noéis invadiam ruas, shopping centers, calçadas e outdoors. Dezembro
era, sem dúvida, o mês mais chato de todo o ano. Todos os anos.
Nem o salário extra
compensava o aborrecimento de viver naquela época.
- Décimo terceiro para
quê? Para gastar com presentes, confraternizações e outras bobagens? Ora bolas.
Juca transformava-se a
olhos vistos no final do ano. Na firma, o departamento de recursos humanos já
havia estudado o seu caso para dispensar o trabalho dele naquele período.
Colocá-lo de férias. Mas fim de ano é fim de ano. Aumenta o trabalho. Mais
vendas; balanço. Preferiam aturar o seu mau humor a abrir mão de seu trabalho,
afinal de contas era um dos mais hábeis funcionários da área contábil da
empresa.
Diziam que ele não
gostava do Natal porque aumentavam as vendas e consequentemente o trabalho. Pilhas e pilhas de
notas fiscais de compra e venda e talões de pedidos entupiam todas as gavetas.
Eram analisadas uma a uma. Mesmo com todos os computadores ajudando no
trabalho, Juca reclamava.
Na verdade, não era
aquele o motivo. E ele bem sabia, mas não dizia a ninguém. Para quê? Besteira.
Isso era coisa dele. Ninguém tinha nada a ver com isso.
Sua última namorada
ficou muito magoada com ele e acabou passando as festas sozinha.
Quando ela o conheceu,
no começo do ano, nunca poderia imaginar o quanto ele se transformaria.
- Você é louco,
insano. Vá procurar um tratamento.
Júlia gritava com
transtornada e amedrontada. Na semana anterior, Juca se descontrolou e lhe deu um tapa no rosto.
O namoro termina ali, mas os
resquícios do namoro, daquela vida quase em comum, a obrigará a ir falar com ele. Desta vez, era
a amizade que chegava ao final.
Tivesse ela esquecido alguma coisa, uma peça
de roupa na casa dele, já dava por perdida. Mas ela achava que não havia
deixado nada lá. No começo da primavera, o relacionamento já havia se deteriorado
um pouco, e Júlia, prudentemente, evitava um relacionamento mais doméstico e
que pudesse facilitar essa troca de casa, de roupas e outros pertences.
Intuição feminina.
Juca era reservado no
tocante à sua vida pessoal.
Pai e mãe, só mesmo
nas fichas preenchidas. Os registros do departamento pessoal acusavam ser do
interior do Rio Grande do Sul.
Quando perguntado,
dizia apenas ser do Rio. Chegou a ter o apelido de “Peixe” – “É do rio” – diziam na
brincadeira. Nunca reclamara. Achava até bom, pois ninguém se aprofundava na em
sua história.
Ao chegar em casa
abria seu escaninho postal para verificar a correspondência. Ritual religioso.
Duas vezes por dia. Ao sair para trabalhar, e ao voltar para casa. Nos sábados,
se saísse, tantas vezes saísse, tantas vezes olharia o interior daquela
caixinha mágica. Na saída e na entrada. Nunca se dirigia ao zelador do prédio.
Não para perguntar sobre correspondências.
Recebia regularmente
as contas de luz, telefone e cartão de
crédito. Vez por outra, uma propaganda qualquer que era rasgada ali mesmo.
Correspondência mesmo,
daquelas que a gente gosta de receber – escrita por uma pessoa e não por uma
empresa – ele nunca recebia.
Mas esperava.
Dos pais, dos irmãos,
dos amigos da mocidade. Aqueles que, como ele, perderam a juventude por não
terem como viver bem naquele fim de mundo. Viviam sem ver futuro.
Os pais, rígidos, não
hesitavam em recorrer ao castigo físico para exigir respeito à autoridade.
Travessura era punida com castigo. Todos viveram isso.
A vida era detestável.
Nada de bom acontecia.
A mãe brigava com o
pai, que sempre voltava bêbado para casa. O pai descontava nos filhos. O irmão
tivera o braço quebrado numa queda provocada pelo pai, numa de suas crises
familiares.
Juca era o filho mais
velho dos cinco que sobreviveram. Sua mãe dizia que, ao nascer, fora muito bem
recebido e todos diziam que tinha sido um presente de Natal antecipado. Nasceu no dia 15 de
dezembro.
Com o passar dos anos,
vieram os irmãos, e a vida ficou mais difícil. O pai entrou de cabeça nas
bebidas.
Sua fantasia de
criança era, ano a ano, massacrada por impropérios gritados por seus pais. E
Papai Noel ficava cada vez mais distante. Aniversário e Natal juntos; nem um
nem outro.
Não se lembrava de ter
comemorado nenhum deles. Os irmãos tinham até mais sorte. Nasceram no meio do
ano, e às vezes acontecia um bolinho com parabéns para comemorar.
Fim de ano era só de Juca. E
comemorar o seu aniversário era dar aos outros o direito de cobrar um presente
de Natal. A esse luxo a família não se permitia. Por isso, o Natal era o mesmo
todos os anos, e era o mesmo para todos: nada.
E para Juca, nem
aniversário.
Já grande, foi se
virar no mundo. Jurou
não escrever ou procurar a família e amigos, mas nunca o fez.
Raiva, vergonha ou
qualquer outro sentimento? Nem ele mesmo definia. Sentia falta, porém. Queria
receber nem que fosse um telegrama de alguém.
Às vezes, chorava de
noite. Sozinho. Assistia (a) filmes e chorava. Só não podia ser filme de natal.
Esses, ele detestava.
Fazer o quê nessa
época? Até os judeus que ele conhecia comemoravam a época. Não a religiosidade,
claro, mas a festa social. O comércio lucra como nunca. Os balanços são
fechados. É impossível não viver o Natal.
Juca, no fundo, no
fundo, queria gostar também. Apenas não aprendera.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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