Ajudante de Papai Noel
de Arlindo Kamimura
A sensação que Simplício sentia era de caminhar sob um galpão de zinco bombardeado impiedosamente pelo sol, apesar de estar em plena avenida Paulista, num dia sufocante de dezembro. Ansiava chegar rapidamente às vizinhanças do parque Trianon onde, imaginava, que pudesse trocar a substância que preenchia sua cavidade pulmonar por algo mais fresco, e se não fosse pedir muito ao Criador, por algo próximo ao saudoso oxigênio. A visão tremeluzente e distante dos raios solares através dos galhos frondosos do jatobá, mesclados com o fundo cinza azulado, impressionava-lhe as retinas como as balouçantes visões alucinógenas de uma miragem. Recolhia automaticamente os impressos de planos de saúde, entregues de forma praticamente irrecusável, que amassava sem ler, sentindo algum alívio pelo suor enxugado das palmas das mãos. Sentia uma comichão desconfortável, de localização imprecisa, efeito psicológico cuja origem certamente vinha do esquecimento do gerente de banco em reaplicar seu dinheiro. A azáfama de fim de ano era nítida, principalmente pelo barulho ensurdecedor dos veículos, fazendo de trilha sonora para frenéticos balancetes e contas bancárias implodidas. Sua condição de autômato foi imediatamente modificada ao chegar ao parque de onde emanava uma agradável e envolvente aragem. Neste instante, percebeu aquela figura saltitante, gesticulando com movimentos aparentemente impossíveis, tentando inútilmente distribuir seus folhetos, recusados sistematicamente pelos transeuntes. Num impulso altruísta desviou-se de sua trajetória para recolher o folheto que lhe foi entregue com um sorriso indefinível, interpretado inicialmente como um agradecimento. Continuando a caminhar, qual não foi a sua surpresa quando se dignou a ler a previsível e costumeira mensagem estampada em azul e vermelho. No topo da página, nenhuma identificação do produto ou serviço oferecido, apenas uma frase interrogativa, cuja compreensão demandou sua leitura por três vezes. A frase, impressa em perturbadores e incisivos caracteres, indagava: O que o faz prosseguir? Virou-se imediatamente, procurando desfazer-se logo do incômodo suspense provocado por aquele tipo de truque publicitário, onde a curiosidade do possível consumidor é inicialmente aguçada de forma bizarra. A figura continuava a fixá-lo sem mudar sua expressão, o que lhe deu a nítida impressão de que um vínculo havia se estabelecido entre ambos e desconfiou que tal relação se assemelhava àquela entre pescador e peixe fisgado. Aproximou-se de modo quase agressivo, querendo esclarecer o que achava ser um mal-entendido, quando percebeu que o sorriso era, na verdade, um convite amigável para um bate-papo. Já esquecido do recente estado de desconforto climático, graças aos jacarandás e cedros do parque, propôs-se a dedicar alguns minutos àquela intrigante figura que lhe dirigiu a palavra da seguinte maneira:
— Boa tarde! Perdoa-me essa minha forma pouco ortodoxa
de abordagem. Acontece que sou um estudioso do comportamento humano, o qual me
intriga sobremaneira, e procuro capturar diretamente nas pessoas que raio de coisa
habita na alma dos homens, além do que já foi dito, diga-se de passagem, de
forma exaustiva, desde os textos pré-socráticos até os pós-modernos, passando
por Sartre e Espinosa - disse de supetão.
Desarmado diante de tanta eloquência,
Simplício conseguiu
balbuciar:
— O
que você quer dizer exatamente com essa pergunta?
—
Conceitualmente, de forma exata, quem me dera saber explicar, mas deixemos
essas elucubrações para outra ocasião. Simplificando, gostaria de saber quais
são suas motivações para todo santo dia levantar-se, escolher um par de meias e
participar desse aparente nonsense coletivo.
Aquele senhor bem-vestido, por exemplo, vive um inferno
doméstico com uma mulher fútil
e dispendiosa que não o ama, e filhos com os quais
não tem o menor canal de comunicação. Entretanto, neste ano, com apenas uma
transação na Bolsa, absolutamente sem risco, conhecida como operação de
travamento, faturou o equivalente a um apartamento no quadrilátero mais
valorizado do hemisfério sul, de forma que isso lhe permite continuar vivendo
sem maiores indagações existenciais. Aquele outro é HIV soropositivo e cada
minuto de um dia vivido lhe parece uma dádiva de valor inestimável. Este de
cabelos grisalhos escreve crônicas e livros, e acredita piamente que sua obra
sobreviver-lhe-á. É espantoso como as pessoas se protegem, se auto-enganando!
Aquele trombadinha tem um prazer quase orgástico ao constatar as expressões de suas vítimas
após cada assalto. Isso lhe serve como alimento, que compensa qualquer
incômodo, tanto de ordem policial, quanto filosófica. Este senhor de terno
cinza comete operações financeiras tão desastrosas que o tamanho de sua dívida
é garantia segura de sua imortalidade. Entretanto, um dos exemplos mais
convincentes e pungentes dessa questão existencial que aflige essencialmente os
homens, foi proporcionado, paradoxalmente, pelo reino animal. Uma pardoca
provia de forma constante e frenética a alimentação de seus filhotes, ainda
que, assim procedendo, sua própria alimentação e saúde tornava-se nitidamente comprometida.
Esse fato em si já me chamou a atenção, uma vez que tal proceder tinha, de
certa forma, respondido às minhas indagações. Eis que aparece um gato, que
agora dormita tranquilamente naquele banco, e resolve que seu almoço está
definido naquelas pululantes e esganiçadas criaturinhas. Não contava,
certamente, com a heroica
e inútil resistência da pardoca, que terminou se transformando no prato
principal. Tal destino teria sido evitado se o pássaro simplesmente fugisse,
renunciando aos filhotes. Se assim procedesse, desconfio que não teria, talvez,
forças para enfrentar um novo dia.
À medida que ouvia seu
interlocutor, Simplício ficava
com a sensação de que deixara
de participar de acontecimentos
cujo significado tinham alguma ligação com a sua infância. Sempre fora um fiel
seguidor dos preceitos de sua religião, aceitando seus dogmas sem nenhuma
contestação, principalmente agora que havia outras preocupações mais prementes
a serem resolvidas tais como o aumento do aluguel e a prestação do carro. Tivera,
certamente, suas dúvidas na longínqua infância, como todo mundo, como por exemplo,
perguntas do tipo daquele clássico sofisma: Seria Deus tão poderoso a
ponto de criar uma pedra tão pesada que Ele próprio não conseguisse levantar?
Sentia agora um pouco de frio, que ele imputava ao volúvel clima de São Paulo,
cujo humor esquizofrênico era repleto de altos e baixos. De qualquer forma,
nunca se fizera, desde a idade adulta, perguntas de natureza existenciais, e
sentia que um tipo de vírus lhe caíra na corrente sanguínea graças aquela
saltitante figura.
Sabia que não poderia
nunca mais encarar um novo dia da mesma maneira como nos últimos quarenta anos.
Até aquela canção natalina, executada de forma comercial, soava de forma
inusitada. Não tinha certeza se era grato àquela figura que lhe expulsara,
subitamente à força, de seu tranquilo, seguro e previsível mundinho. Aliás, não
tinha mais certeza de coisa alguma, a não ser que daria um longo e apertado
abraço em seus filhos, quando chegasse em casa.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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