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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 4x02 - Entre a Vida e a Morte

Conto de Vicente de Melo
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Sinopse: Aguardando o nascimento do primeiro filho, o pai sai para um café. Ao parar para comprar rosa branca, depara-se com uma perseguição de policiais a uma dupla de bandidos. Ao tentar se esconder, é atingido por uma bala perdida.

4x02 - Entre a Vida e a Morte
de Vicente de Melo


            Luana, grávida de nove meses, sentiu as primeiras contrações. Segurou a barriga, mordeu os lábios com força e deitou-se no sofá em forma de concha. No mesmo instante, Felipe largou o jornal sobre a mesa, levantou-se da cadeira e ajoelhou-se ao lado da esposa para tentar acalmá-la. Tratava-se do primeiro filho do casal aguardado ansiosamente. Sendo assim, marinheiros de primeira viagem, ambos não sabiam o que fazer.

            Desesperado, sentindo as mãos trêmulas, Felipe ligou para a médica obstetra. Nada, pois a mulher não atendeu. Desligou o celular, voltou para o lado da esposa e passou a acariciar os seus cabelos. Luana, sentindo-se totalmente segura, o encarou exibindo um olhar apaixonado e um sorriso carinhoso. Sendo assim, as contrações foram diminuindo pouco a pouco, até cessar de vez. Nesse momento, lembrou-se de que a médica mandou ligar somente em casos muito extremos, principalmente se a bolsa estourar.

            Após o susto efêmero, Felipe e Luana se abraçaram, se beijaram e tentaram fazer amor em vão. Sem êxito, contentaram-se apenas com algumas carícias mais íntimas.

            Agora bem mais relaxada, fechando os olhos lentamente, Luana dormiu por quase uma hora. Na cozinha, preparando um café, Felipe olhou para a mulher de rosto gordo, pernas inchadas e barriga proeminente, totalmente deformada pela gravidez, porém conservando toda a sua beleza. De olhos marejados, pois ali se encontrava um filho seu, sangue de seu sangue, lembrou-se de quando conhecera a esposa.

            Felipe estava numa festa da faculdade, onde cursava arquitetura. Luana, por sua vez, era estudante de letras. Ambos se encontraram no balcão destinado a servir (as) bebidas. Ele, com vinte anos de idade, segurando um copo de cerveja, olhou para ela, com dezenove anos de idade, bebericando uma dose de vodca, sorrindo e dançando sob o ritmo alucinante de uma música do Legião Urbana.

            — Oi!

            — Oi!

            — Você está sozinha?

            — Sim!

            — Pois agora não está mais!

            Imediatamente ambos sentiram uma força magnética. A partir dali, naquele dia, ficaram juntos, curtiram juntos e beberam juntos. Ao anoitecer, abraçados intimamente, saíram da festa de mansinho. Felipe levou Luana para o seu pequeno apartamento, na Asa Norte. Sob o efeito da bebida, além de um baseado, passaram uma noite de amor, de muito amor, sob a promessa de nunca mais se separarem. Para selar a grande paixão, ouviram várias vezes “Eduardo e Mônica”, uma bela história de amor em prosa e verso, de Renato Russo, eternizada em música pela banda Legião Urbana.

            Quase cinco anos depois do primeiro encontro, o casal cumpriu a promessa literalmente, pois estão juntos até hoje vivendo um grande amor. Felipe trabalha como arquiteto numa construtora, com matriz em São Paulo. Luana, por outro lado, ensina literatura brasileira numa escola particular localizada na Asa Sul. Vivem parcimoniosamente, mas são felizes.     

            Subitamente, levantando-se com certa dificuldade, Luana gritou agora sentindo contrações ainda mais fortes. Apertou novamente a barriga enorme usando uma das mãos, colocou a outra mão no rosto e contorceu os lábios. Felipe, abandonando os pensamentos absortos, correu imediatamente para o lado da esposa.

            Exibindo um sorriso pálido, tentando contar alguma piada para acalmá-la, Felipe ajudou a esposa a se levantar, abraçou-a com carinho e a levou até ao banheiro. Luana levantou a saia, tirou a calcinha com dificuldade e sentou-se no vaso. Minutos depois, sentiu um líquido viscoso, meio amarelado, escorrendo entre as (suas) pernas. Gritou ainda mais desesperada.

            — Felipe, a bolsa estourou!

            Sentindo o corpo fremir, numa palidez fantasmagórica, Felipe ajudou Luana a entrar no carro. A seguir, sem pestanejar, suando em bicas, dirigiu-se para a clínica de maternidade.

            Na elegante clínica, após preencher todas as fichas, de olhos marejados pela emoção, Felipe acompanhou a silhueta de Luana desaparecendo no longo corredor de piso luzidio, sobre uma cadeira de rodas, entrando na sala de obstetrícia. Enxugou o suor da testa usando as costas da mão. 

            Tentando demonstrar somente alegria, apesar do esgar de nervosismo explícito, Felipe sentou-se numa poltrona da sala de espera. Folheou uma revista velha, de páginas amarelecidas, esfregou as mãos continuamente e aguardou as notícias. Certa hora, diante da demora, bocejou, fechou os olhos lentamente e cochilou vencido pela lassidão de quase dois dias sem dormir direito.

            Subitamente, sentindo alguém bater em seu ombro esquerdo, acordou assustado diante da enfermeira sorrindo para o seu lado, tentando tranquilizá-lo.

            — Está tudo bem com a sua esposa, senhor Felipe. Ela já começou o trabalho de parto.

            — Quanto tempo ainda demora?

            — Não podemos afirmar, mas talvez mais duas ou três horas.

            — Obrigado! Eu vou dar uma volta para relaxar, comer alguma coisa e beber um café.

            — Pode ficar tranquilo!

            Sem pressa, Felipe caminhou em passos lentos entre as clínicas, hospitais e residências. Entrou em um bar da W3 Sul, bebeu água, comeu um sanduíche de queijo, bebeu um café forte e comprou um maço de cigarros. Desde o início da gravidez de Luana sem fumar, sentiu pela primeira vez uma vontade imensurável de se deleitar com a fumaça debatendo-se entre as paredes de seu pulmão. Sendo assim, acendeu um cigarro usando o isqueiro disposto sobre o balcão, aspirou a fumaça e soltou uma longa baforada de puro deleite. Sorriu, pigarrou e saiu assoviando uma música. 

            Fumando devagar, irradiando alegria pelos olhos, Felipe caminhou de volta à clínica. Sem hesitar, parou numa loja de flores, cumprimentou a dona e comprou uma rosa branca. Ao olhar para o lado, surgindo de um vão entre os prédios, assustou-se com dois homens correndo para o seu rumo, seguidos por quatro policiais militares empunhando as armas.

            Sem outra opção, perdido no meio da confusão, Felipe tentou se esquivar para se proteger ao máximo. Tarde demais, pois um dos policiais, espumando pela boca, vomitando impropérios, atirou a esmo contra os dois fugitivos.

            Após o erro fatal, um dos projéteis acertou a cabeça de Felipe. Bala perdida? Não! Bala da negligência, do despreparo e da irresponsabilidade. Violência urbana? Sim!  

            Em seu último estertor, segurando a rosa com a mão esquerda, Felipe olhou para o céu escurecendo. A seguir, diante da triste certeza de não poder conhecer o seu filho, fechou os olhos lentamente. Os ruídos das vozes, dos gritos e das lamentações, misturados ao som estridente da sirene de uma viatura se aproximando, foram diminuindo gradativamente.    

            Ao mesmo tempo, do outro lado da avenida, na sala de parto, um bebê sadio, corado e gorducho, ainda sujo pelo líquido viscoso, os filetes de sangue e os restos de placenta, emitiu o primeiro choro da vida aconchegado entre os seios de sua mãe. Um choro forte, reverberando por todos os cantos da clínica, clamando literalmente pela presença do pai.      

       


Conto escrito por
Vicente de Melo

CAL - Comissão de Autores Literários
Francisco Caetano Gisela Lopes Peçanha Liah Pego Lígia Diniz Donega Mercia Viana Pedro Panhoca Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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