4x03 - Favela de Minha Terra
de Coracy Bessa
“Favela de
minha terra, eu quero te conhecer…”
Com
esse pensamento acordei naquela manhã cinzenta de início do outono. Lembrei-me da
interdição dos maiores à aproximação da criançada aos limites da Favela Mão de
Pilão. Por que lhe fora dado esse nome,
não sei. Seria a primeira indagação a fazer. Nossa casa, do alto do outeiro
descortinava o panorama de habitações irregulares agarradas às encostas do
morro, paredes de tijolos à vista, telhados de zinco ou lajeados de concreto, portas e
janelas de madeira de desmonte. O piso, indefinido àquela distância,
provavelmente seria de chão batido ou de ladrilhos aproveitados de demolições.
Como
sou pragmática, passei a programar a minha incursão àquela favela. Deveria
requisitar alguma amiga para me acompanhar naquela aventura? Ou seria mais
prudente eu investigar sobre alguma ONG
que atuasse naquela zona e me aproximasse da comunidade através dela? Decidi
que me aventuraria sozinha: o que havia a temer?! Escolhi uma indumentária prática
e confortável (o macacão que comprara há cerca de um mês), abarrotei uma sacola
com frutas frescas e alguns bombons e parti para realizar a tarefa que me impuseram.
O sol nascente já esquentara o caminho e me
obrigou a abrir a sombrinha que morava em minha bolsa. A escadaria escavada no
solo do barranco me levou direto para um grupo de crianças a brincar de pés no
chão num arremedo de campinho de futebol. A bola desgastada não colaborava com
os esforços daqueles sonhadores com as glórias do esporte. Fiquei a observá-los
por algum tempo sem que dessem por minha presença, aparentemente. E logo um
idoso se aproximou de mim e indagou: “Posso
ajudar a senhora em alguma coisa?”. Meio sem graça, como se estivesse a
bisbilhotar a vida de alguém, respondi-lhe: “Gostaria
de visitar essa comunidade. Sou uma
pesquisadora independente e quero conhecer de perto a dinâmica dessa favela…”. “Pra botar nas redes sociais?”. “Não, não!
Para talvez escrever um livro!”. “E se dar bem às nossas
custas?!”. “Não, por favor! A minha intenção é tentar ajudar,
se for possível, as pessoas que aqui vivem.”. “Hum…hum…
Quer dar uma de boa samaritana?”. “Sim, algo parecido!”. “Finalmente abriu o jogo!”. E deu uma boa gargalhada.
Ferida em meus
brios, agradeci e me dirigi ao grupo dos meninos que haviam interrompido o
jogo. Perguntei-lhes onde ficava a escola. “Não
tem!”, disseram em uníssono. “E a igreja?”. “Qual delas?”, interpelou um garoto mais velho. Fiquei indecisa.
Quando eu era garota, ao se referir à igreja, automaticamente estava-se
referindo à igreja católica: ninguém levava em conta (se por acaso houvesse na
região) uma sinagoga, uma mesquita, um templo evangélico ou um terreiro de candomblé.
No tempo de agora, entretanto, devia-se estabelecer de modo explícito a qual
delas o interlocutor se referia. Decidida, informei: “A católica!”. “É na rua de
trás do boteco de Seu Jeremias!”, respondeu o rapazola. Fiquei na mesma.
Com um ar de enfado acrescentou: “Venha
que eu lhe mostro!”. E, não esperando a minha anuência, tomou uma direção e
eu o acompanhei.
Descendo uma
pequena ladeira, atravessamos uma pracinha e, passando pelo tal boteco do
Jeremias, penetramos numa rua esburacada que levava a uma pequena construção de
torre única, caiada de branco e com a porta principal fechada. “Bata na porta dos fundos! O padre deve tá
lá!”, intimou e rapidamente sumiu naquele labirinto de ruelas. Indecisa,
sob o sol quente se aproximando do meio-dia, bati à porta que deveria ser da
sacristia e aguardei. Pouco depois, abrindo na porta uma nesga de acesso, a
cabeça calva surgiu e indagou: “Quem é? O
que quer?!”. Apresentei-me e o idoso padre me permitiu a entrada na
sacristia. Expliquei-lhe o meu intuito e ele logo me desanimou: “Aqui, quem manda é o tráfico. Você não vai conseguir nada sem o aval do chefe da facção.
Eu mal consigo que algumas mulheres idosas frequentem as missas de domingo. E
as crianças se recusam a vir para a escola dominical, ministrada pela Irmã Vitalina. É muito triste!”. “E como é que eu
consigo falar com o chefe do tráfico?”. “Aconselho você a desistir dessa
ideia”. Frustrada, somente então me lembrei das frutas e guloseimas que
trazia na sacola. Ofereci-as ao velho padre e despedi-me.
Desnorteada, eu
deixava a igreja quando o garoto que me levara até ali se aproximou novamente e
se ofereceu: “Agora quer ir até o
terreiro de Mãe Celeste? Ela se dá bem com o Periguete”. “E quem é Periguete?”,
indaguei. “Vá lá e veja!” e
seguiu sem verificar se eu o acompanhava. Segui-o.
A construção
térrea pintada de azul se destacava no conjunto de casinhas que se escoravam
umas nas outras. À porta, uma imponente figura feminina, rodeada de algumas
outras mulheres, se ocupava em recitar em voz alta e em um idioma desconhecido
para mim, algo que parecia uma oração. Respeitosamente, permaneci em silêncio
enquanto observava o conjunto. Dando por terminada a liturgia, as mulheres se
espalharam, a Mãe Celeste
convidou-me para me aproximar e indagou qual o meu interesse no seu Terreiro.
Expliquei-lhe a minha pretensão. Sorriu, simpática e sugeriu que eu
comparecesse à reunião que faria à noite, no sábado próximo. Agradeci e
afastei-me.
A essa altura,
passada e muito a minha hora de almoço, decidi retornar à minha casa
considerando que, de alguma forma, fora produtiva a minha incursão àquela
favela. Meio perdida sem o meu guia arisco, aventurei-me por algumas ruelas até
que, finalmente, cheguei naquela pracinha que levava à ladeira por onde eu
adentrara à favela.
Em casa, após o
almoço, repassei mentalmente os meus passos naquela trajetória aventureira.
Programei-me, então, para a próxima visita àquela comunidade.
O sábado chegou
aumentando as minhas expectativas para o encontro com Mãe Celeste e os fiéis do
Terreiro. A noite quente pareceu-me ameaçadora, porém não me fez desistir do
plano de tentar ser aceita na comunidade, visando estudá-la. Haveria de
encontrar evidências de sua religiosidade, suas estratégicas econômicas e
laborais, seu modus vivendi, enfim.
Na hora aprazada, equipada com um pequeno gravador que adquirira recentemente, fui em direção àquela ladeira de acesso à Favela Mão de Pilão. Em sentido contrário ao meu deslocamento observei uma dupla feminina que se aproximava. Algo me fez pensar: “onde vi essas figuras?”. Antes que concluísse o meu raciocínio, elas chegaram até mim. A faca na mão de uma delas alcançou o meu tórax enquanto a outra afanava a minha bolsa com o gravador. Ainda vi quando se afastaram em desabalada carreira e fiquei sangrando ali no chão.
No Pronto Socorro me informaram que a emergência fora acionada por um garoto que ficou ao meu lado até a ambulância chegar. Descobri que o meu “anjo da guarda” havia sido o meu guia arisco da minha primeira e única visita à Favela Mão de Pilão.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2023 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: