2x04 - Eutanásia
de Felipe Luís Teixeira
Saio de casa com o Fred no colo. Alguns meses
atrás ele já teria se contorcido todo e saltado para o chão. Mas não hoje, não
depois do câncer tê-lo deixado debilitado. O tratamento tem pouca chance de
cura e apenas prolongaria sua dor. Não vale a pena. Optei pela eutanásia.
Sinto uma tristeza imensa, mas também um certo
alívio: ele não vai mais sentir dor. Eu não quero mais vê-lo sofrer. Fred foi o
meu melhor amigo nos últimos treze anos.
Hoje ele não tocou na comida nem bebeu água.
Ficou deitado na cama até mesmo depois de eu me levantar para tomar banho. Sem
forças, ele evita se movimentar sem necessidade. Aliso o seu pelo por alguns
minutos antes de pegá-lo no colo. Ele apenas resmunga sem relutar.
Entro no carro, e o coloco no banco do
passageiro. Dirijo devagar para evitar alguma freada brusca. A manhã está
ensolarada, vai ser um dia quente. Ótimo para um passeio. Não é bem isso o que
faremos, mas é um dia lindo para uma despedida. Fred não se move durante todo o
percurso. Está deitado com o focinho sobre as patas. Ele me observa com os
olhinhos que eu tanto amo.
Será que ele sabe o que vou fazer?
Será que ele entende?
Espero que ele não pense que eu o estou
abandonando.
Chego ao prédio da clínica veterinária, que já
está aberta. Há quatro vagas para carros, todas livres. Eu estaciono de ré para
ficar de frente para a rua. São sete e meia da manhã, há pouco movimento na
região. O brilho forte da luz matinal ilumina os pelos do Fred. Como ele é
lindo.
Eu o adotei quando ele tinha apenas três meses,
pouco tempo depois que comecei a morar sozinho. Ele sempre me recebia na porta quando eu
chegava do trabalho, sentava-se ao meu lado quando eu almoçava, me acordava
todos os dias para pedir ração, principalmente nos fins de semana, quando eu
dormia até mais tarde. Era um brincalhão. Ainda seria, se não estivesse doente.
Eu me divertia vendo-o derrubar as coisas pela casa sempre que ele corria.
Ele foi meu primeiro animal de estimação. Meus
pais nunca me deixaram ter bichos. Sempre diziam que eu não ia cuidar, que ia
sobrar tudo para eles fazerem e que eu era novo demais para ter essa
responsabilidade. Foram várias tentativas, todas frustrantes. Talvez por isso
seja tão difícil me despedir do Fred. Eu nunca vivi a morte de um companheiro
de quatro patas e agora estou eu aqui, me preparando para entregá-lo para a
morte.
Coloco-o sobre as minhas pernas. A clínica fica
em uma região alta da cidade. A vista do estacionamento é muito bonita e
arborizada. Por este motivo eu estacionei de ré para admirarmos a paisagem. O Fred se acomoda e
observa a rua, como fazia na janela da sala. Sempre muito curioso. Como todo
bicho é. A nossa casa é o mundo deles. Eles só saem quando nós permitimos,
então é uma vida monótona. Qualquer estímulo externo é uma novidade imperdível.
Eu abro o sachê de ração úmida e a despejo no
pote. O aroma de carne o anima um pouco, ele mexe o focinho e se vira para mim
com o olhar pidão. Tão lindo.
— Calma, Fred, calma, já tô acabando — digo,
tentando conter a ansiedade dele.
Coloco o pote com a ração no banco do
passageiro, o Fred caminha lentamente até lá. Em outros tempos, quando a saúde o permitia, ele
já teria pulado em direção à comida.
— Sua última refeição, companheiro. No corredor
da morte todos têm
direito a uma — digo, lembrando do filme À espera de um milagre. Queria que os
milagres fossem reais. Que existisse um John Coffey para salvá-lo.
Ele
mastiga lentamente enquanto eu o vejo comer pela última vez. Me estico até o
porta-luvas de onde retiro um isqueiro e um charuto cubano que um amigo me
trouxe de sua última viagem. Eu fumo apenas no meu aniversário e na noite de
ano novo, mas hoje abro uma exceção.
— Todo condenado também tem direito a um último
trago — Olho para ele. — Eu quebro essa pra você. Isso dá câncer, sabia? — Eu
rio sozinho da minha piada infame e acaricio o pelo macio do meu velho amigo.
Ele me observa com o olhar cansado, sem entender
nada, e volta a comer. Corto a ponta do charuto e o acendo. Dou o primeiro
trago e abro as janelas dianteiras para dispersar a fumaça e bater as cinzas. A
temperatura do lado de fora está agradável. E lá ficamos os dois condenados:
ele, à morte, e eu, ao luto.
Fred para de comer. Ainda há muita ração no
pote. Eu apago o charuto, ainda pela metade. Ele caminha lentamente e senta-se novamente sobre as
minhas pernas. São nossos últimos momentos. Observamos o dia começar na cidade:
o sol se erguendo no horizonte, a agradável e leve brisa matinal soprando as
folhas das árvores, os carros passando na avenida, as pessoas caminhando pela
calçada apressadas para chegar ao trabalho. Elas verão pôr-do-sol, verão o dia
terminar. O Fred não. Talvez nem eu, pois quando ele se for, tudo será
escuridão para mim.
— Chegou a hora, amigão — Sinto um aperto no
peito. Meu coração bate mais rápido.
Faço um carinho em seus pelos macios pela última
vez e lhe dou um beijo na cabeça. Olho em seus olhos, nariz e focinho se tocam.
Ele me devolve o olhar carinhoso de sempre. As lágrimas enchem minhas
pálpebras, mas eu não choro. É hora dos óculos escuros. Retiro-os do
porta-luvas, onde coloco de volta o isqueiro e o resto do charuto apagado.
Visto os óculos e a minha vista escurece. Não é só ela, tudo dentro de mim
perde a cor, perde o brilho. Eu vou matar o Fred. Eu não quero, mas é triste
vê-lo sofrer.
Saio do carro com ele em meus braços. Tento
manter a calma e não fazer as coisas correndo, mas quero que isso termine logo.
Entro na clínica. A dona Margareth, a idosa assistente do veterinário, se
levanta da cadeira dando a volta pelo balcão de atendimento e caminha na minha
direção.
— Olha só que lindão esse garoto! — ela diz para
o Fred, tentando disfarçar o que nós todos faremos ali.
Ela se volta para mim com um olhar
condescendente.
-— Fique tranquilo, é o melhor para ele — diz,
tocando o meu ombro com a mão direita.
Eu o coloco no chão e acompanho a Margareth para
assinar os papéis. Já está tudo pago. O doutor Francisco sai da sua sala, me
cumprimenta e vai em direção ao Fred.
— Bom dia, vamos fazer alguns exames, campeão? —
Ele faz carinho em sua cabeça como de costume. Se vira para mim. — Faremos da
melhor forma possível, como lhe expliquei, então fique tranquilo...
— Posso acompanhar? — eu o interrompo, ansioso —
Eu sei que eu disse que não queria, mas...
— Sim, sem problemas, nós já estamos
acostumados. Muitos mudam de ideia na última hora. Me acompanhe.
Pego o Fred e sigo o doutor até o consultório.
Coloco meu amigo na bancada de alumínio. Ele se senta e desvia o olhar para o
veterinário, que abre o armário para separar o equipamento que utilizará no
procedimento. Olha para mim e se deita apoiando o focinho entre as patas,
parecendo saber o que o espera. Eu passo a mão nele. Me abaixo para que nossos
olhos fiquem no mesmo nível.
— Obrigado por tudo, Fred! Eu te amo.
Mantenho a mão em sua cabeça enquanto o doutor
Francisco aplica a anestesia geral. Em poucos segundos meu melhor amigo fecha
os olhos pela última vez. Em seguida, o doutor aplica a injeção com cloreto de
potássio. É isso que o matará. O Fred tem alguns espasmos, mas ele não urina
nem defeca (eu fui avisado que isso poderia ter acontecido). Em menos de dois
minutos ele está imóvel e nunca mais irá acordar. Uma lágrima escorre por de
trás dos meus óculos escuros, mas eu não consigo chorar mais do que isso.
Parece que a anestesia foi aplicada em mim.
Me despeço do doutor e saio da sala. Passo pela
Margareth sem dizer nada, entro no carro, dou a partida e dirijo sem rumo.
Entorpecido pelo sentimento da morte do meu Fred, eu não me lembro de nada do
caminho de volta.
Entre em casa, vou até a cozinha, flexiono os
joelhos lentamente como um idoso com artrite e coloco o pote de ração ao lado
do pote de água. Observo e me dou conta: agora eu estou sozinho. O Fred não vai
mais almoçar comigo.
“Não”, eu penso. “Não posso deixar isso aqui,
preciso aceitar que ele morreu”.
Me abaixo novamente e levo os dois potes para o
quintal. Sinto raiva. Muita raiva. Não queria ter matado meu amigo. Paro em
frente ao tanque. Ligo a torneira e deixo a água jorrar com toda força. Pego a
bucha, passo-a no sabão e começo a lavar os potes. Eu os esfrego com toda a
minha força, desconto minha ira neles e começo a chorar. De longe pode até
parecer engraçado: um homem de meia idade, cento e trinta quilos, um metro e
noventa de altura, debruçado sobre o tanque, chorando feito uma criança. Meu
rosto fica inchado e vermelho. Não consigo mais parar de chorar.
Amanhã quando eu acordar, ele não estará no
quarto para me dar bom dia. E eu vou continuar chorando.
Penso nos últimos momentos do Fred lá na
clínica. Penso que ele sabia o que estava acontecendo, mas eu não tenho
certeza. Os bichos não pensam na morte. Eles não entendem. E nós, a entendemos?
Eles apenas vivem da melhor maneira possível. Não hesitam em demonstrar sua
alegria ou frustração. Eles vivem de verdade, sem máscaras. Bom seria se
soubéssemos aproveitar a vida como eles. Talvez seja por isso que os animais
vivem menos. Eles não precisam de tantos anos para aprender a viver, para
aprender a amar.
Eu acredito que quando eles morrem, eles ficam
lá no céu, ansiosos, nos esperando, como quando passavam o dia todo sozinhos em
casa até voltarmos do trabalho. Acredito que eles sejam os primeiros a nos
receber quando morremos.
Quantos animais de estimação esperarão por você?
Você se lembra de todos?
Do primeiro.
Do último.
O nome deles.
Os brinquedos.
As manias de cada um.
Eles estarão todos sentados, lado a lado, em um
gramado verde, sob um céu azul e com uma brisa agradável soprando os pelos
macios. Ao lhe verem, eles virão correndo em sua direção e pularam em seu peito e
você cairá de costas na grama. Em pouco tempo estarão todos em cima de você, lambendo seu rosto.
E não haverá mais tristeza.
Não haverá mais saudades.
CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Peçanha
Liah Pego
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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