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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 4x08 - Morango

Conto de Carlos Amorim
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Sinopse: Numa noite chuvosa, duas figuras esperam um ônibus. A primeira um caçador em potencial. A segunda uma aparente vítima assustada. Mas a noite ainda guarda muitos dos seus segredos, e os papéis podem se inverter.

4x08 - Morango
de Carlos Amorim


Chove sem cessar.

Uma névoa fina borra minha visão. Mas não o suficiente para que não a perceba. O vestido vermelho tão destoante do cinza ao redor pede para ser notado.

A névoa toma tudo que não o ponto de ônibus onde estávamos para si. Agora estamos num minúsculo mundo particular.

Até que ela clama o ponto, a mim.

Tudo agora era ela, o mundo se resumia a ela. Miragem que fosse, era a mulher mais linda que eu já vira. Lá, sozinha, agora sentada, esperando. Mas o quê?

Ela puxa um cigarro. Eu, bobamente, ofereço um isqueiro.

Não, obrigada, já tenho o meu.

Idiota. Um idiota pensando que conseguiria alguma coisa oferecendo a porra de um isqueiro. Ela tem cheiro de morango. Senti pelo pouco que ela deixou eu me aproximar. E parece triste. Uma tristeza desoladora.

A chuva aumenta. O tempo passa. Só que passa como num sonho. Estático, surreal, eu e ela, dois perdidos na chuva. Eu a vejo como um enigma a ser decifrado. O leve esfregar das mãos. O olhar angustiado. Ela termina o segundo cigarro, enquanto eu rio de sua estranha depressão e apago o meu quinto. Babaca! Por que estou rindo? Penso que talvez faltem mais três cigarros para ela entrar em meu estado de relaxamento, ou talvez me falte uma nova perspectiva para ver quem está realmente angustiado.

Finalmente o ônibus chega. Ouço-o antes de vê-lo. Mesmo o tamborilar da chuva no ponto não impede o barulho infernal. O mundinho se quebra.

Entramos, calados. Sentamos longe um do outro, somos praticamente os únicos lá.  O caminho parece eterno e o cheiro não se dissipa. Infesta até o mais imundo dos ônibus, que sofreu um dia inteiro de cheiros deploráveis. O morango é o que se sobrepõe, apesar de tudo.

Coincidentemente paramos no mesmo ponto. Ela sai primeiro. Eu saio, paro e acendo mais um cigarro. O sexto.

Seu andar não é nada calmo e entendo o porquê. Alguém como ela nunca pode estar calma. É o preço por ser o que é, como é. Sempre alerta, desconfiada, com medo. O enigma se torna mais atraente. É quando vejo, na mais escura das ruas, num dos piores lugares da cidade, um vulto.

E ouço os passos.

É um homem qualquer, ladrãozinho de merda. Um bosta, escória, esgoto, o lixo do lixo. Ele a aborda.

Moça, é melhor ficar bem quietinha, não se mover e deixar eu fazer o que tenho que fazer, vai ser melhor pra nós dois.

Mesmo vendo a cena de longe, do afastamento autoimposto em relação à mulher, eu podia sentir o cheiro de mijo e álcool exalando do animal. A moça, agora fria e estática, não se movia e mal respirava, sendo impedida de gritar pelo estuprador.

Seu clamor abafado, sua súplica calada pelos sons da cidade, pela chuva interminável.

Ele começa a levá-la para um canto escuro. Minha reação inicial... não me lembro qual foi, para ser sincero. Eu só precisava fazer algo. Meu coração batia forte ao pensar no quão forte devia estar batendo o dela, a tensão me implorando para que o seguisse. Então fui.

Meus passos mais rápidos ecoaram alto pelas poças, denunciando-me, então gritei. Queria engrandecer minha presença. Talvez causar algum tipo de medo no homem.

Sai daqui, cara! Sai daqui enquanto pode!

Não sei que adrenalina, vibração ou loucura momentânea me levou a fazer aquilo. Enfrentar um homem desconhecido sem medir consequências do que poderia acontecer. Mas eu o fiz. Não parei, acho que nem se quisesse pararia, era maior que eu. Não parei até o maldito cair no chão, engolindo chuva, lama e seu próprio sangue. 

Depois de alguns segundos, pude ouvir seus passos vacilantes, sentir seu cheiro novamente.

Minha deusa, minha tão frágil musa espontânea. Suja, assustada e, mesmo assim, ainda resplandecente. Ela se aproxima de mim com um misto do medo anterior e de uma profunda gratidão. Busca proteção em seu repentino salvador. Eu a abraço.

A chuva aumenta. O cheiro de morango me invade.

Não sei quanto tempo demorou para eu me dar conta que a estava estrangulando.

***

Sabia. Tinha certeza que ele era exatamente o que parecia ser.

Mas precisava da certeza, não podia agir antes.

É tão pouco... tão pouco para eu me tornar alguém como ele. Então tomo meu tempo, sofro a agrura. Tudo pela maldita certeza.

Teria sido muito melhor se o verme não tivesse aparecido, fui pega de surpresa. Era apenas para fingir surpresa, mas fazer o que... trabalhamos com as circunstâncias oferecidas. E a minha atual é um aspirante e assassino em série tentando me estrangular.

Aspirante porque não tem ainda à vontade e frieza para tal. Se eu não estivesse preparada... se ele conseguisse seu intuito... consigo até imaginar. O medo inicial, a tremedeira quando chegasse em casa e percebesse que tinha saído imune. A chuva lavando seus pecados.

E o tempo passando e passando. A vontade ressurgindo. A ânsia por mais um pescoço delicado e indefeso. Um Drácula patético.

Mas seu amadorismo faz com que não perceba a faca até ser tarde demais. E, por mais que odeie admitir, quando encaro seu olhar de surpresa enquanto percebe que não é a chuva que está molhando meu vestido, vejo-me refletida nele. A mesma ânsia. A mesma vontade.

Ele finalmente larga meu pescoço, cambaleando, provavelmente se perguntando o que acabara de acontecer. Não cabe a mim decifrar seus últimos pensamentos. Ainda não.

A chuva não para. Enxugo o rosto, esquecendo o quão imundas minhas mangas estão.

Acidentalmente, provo um pouco de seu sangue.

Tem gosto de morango.

       


Conto escrito por
Carlos Amorim

CAL - Comissão de Autores Literários
Francisco Caetano Gisela Lopes Peçanha Liah Pego Lígia Diniz Donega Mercia Viana Pedro Panhoca Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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