2x07 - Milicão, o Musi-cão
de Arlindo Kamimura
Essa história é sobre nosso vira-lata
marrom de nome Milicão. Apesar dele ter nascido no outono de 1968, em plena
ditadura militar, seu nome nada teve a ver com a situação política vigente, mas
com o trabalho que ele requereu para que sobrevivesse, uma vez que criamos com
mamadeira desde o primeiro dia de sua longa vida - simplesmente dezessete anos.
Removemo-lo, ao nascer, do conforto e cuidados maternos por um motivo
imperativo: sua mãe havia parido embaixo do restaurante do CRUSP - Conjunto
Residencial da Universidade de São Paulo, onde morávamos na época, um dia antes
da carrocinha fazer sua ronda quinzenal. Seu nome foi em homenagem a Robert
Millikan, cientista que mediu a carga do elétron, utilizando gotas de óleo em
um campo elétrico. Essa experiência fazia parte obrigatória do currículo de
Física, que eu e minha namorada cursamos na época, e representava dias intermináveis e um
trabalho extenuante de manuseio e observação em um microscópio Zeiss especialmente fabricado para tal.
Desde tenra idade Milicão demonstrou
uma peculiar sensibilidade para reconhecer notas musicais. Ao ouvir a abertura
do ballet Coppelia, estivesse onde
estivesse, vinha em desabalada carreira para ouvir com alegria e visível
deleite o refrão inventado especialmente para ele:
“Milicão, Milicão
engoliu um sabão"
Gostava também de outros
compositores, em particular Beethoven cuja composição fur Elise ele ouvia muito antes de qualquer ouvido humano, para
avisar a passagem do caminhão de gás engarrafado. Adorava também o tema da quinta sinfonia, permanecendo quieto e
atento, como a aguardar ansiosamente o seu destino canino, aparentando apreciar
cada nota da abertura do allegro con
brio.
Entretanto, nem toda música o agradava. Detestava com
demonstrações de puro ódio canino, ou seja, latia desesperado quando ouvia a
tradicional “Parabéns a você”,
obrigatoriamente cantada nos aniversários familiares. Por incrível que possa
parecer, ele reconhecia a primeira nota dessa cantiga. Para provocá-lo bastava
iniciarmos a canção na nota musical correta: "Pá…" , para ele levantar as orelhas em estado de atenção, para
imediatamente relaxar quando emitíamos a nota seguinte de uma outra canção
diferente iniciada também com o “Pa..”. Era divertido enganá-lo, porém muito
embaraçoso quando deparava com festas de aniversário ao sair de casa a passeio,
atividade que adorava, principalmente correr ao lado do carro, em ruas onde não
havia muito trânsito, fato bastante comum na época. Outra atividade que Milicão
curtia era viajar nos fins de semana para um sítio de nossa propriedade em
Caucaia do Alto. Gostava de disputar com alguém da família, pelos campos
abertos em corridas vespertinas, ao fim das quais rolavam em uma alegria
infinita pela vegetação, algumas vezes salpicada de alfazemas, cujo perfume embriagava
a ambos e assim, celebravam o fim do dia.
A primeira vez que ele viu o mar foi
um espetáculo à parte. Corria de forma alucinada em direção às ondas,
atacando-as como se fosse mordê-las, desistindo no último momento retornando em
debandada, procurando apavorado nossa proteção. Perseguia as gaivotas e urubus
que perambulavam pela praia como se soubesse o que faria se porventura
alcançasse alguma delas. Ao final do dia desabava exausto, mergulhando
literalmente em um sono profundo, ao som dos grilos e embalado pelo marulho das
ondas.
Resolvemos, em uma das viagens que
fizemos ao Rio Grande do Sul, levá-lo conosco. O objetivo da viagem era
conhecer o Parque Nacional dos Aparados da Serra, particularmente o Canyon do
Rio das Antas e suas falésias de mil metros de altura e cachoeiras gigantescas
em locais que só conseguimos chegar porque viajávamos com um jipinho Gurgel,
meu veículo de estimação. Chegamos em Cambará do Sul e nos hospedamos na
pousada do Seu Perini, fora dos limites da cidade. O frio, à noite, era tanto
que Seu Perini apiedou-se do Milicão e “emprestou-lhe” uma manta de pele de
carneiro utilizada para cavalgar. No dia seguinte, quando dirigimos para a
cachoeira do Despraiado, encontramos um gambá com seus filhotes atravessando a estrada o que despertou
imediatamente a atenção de Milicão. Difícil foi convencê-lo a deixar o pobre
animal prosseguir em paz, evitando assim um banho de “perfume”.
Milicão tinha habilidades circenses:
andava nas duas patas traseiras, rolava e fingia de morto quando solicitado,
saltava no arco de bambolê, levava e entregava objetos às pessoas. Era um ótimo
cão de guarda e dormia dentro de casa. Certa noite, ao ouvir alguém forçando a
porta de entrada, começou a latir e a rosnar, provocando a fuga do indivíduo,
antes da chegada da polícia. Outra distração do Milicão era assistir estático,
não por muito tempo, obviamente, algum programa na televisão que exibisse algum
animal, de preferência atores caninos.
Adorava crianças com as quais jogava
bola e hoje, cinquenta anos passados, um sobrinho ainda se lembra de que
insistiu muito com seu pai para convencer-nos a vender o cão. Ficou de tal
forma apaixonado pelo Milicão, que não pudemos negar o empréstimo por alguns
dias, fato que se tornou quase uma tragédia, pois o cão inconformado com a
transação que julgou definitiva fugiu no mesmo dia, voltando para casa algumas
horas depois de percorrer cerca de dez quilômetros.
O crepúsculo da existência de Milicão
foi muito triste. Alguns meses antes de sua morte, com dezessete anos
completos, foi acometido por um câncer ósseo que lhe provocava imensa dor,
corroía sua pata dianteira esquerda e já se espalhara pelos órgãos internos. É
inútil dizer que uma imensa quantidade de analgésicos, mesmo os derivados de
opióides, foram aplicados em vão. O alívio era de poucas horas para a dor
retornar de forma duplicada, mensurada pela altura de seu choro pungente e seus
uivos lancinantes. O sofrimento se propagou e se reproduziu de maneira
recíproca em todos os membros da família. Não sabíamos o que doía mais: os
urros do cão ou o sofrimento dos meus filhos. Meus vizinhos já estavam
impacientes com a situação, quando a decisão de sacrificá-lo foi tomada.
O veterinário que efetuou o procedimento, embora achasse estranho, concordou em fazê-lo ao som do ballet Coppelia.
Milicão deixou muitas saudades, mesmo após todos esses anos.
Desenho
Laura Aresu
CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Peçanha
Liah Pego
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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