Chaga
de Amauri de Oliveira
Tudo foi
tão sem propósito e sem aviso, ninguém percebeu quando começou o fim de tudo.
Dona
Augusta acabava de pôr a última peça de roupa no varal, esticado atrás da casa,
entre a cozinha de fora e a tulha. Endireitou o corpo, com as mãos nas costas
doloridas e conferiu o serviço. Toalhas, lençóis e fronhas, esticadas ao sol, com
ligeiro cheiro de sabão de soda branqueavam o quintal, pesados de água e de
falta de vento. Suspirou. Tentou enxugar o suor no avental. Este, molhado pela
lavagem de roupa, apenas trocou o suor pela água com sabão.
– Calor dos
infernos! –
Pensou e logo se arrependeu da blasfêmia, fazendo o sinal da cruz.
Levantou a
vista para o céu sem nuvens e depois desceu os olhos para o horizonte. Onde a
vista alcançava, alqueires e mais alqueires de canaviais, balançando ao sol e
brilhando o seu verde na luz forte da manhã.
De repente,
o barulho de latidos. Latidos altos, baixos, desafinados e graves. A cachorrada do sítio, seis animais dos mais
diferentes tamanhos e falta de raças, estranhava alguém que devia estar na
porteira. Quem haveria de ser numa hora dessa?
Enxugando,
mais por força do hábito, as mãos no avental encharcado, foi, arrastando os pés
pelo terreiro, para ver quem era a visita.
A
princípio a cena foi tão insólita que não entendeu o que estava vendo. Só
depois de alguns segundos é que seu cérebro montou e interpretou o que estava a
sua frente. Havia um homem, já de idade avançada, todo rasgado e esfolado. As
roupas e as carnes em tiras sangrentas, apoiado na porteira, rodeado pelos cães
desconfiados. Antes de qualquer reação de dona Augusta, o homem abriu os olhos
e esticando as mãos, pediu:
– Inhanhá me ajude, pelo amor de nossa senhora!
A voz, num
fio, como as tiras de pele de seu corpo, se extinguiu e como se a força que o
mantinha apoiado também se esvaísse, caiu desmaiado, levantando poeira, mais
latidos e tirando de sua paralisia a mulher de olhos arregalados.
– Acode, Janaina! Acode Maria Rita! – Gritou pra dentro da
casa, onde as meninas, largando a louça que lavavam, correram em ajuda.
Não houve
nem água, fresca ou benta, nem ar, abanado ou ventado, que fizessem com que o
homem recobrasse a consciência, enquanto o dia se fazia presente e seu Ilário,
marido de dona Augusta, ausente.
Assim que
o sol foi se despedindo e com a chegada do chefe da família, como se estivesse
combinado, o homem despertou.
Olhando
meio aparvalhado a princípio, assustado, antes de se orientar e depois mais
calmo, quando viu os curativos em seu corpo e a família, agora completa, em
volta da cama onde ele estivera durante o dia.
– Homem de Deus – começou seu Ilário. – Andou de briga com onça? – e fazendo valer o seu
nome, sem pensar na situação, completou, rindo . – Se bem que mais parece briga com lobisomem!
– Que nossa senhora e o menino Jesus me proteja!
Deus, nosso senhor que seja de valia “procês” tudo. Eu não ia tê jeito de
avisar o povo, se “ocês” ”num” tivesse me socorrido. “Num” foi onça, nem
lobisomem! Foi a cobiça de quem tudo tem e tudo “qué”.
O queixo do velho começou a tremer, enquanto
falava. Não de frio, mas de nervoso. Medo, que como a escuridão que se
esticava, ia envolvendo a todos e dificultando o entendimento.
Uma caneca
de ágata, com chá fumegante, foi passado de mão em mão e chegou até as mãos
trêmulas do “acidentado”.
– Mais fala o que aconteceu! Avisar o povo do
quê? – perguntou
dona Augusta, que era, antes de tudo a praticidade em pessoa.
E entre
falas trêmulas, entrecortadas de goles de chá, a história foi contado.
O senhor
se chamava Vivente.
– Vicente? Perguntou a Janaina, que, de olhos
arregalados, no alto de seus nove anos, ao lado da irmã caçula, era a
curiosidade abraçada com o susto.
Não. Não
era Vicente. Era Vivente. Aquele que vive. Coisas da mãe dele que, embora
trabalhadora rural, do corte da cana, com poucos recursos e instrução formal,
queria que os filhos tivessem, senão um destino melhor, pelo menos um nome
importante, diferente. E deu-se que o senhor Vivente continuou a sina da
família, de trabalhador rural, de cortador de cana.
Trabalho
por demais comum naqueles tempos e naquelas paragens. Tanto que, mesmo já de
idade avançada, continuava na lida diária. Sempre trabalhando em fazendas onde
a cana era um mar, verde, sem fim, acabando na região onde estavam agora, nesta
estranha entrevista. Acabando a caneca de chá, com voz mais firme, continuou:
– Ói que já “trabaiei” em lugar que até cão, não
ia querer “trabaiá”. Mas “qui nem” na Fazenda Esperança nunca. É um povo que só
“qué sabê de ganhá”. Tanto faz o jeito. Além de ‘num ligá” pros empregado
usavam de um tudo pra “aumentá a coieita”. Era esterco de bicho que nem sabia
que ixistia. Era umas “mistura” de “química” que “num pudia” caí na mão, nem
nos “oio”. E “óia” que até aumentava, “mai” os dono dizia que a “prantação”
tinha as tar das vontade, das “nicissidade especiar”.
Após esta
fala, enquanto tomava fôlego e olhava por entre a cortina, pela janela, a noite
que crescia, seu Ilário, agora sem graça, aproveitou pra perguntar.
– E eles que deixaram o senhor nesta condição?
Seu
Vivente engoliu saliva e com os olhos arregalando respondeu:
– Pior que não. Foi a CHAGA!
Entre o
falar e o lembrar, o
coração de seu Vivente bateu
em galope e num jorro só explicou, enquanto lá fora os cachorros começaram em novo alarido:
– Tanto quiseram “colocá” coisa nas prantação
que, Deus que me perdoe, o cão é que atendeu e mandou um beijo de fogo! Uma
pedra que caiu do céu, no meio das cana, numa noite. E num é que os dono
“gostaro”? Mandaram ninguém “chegá” perto, ninguém “mexê”. Noi nu mexemo, mai
quem mexeu foi a o canaviá. Foi mudano de cor, ficando cor de ferrugem. E os
“dono” feliz, dizendo que “num” era praga, que a cana tava cresceno “mai” que
bambú. Que a pedra “amardiçoada tava ajudano” a cana. “Ajudô”... “Ajudô’ tanto
que quando “percebemo”,” tudo aquele canaviá vermeio”, ferrugento, foi se
“chegano” sozinho e “tomano” conta de tudo. Das terra, das água, das casa, das
“otra prantação”. As “foia ficaro iguar
navaia”. “Cortano e matano os bicho”, os “passarinho”, as “galinha”, os
“cachorro”, até os “cavalo”. E tudo “bebeno” o sangue dos dito cujo. Num
“diantô querê cortá” aquelas praga, que num tinha podão que vencesse, força que
“diantasse”. Elas “brotava” onde o sangue pingava e crescia pra tudo canto.
“Chegô” a hora que a “sarvação foi corrê”. Quem “ficô, tentano ajudá”, ou os
dono, que “tava tentano num perdê” o que tinha, “acabô” é se “perdeno”.
Outro
respiro, enquanto passa as mãos pelas faixas dos curativos e tenta escutar os
cachorros que se aquietaram.
– Por “poco” que num “ficô” só na lembrança.
Briguei com a praga da cana “vermeia”, com a CHAGA, “correno pra avisá”. Que
ela tá “cresceno’. Que ela” tá vino” .
Ela tá com sede do nosso sangue! Corre!
Ela “tá chegano”! Corre! A CHAGA “tá chegano”!
A última
parte da narrativa estava sendo feita aos gritos. Gritos repetidos por todos.
– A CHAGA tá chegando! Corre! A CHAGA tá chegando!
Os gritos
não eram pelo choque vivido pelo seu Vivente, nem pelo medo das meninas ou pelo
nervoso de seu Ilário e dona Augusta.
Eram um
aviso.
Eram um
pedido de socorro.
Unido e desesperado, enquanto longas folhas cor de ferrugem, manchadas pelo sangue dos cachorros, entravam pela janela, esticando-se em busca frenética.
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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