No Vale do Anhangabaú
de Cassiano Bovo
Sob a forte claridade de uma tarde ensolarada, Lucas caminhava próximo
à Estação da Luz, às
beiradas da chamada Cracolândia, centro da cidade de São Paulo. Entrou na Av.
Prestes Maia e calmamente seguiu em direção ao Vale do Anhangabaú.
Passou debaixo do Viaduto Santa Ifigênia. Na
Praça do Correio trocou rápidas palavras com alguns conhecidos, em meio às
tantas pessoas em situação de rua que ali costumam se aglomerar. No Vale do Anhangabaú estacou de
frente para o Viaduto do Chá.
Do seu lado direito, a Praça Ramos de Azevedo;
árvores e gramados contrastando com o comprido e largo cimento do vale. Na
outra ponta da praça, no alto, o imponente Teatro Municipal.
E o sono começava a bater. Veio forte. Lucas
adentrou a praça, entrou no gramado à sua frente, sentou-se e encostou-se numa
das árvores. Tudo
foi se apagando. Antes de fechar os olhos ainda viu os apressados passos de
quem andava pelo viaduto, contrários à sua situação de ausência de pressa. Quem
por ali passasse veria dormindo no gramado um homem de morena pele, longos
cabelos negros, barba por fazer em magro e enrugado rosto, envolto em sujas e
abarrotadas vestimentas.
Uma espessa névoa envolvia a praça e o vale. De forma repentina, do
esfumaçado ambiente, surge um forte indígena, braços e tórax musculosos e torneados, porém, cheios
de manchas avermelhadas. Da testa de seu largo e rude rosto saíam alguns filetes de
sangue que escorriam pelas sobrancelhas, nariz, lábios, até chegar ao queixo.
Frente a frente com Lucas, o indígena, olhos arregalados, aproximou-se falando
palavras ininteligíveis, misturadas com raiva e dor. Lucas tentou fugir, mas
não conseguia sair do lugar; gritava, mas não emitia som algum de sua boca.
Desespero. O indígena
recuou. Mas veio outro; esse, magro, rosto afunilado, repleto de feridas na
testa e em toda a face. Mecanicamente, ia para cima de Lucas; chegando perto,
voltava. Mais uma vez a tentativa de fuga e do grito. E nada....
E em meio à névoa foram chegando outros
indígenas, muitas e muitos, de todo tipo. Homens, mulheres, adultos e jovens.
Todos repletos de feridas, sangramentos nas faces e pelos corpos. Contorciam-se e gritavam. Em
seguida, deram as mãos; foram para cima de Lucas, que já nada tentava;
rodearam-no e giravam em torno dele.
O grupo ganhou novos componentes. Um homem, todo
estropiado, se juntou aos indígenas.
Camisa branca, totalmente rasgada na região do peito, onde se percebia estar
todo ensanguentado, assim como o rosto. A calça social cheia de buracos, muito
manchada de sangue.
Depois juntou-se uma mulher; camisa e saia
rasgadas, o rosto repleto de feridas e hematomas, sangue por todo o corpo.
E veio um casal com uma criança; também
arrebentados, ensanguentados, dos pés à cabeça. E foram chegando mais homens e
mulheres, formando um enorme grupo de estropiados que pulavam, gritavam, se
contorciam; começaram a dar as mãos formando um círculo, agora maior, e
obsessivamente deram várias voltas em torno de Lucas, como uma dança sufocante.
Não se tratava de algo na linha do famoso
“Thriller”, de Michael Jackson, porque esse multifacetado grupo formava um
tétrico espetáculo que, diferentemente daquele, não se “apresentava” para
Lucas; em vez disso, interagia com ele, que estava mais para integrante do que
espectador, aliás, aterrorizado.
Lucas acorda; tranquilidade na praça. As pessoas próximas
conversavam, descansavam, dormiam ou caminhavam, tudo seguindo o seu curso. Não
havia mais névoa, ao contrário, muito sol. Mas ele suava frio. Tremia,
extenuado; a cabeça terrivelmente doía. O que aconteceu? O que foi isso?
Lucas ficou abalado por um bom tempo; aquilo não
saía de sua cabeça, tal o nível de perplexidade gerado. A sensação não foi a de ter sonhado, mas a
de plenamente ter
vivenciado.
Lucas não passou mais pelo Vale do Anhangabaú,
porém, um dia (e
nem sabe como), lá estava ele. Tremeu. Voltou o pesadelo à sua cabeça. Pior,
bateu um sono! Ficou alerta, firme, e pensou “dormir aqui, jamais!”. Lutou, olhos bem
abertos!
À sua frente passou um grupo de umas vinte
pessoas. Um guia conduzia. Lucas o ouviu dizer:
“Depois de conhecermos o imponente Tetro
Municipal, com sua beleza e assombrações, estamos no Vale do Anhangabaú, que em
tupi-guarani significa algo do tipo “rio ou água do mau espírito”, porque o córrego Anhangabaú, que sempre cortou
o vale e hoje está submerso, era considerado maldito pelos indígenas, que morriam
ou ficavam doentes ao tomar sua água ou mesmo banho. Outra
hipótese é a de que os bandeirantes tenham causado algum mal aos indígenas da região, que
fizeram uma associação maligna com o rio. O lugar expressa dor e sofrimento,
também, porque ao longo do tempo muitas pessoas se suicidaram jogando-se do
Viaduto do Chá. E antes da construção do túnel sob o vale, nos anos 1990, passava
no meio dele uma movimentada avenida, continuação da Prestes Maia (e hoje
chamada de Corredor Norte-Sul); acidentes aconteciam devido o enorme fluxo de
veículos”.
Lucas teve uma espécie de insight, e pensou: “que lugar eu escolhi para tirar uma soneca!”.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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