4x12 - Subterrâneo Catamarã
de Nei Rafael Filho
I
Cena
Criminal
— As luvas eram de couro. Pretas.
A declaração do sobrevivente na região central
de Porto Alegre exigiu apuro policial. Escapou milagrosamente, o olho
severamente comprometido das pauladas recebidas. Disse que “era para
purificar”.
A madrugada ardia densa emanação da borrasca
amainada do sopro chegado do sul. Não vinha do mar, não assim entendido, embora o Lago Guaíba de
eras imemoráveis a ele pertencesse. Descendo o formato do estuário da geografia
cortada, se une à
Lagoa dos Patos. Pescadores e aldeães humildes tratam a lagoa como mar. Sábios
e educadores eruditos também. Acomodar palavras do cotidiano e do povo dizendo
as falas é a grande cultura.
A noite silenciada no frio assinalou a aparição
do vulto das luvas pretas. Com habilidade e destreza acentuadas, aparecia
como que saído debaixo da terra. Tinha pernas altas e braços esguios.
Dera por concluída a atividade de calçar e
vestir a vítima
amarrada. Boca vendada foi encostada à parede mal conservada da passagem
subterrânea Mercado Público ao Cais da Mauá. O túnel começa da Praça José
Artigas que acessa a marina e o atracadouro do Catamarã.
A rota da luta social da cidade agredida é o
gemido de pulsões sem controle dessa besta contida no mostro social. O túnel
ficou aberto. Foi fechado e horas mais tarde reaberto. Sem viva alma ao redor.
A caminhada cambaleante do morador de rua ou de algum frequentador habitual do
bar Hortência da Avenida Farrapos — os desgarrados do rebanho, pregava o
Delegado Martinho — é sinal das luvas pretas nos arredores!
A vítima era homem e a roupa vestida, antes rota
no instante do último suspiro,
é substituída por túnica lilás. É a vontade de arrependimento conforme
explicava Black Glove nos recados à
polícia.
A instituição facilmente dá apelido às
operações.
Dos escritos deixados à volta do cadáver, o fim
da linha para Gelci, a prostituta da Matriz, foi pesaroso. Black Glover a
observou semanas a fio, seguindo passos, estudando hábitos, rotinas e talvez tenha um
de seus clientes. Capturada.
É o
— É louco messiânico! O cúmplice coloca os bilhetinhos sobre o
cadáver para confusão! — destacou a escrivã Edna.
Errada! O mecanismo de Black Glove funcionava como formulário padrão: corpo nu, depois
vestido com a túnica lilás e escorado em parede; garrafa de cerveja contendo o
sangue e um bilhete datilografado. Ultimamente, foto das mãos enluvadas com o
sinal OK e o recado “Mais um. O próximo”.
Suas frases, inteligentes, e apesar do traço doentio da cena, o
praticante, com regular frequência, exibia cabedal. Revelava saberes.
As luvas eram de couro. O autor do delito
aprumou a toca que prendia os cabelos e com um aparelho de luz ultravioleta
checou o piso, a parede e atentou para eventuais marcas de sangue. Mas era para
ficar ali o sangue. Evitou pisar nas poças. Competente! E a contar do aparato
que transporta para cometer o rito, a polícia técnica aludiu aos relatórios:
— É um oniomaníaco
— afirmou Balduíno. Um oniomaníaco é adorador do consumo.
Notou o sangue vertido e fresco além do que
ficou guardado numa garrafa Long Neck
de cerveja. A tralha para dar cabo a mais um integrante de rua e perdido na
escuridão, em apurado capricho limpou o escorrimento aquoso essencial, o
sangue; o fato rapidamente creditou hipótese inédita: o crime — e outros de
idêntica natureza tocados para eliminar — foi realizado em coparticipação. Dois
bandidos em esforço comum agiam para obter resultado produtivo.
— É um crime limpo. Adornado. Acrescenta
requintes — anotou o Delegado da Zona Leste, consultando colegas em idêntica
situação. Decide dar entrevista, anunciando suspeitos que seriam interrogados,
e, já no dia
seguinte, um tijolo
envolto numa folha de papel datilógrafo foi arrojado para dentro do prédio da DP.
“Fazemos o bem purificando o corpo na túnica da
cor celeste. Busquemos redenção e a alma subirá livre da maldade do mundo.”
Mas houve o motivo de ocorrer ao acesso
subterrâneo das embarcações lacustres. Os catamarãs partiriam ao amanhecer para
a cidade de Guaíba, com escala no elegante atracadouro do ‘Barra Shopping Zona
Sul’. Havia outro passeio noturno numa embarcação já tombada como patrimônio cultural
da cidade. Não significou o evento, o que ocorreu na noite do estrangulamento,
uma festa familiar: The Golden On The
Nigth, encontro
promovido por uma rádio, era jantar dançante na
boate instalada no barco.
O navio-veleiro, reformado e reflutuado após o
naufrágio ocorrido devido à
inundação no pavimento inferior, oportunizava prazeres sob as águas lacustres.
Afundamento como consequência da fortíssima tempestade do dia 29 de janeiro de
2016 com ventos de até 120 km/h. Das escotilhas de vidro delgado, a ventania
classificada como tornado tinha força descomunal e partiu-os em pedaços
permitindo a entrada d’água não da chuva, mas do lago. Adernou e afundou
encostado à murada do cais. Atualmente, no piso inferior e reformado, estão
alojadas mesinhas circulares e no teto canhões de luz. Tudo reimplantado na
Boate Travessia.
O altamente especializado departamento técnico
da ACADEPOL deduziu ao montar a reconstrução do último assassinato:
— Aguardou a vítima. O seguiu pelo cais. O capturou. O amordaçou e o narcotizou.
Havia traços de sonífero potente na mucosa
bucal.
— Cuidando à saída dos passageiros, a rastejante
sombra no escuro escolhia a próxima vítima.
Autoridades da segurança pública levantaram
dúvida se a sinistra aparição do algoz realmente esperou amanhecer para
consumar. Dedução certa, a vítima esperou amarrada. E consumou ao raiar do Sol.
O pesado portão de aço era pintado de breu e
engastado na “Cortina
da Mauá”. A parede
da Avenida Mauá, como assim é conhecida, é o longo muro serpentado com três
metros de altura e construído em concreto nos anos 1970. Nascido para conter as
inundações provocadas pelas cheias sazonais do Guaíba nos meses de maio ou
setembro (ou para ambos os meses), ao extenso está cortado por aberturas feitas
de portas de aço e roldanas a dar passagem aos caminhões. Tudo foi previsto
para estocar grãos oriundos das embarcações flutuantes através de gruas
instaladas na linha de atraque. O portão de duas toneladas do Pier 04 seria aberto ao público somente
às seis horas de domingo. No sábado da festa esteve aberto. Graúdos
compareceram.
Calculou tudo. Depois de muito pensamento e
discussões junto a seus pares, o comissário aposentado, investigador
formalmente convidado a analisar
o caso, — opinou:
— Mesmo praticado em coautoria, essa onda de
assassinatos é manejada por mulheres.
Na noite do crime chocante, o homicida
cuidadosamente sacou da mochila uma folha de papel de cartolina. Cortado no
formato retangular. O corte era perfeito e permitiu estabilidade para ser
apoiado a uma garrafinha de cerveja contendo o sangue da vítima.
Tinha um escrito no papel de cartolina.
Sem amor por
si mesmo, o amor pelos outros também não é possível.
O ódio por
si mesmo é exatamente idêntico ao flagrante egoísmo e no
final conduz ao mesmo isolamento cruel e ao mesmo
desespero.
Nas últimas cinco semanas, imediações do cais, o
caso Boate Travessia foi seguido de outros assassinatos; era o oitavo cadáver
abandonado só no centro da cidade. A nova temporada de mortes aos desgarrados.
Então, a novidade: escritos.
A polícia parou de dar entrevista, pois logo
reunindo jornalistas o assassino da Luva Preta dava sua resposta; enviava
textos escatológicos confusos em linguagem inacessível. Prometia vingança. E
cumpria.
E decidiram tocar o caso em segredo.
Delegados partilhavam entre si:
— Atento ao último recado dele: “Não serei
descoberto. Morro antes”.
— Mais esse: “Atuo sozinho. Mas nasci como duas
pessoas numa só”.
Era o trabalho de criminoso de alta competência.
A polícia não acreditava em autoria delitiva obrada por bandido contumaz.
Seria ato passageiro.
A inteligência é fenômeno maravilhoso, anotou
Balduíno, braço direito da Delegada Haidê, no canto do relatório preparatório
ao Inquérito Monitor.
O repórter de plantão perguntou o motivo de
batizar a investigação de Inquérito Monitor. A Delegada Haidê, respondeu:
— Inspirei-me no lagarto monitor. Quando brigam
ficam em pé e abraçados.
Ilustrou:
— Tivemos dois assassinatos recentes na Zona
Sul. As vítimas: um casal de rua. Deixadas em pé, abraçadas, em túnica lilás,
escoradas na parede do depósito de lixo reciclável.
Era a rude cidade de povo aturdido; temiam o
criminoso invisível. Ao afastar do epicentro e dar de frente à Avenida
Farrapos, as esquinas mantinham o marco zero da atração sexual paga e ali a
visita das luvas era em menor frequência. Mas Black Glover em frenesi crescente
inteirava.
— Temos de dar exemplo. A veste talar lilás
angeliza — escreveu o assassino do dom da invisibilidade. Sois vítimas a purificar!
Ao menor descuido eram capturadas em raptos
vertiginosos sob a modorrenta escuridão. Levadas aos baldios terrenos da zona sul, aos depósitos
abandonados, o ogro da metrópole repartida em guetos inclassificáveis.
— Provavelmente utilize automóvel. Não é possível!
— vociferou o atual Chefe de Polícia, desafeto de Haidê.
No sentido de exercer notória habilidade a
mensurar ingrediente de novidade aos quadros da atual criminalidade, pululavam
hipóteses. A do criminoso atípico, operoso e por motivo não alcançado pelo
intelecto mediano diferenciou aos demais. Seria o agente um pervertido
psicopata? Ou criminoso qualquer?
Era trabalho de profissional do crime. Fosse
homem, fosse mulher, feito por um ou por mais de um.
Atacava aqueles que desesperadamente buscam
sustento nas
ruas. No passar das semanas, crescia o número de casos de cenas chocantes de descartes de
corpos. Largados nos subterrâneos, em áreas baldias, nos lixões e depósitos de
automóveis apreendidos. O bilhete escrito no pedaço de cartolina continha
poesia. “Há
sensibilidade por trás das luvas pretas”, filosofou Adolfo, investigador convidado.
Auxiliares checaram os tipos móveis de máquinas
de escrever. Por exclusão o detetive mergulhou as deduções. Era máquina
portátil de datilografia. Tinha quarenta anos de fabricação. Usada na geração
anterior do agente criminoso.
De memória capturava comentário do colega dono
de uma máquina. O trabalho de conclusão da universidade foi redigido
mecanicamente. No mundo fechado do crime candidato à perfeição, brechas. O
mundo todo é suspeito.
A delegacia onde o investigador atuou permitiu
escapar o ocorrido episódio Coração de Bombons e brotou pânico à frente do
aparelho urbano. O episódio quase se associa à crônica antiguíssima. Nos cafés liam:
“De volta o fantasma do Arvoredo”.
Por volta de 1863 e 1864, na Rua do Arvoredo,
atual Rua Demétrio Ribeiro, havia um açougue. Ficou famoso o local de compra de
carnes do Sr. José Ramos e da esposa húngara Catarina Palse, além do açougueiro
alemão Carlos Claussner. No local do concorrido comércio de carnes de paredes
de azulejo imaculadamente brancas ficava nos fundos da loja um alçapão oculto.
Os fregueses eram capturados e, desde que escolhidos — os mais tenros, talvez —
eram mortos,
cortados, dissecados, fatiados e deles se faziam linguiças e salsichas. A
manchete recuada trás comentários sinistros a respeito do sabor dos produtos
artesanalmente concebidos: eram deliciosas.
É que Edna recebera do motoboy um objeto
finamente embrulhado com envelope de carta endereçado ao investigador. Abriram
o pacote com o esquadrão antibombas. O embrulho, em formato de coração, continha bombons em
folhas de alumínio colorido. Um a um aberto. Eram doces em forma geométrica
diversa. Mas eis que, o penúltimo
surpreendeu a equipe ao arrepio: desembrulharam duas orelhas humanas. O bilhete
datilografado dizia: “Pare” .
A notícia atual abalou e reviveu o temor cíclico
da cidade; o vento Minuano retorna todo ano apoderado e desaparece mudo. Cidade
dos Ipês e dos jacarandás, cidade do Lago Guaíba e capital do Por do Sol. Sofre
pavores de fundo de raiz.
É honraria obrar na opulência da arte marginal, disse Adolfo. É o delito infesto às noites amorfas na terra banhada da água pingada do suor da chuva brava. Testemunho do Guaíba antes rio, correntezas passam de largo.
II
Mais Escritos
Adolfo compareceu cedo na Primeira DP. O comissário sonolento foi recepcionado
pela Delegada Haidê. A Delegada anterior, Gisela, ganhara licença. O assunto da
licença de Gisela veio à tona, mas Adolfo optou tomar um café. Ambas as chefes
tinham filhas desportistas. As meninas de Gisela praticavam tênis e as de Haidê, vôlei. Entre as quatro
reinava desafeto, por motivo tolo, como se fazia supor. As filhas de Haidê,
gêmeas, não suportavam as meninas de Gisela, alegando que eram superiores.
— Minha irmã ganhou o concurso de redação —
declara uma das meninas de Haidê anos atrás. Adolfo soube disse no recente e
sorriu. “Crianças”, dissera.
Jamais pacificaram. Num bate boca sem precedente
entre as mães, Gisela desmaiou. Foi socorrida do acúmulo de estresse de anos e se permitiu
licença remunerada.
— Estudaremos os conteúdos dos escritos —
pontificou Adolfo serenamente.
Ele frequentava o sofá-divã de Fúlvia, psicóloga forense. Tinha o
paciente Adolfo que discursava teorias criminológicas e falava das mentes
brilhantes de criminosos históricos.
— Balduíno convidou. Almoço da associação. Você
vai, Fúlvia?
— Conversemos os teus assuntos...
— Então qual o motivo de nossas sessões? Não
pode relaxar? — rebateu.
— Desconhece as razões de seu tratamento? — indaga
Fúlvia anotando, observando-o de pincenê.
Respondeu em fala suave. A voz não oculta.
— Admito. Sou bipolar. Você explicou! A
compulsão para organizar as coisas. Tenho TOC! Impossível conviver assim!
Ela procurou abrir caminho ao desaparecimento de
crença antiga dele, a convicção de alojar para dom inexplicável — nem um dom é explicável — advertia: a
premonição.
— Já não sei se ainda a tenho.
Na sala de Dagmar, perito grafólogo, Adolfo
reuniu o conjunto probatório colhido nos últimos meses e isto permitiu
classificar a “onda de caçada aos vulneráveis de rua” como a boutique da túnica.
— O escrito localizado no túnel do catamarã é de
autor consagrado. O nome do autor?
Entre discussões dos avisos da polícia à
imprensa, advertindo os lugares preferidos da ação bárbara do enluvado matador,
a Delegada de Primeira Classe Haidê chamou a equipe — e Adolfo foi convidado a
escutá-la — para informar o novo achado da polícia militar de ronda. Haidê o
escutou atentamente. Após isso,
passou a evitá-lo. Afinal, veio de cima o convite à investigação dos crimes.
Haidê não o queria. Em razão do critério idiossincrático, ambos não se
entendiam. Ele não escondia mágoa do modo injusto como Gisela foi afastada.
Haidê convocou seus comissários.
— Cercaram o lugar. Curiosos tentam cortar a
fita da passagem interrompida. Encontram outro desgarrado social. O mesmo
padrão. Depósito de lixo seco.
— Quem cuidará do caso será a 16ª DP. O Matinho é bom.
Adolfo tinha trânsito com o Delegado Martinho Escobar, exímio atirador.
Frequentava igreja evangélica pentecostal, escrevia poesia e ganhou honrarias
da linha de tiro. Mas o detetive, à distância segura, preferiu examinar a cena do crime do Cais da
Mauá antes de qualquer diálogo.
— Revelo meu pensamento a respeito do ponto nodal dos últimos homicídios.
Arregaçou mangas de camisa e projetou imagens no
Powerpoint.
As fotos do cadáver, os objetos deixados ao
lado, o escrito na cartolina, tudo estava devidamente embalado em sacos
plásticos transparentes. Com a caneta de extensão telescópica — “caneta de extensão
telescópica” é
desde a Alma Mater, a academia — sinalizou
a altura da vítima.
— Estatura média, não era um corpanzil. Interessante.
No centro as vítimas são baixas. Por precisar de velocidade, o centro é povoado
e mais olhos para testemunhar.
— Foi um penetra da festa — completou Calisto,
especialista em retrato falado. O caso da Praça Rui Barbosa, a prostituta.
Reparem o olho. Um dos cílios postiços foi arrancado. E a garrafa de cerveja
contendo sangue, pediu para observar. O caso da Matriz, junto à estátua dos
poetas: sem as duas orelhas. É uma ação nervosa, indica tensão.
O malfeitor das luvas pretas sente ódio desde a
respiração, destacou.
— As garrafas foram esvaziadas no
local. Ao manobrar o crime, o autor vai de garrafa vazia e a enche de sangue
da vítima.
Indagado a respeito do motivo do escrito, Adolfo
fez sinal airoso, pedindo calma no andar da
carruagem.
— O suspeito retirou a calcinha da vítima, a
prostituta. Sem vestígio de sêmen, saliva, nada. Vestiu a vítima com a túnica.
Retirou um dos cílios postiços...
— O que concluiu? — questiona Edna, escrivã.
— Duas hipóteses: a calcinha foi plantada pelo
suspeito ou, de fato, a vítima não trabalhou naquela noite. O modo como a abandonou indica
arrependimento. Acontece. Psicopatas também sentem — pontificou.
A equipe observou o rosto e o corpo da mulher: compleição frágil. A
serenidade fisionômica presenteou final lânguido: como que adormecida.
O cotidiano, horas vivas à sombra das chefias
policiais orientando suas equipes. Do cadáver no depósito de lixo na Restinga,
área do Delegado Martinho, nova descoberta no canteiro de obra interrompida. Em
adiantado estado de decomposição.
— E por quase
fim, damas e cavalheiros, vejamos a cartolina.
Constância, policial de Primeira Classe, ergueu
a mão. Pediu o texto. Voz limpa sobreveio. A sonoridade canora de fôlego
interpretou as palavras datilografadas.
Sem amor por
si mesmo, o amor pelos outros também não é possível.
O ódio por
si mesmo é exatamente idêntico ao flagrante egoísmo e no
final conduz ao mesmo isolamento cruel e ao mesmo
desespero.
— É do escritor alemão Hermann Hesse.
— O assassino vive só. É perturbado. E odeia a
si mesmo — comentaram.
Adolfo os escutou. Batendo as mãos
vagarosamente, estalando palmas, sua fala irônica.
— A primeira regra, Príncipes da Guarda: jamais
tropecem na aparência. Ousem. Olhem o fundo, o avesso, o derredor e o
improvável.
— E a sua opinião, detetive?
Ele arrastou o indicador na tela. Respondeu:
— Nosso criativo homicida gosta de escrever!
Mais uns passos à frente e, atento para o grupo, retirou do bolso do
paletó um papel dobrado.
— Examinem. Está dentro do plástico de coleta. A
Delegada está?
— Não está. Não chegou ainda — respondeu
Calisto.
— Muito bem. Desejava a Doutora aqui, hoje. O
nosso perito em retrato falado nos dirá algumas palavras.
No bilhete estava escrito: “Melhor parar”
Alguma dúvida? O assassino das luvas pretas
reconhece os progressos da investigação.
Impacientes, a equipe pediu os retratos. Duas
testemunhas confirmaram o automóvel em frente à Nova Prefeitura, saltando dois
passageiros. Passava das vinte e três horas. Altos e magros. Vestiam um sobretudo. Um dos
passageiros carregava uma mochila ou bolsa leva tudo. Dagmar entrou no assunto
e ampliou a imagem das letras datilografadas. Atestou a máquina de escrever
portátil:
— É máquina icônica. Modelo Hermes Baby dos anos 1970.
A equipe estava convencida. Os crimes eram
praticados a dois. E os bilhetes escritos pela mesma máquina.
Adolfo retirou-se da sala. A contar dos passos
silenciosos ao longo do corredor de acesso à sala de estar, foi até o extremo
de adentrar no gabinete de Haidê. Mas chaveada. Munido da chave mestra,
delicadamente puxou a lingueta da tranca. Preciso, o resultado surpreendeu.
— Converse, explique, resuma. Puxe debate. Aja
como professor! — pediu à Dagmar antes de arrombar o gabinete da poderosa
Delegada.
Adolfo — agora de luvas cirúrgicas feitas de
borracha sintética — revirou as gavetas e tocou nos livros. Um exemplar
desejava obter. Contou com a sorte ao encontro da obra cedida em empréstimo à
Delegada há muitos anos. A biografia da figurinista Gabrielle Bonheuer Chanel
colocou holofotes no escandaloso relacionamento com o compositor russo Igor
Stravinsky. Impressionou Haidê.
Dentro do livro havia um escrito dela em um
cartão. Para agradecer o empréstimo. Porém, não foi entregue. Foi datilografado e assinado.
Era o findar da manhã e ele ali, há um minuto e
trinta e dois segundos, suando frio, com a força do olhar dos portadores de
transtorno obsessivo compulsivo viu o conjunto dos livros e objetos pessoais de
Haidê. Trancou a respiração e,
municiando a mente com o máximo de si, por uns momentos esqueceu a crença da
premonição. É duvidoso render-se a isso; somos produto de algo maior: a mente. Imaginando
régua, compasso e o esquadro da visão, reorganizou a cena dos livros, recordou
o emprestado, a lombada da obra, e focou em relatórios
e processos
espalhados na sala, tudo feiamente desordenado. O cérebro indiviso atentou
sombras e claros, suplicou encontrar o livro. O livro! O cartão! Dando às
costas à estante, notou o birô, pequeno, acanhadamente encostado atrás das
cortinas. Abriu e avistou canetas, projeteis de pistola, e uma chave. Tinha a
gaveta chaveada. Usou a chave. Abriu a gaveta. Com a mão tateando, sentiu o
objeto. Estava no fundo, envolto num pano. Abriu o volume em mãos facilmente trêmulas. O autocontrole
exigiu lampejos (as lições de Fúlvia) — a psicóloga e anjo. Tomou o volume, as
páginas, sem esperança, o cartão não aparecia. Nas badanas da biografia da
mulher que mudou a moda o cartão estava colado à última dobra. Emocionado,
retirou o cartão e repôs o livro onde guarnecido. Envolveu-o na cobertura de pano. Reviu
detalhes de tal modo apurado, constatou a si como notório observador. Segundos
antes de deixar o gabinete,
avistou debaixo da mesa de Haidê uma fotografia. Agachou-se e a fitou com
severidade. Era foto das gêmeas. Mostrava uma delas com o braço enfaixado,
suspenso em tipoia. No verso a letra de Haidê registrou:
“O esporte
dignifica. Minhas duas meninas são como uma só”.
O cartão ficou adormecido no bolso do paletó.
Retornou à reunião. Considerações finais para
encaminhar o inquérito e pedir reforço policial às áreas de meretrício e dos
abandonados de rua; telefonou para o Delegado Martinho. Adolfo ainda indicou o
endereço residencial: Rua General João Manuel, n. 157, ap. 1010.
...
Visivelmente exausto, cumprimentou o porteiro.
Tomou o elevador. E subiu até o nono pavimento. De escadas, subiu ao 10°.
Ele checara os guardados de bolso antes entrar:
a pequena lanterna e o celular, no bolso traseiro das calças. O telefone, nos
dados. Antes de tocar na maçaneta, retornou e abriu a porta de escape de
incêndio. Observou se a luz acendia por fotocélula. Observou o piso. O tapete “Bem-Vindo” tinha a aresta do
ângulo inferior direito ligeiramente oposto à soleira da porta. Escutou o motor
do elevador – eram dois elevadores – no trajeto sobe e desce dos moradores.
Escutou o latido de cão. Era o Dachshund de Ilza, vizinha do pavimento
superior.
Pôs a mão na maçaneta e vagarosamente virou a
chave. Ao entrar respirou ar de limpeza; sexta-feira, dia da faxina de
Joaquina. Na entrada reparou o centro de mesa feito de entalhes de vidro verde.
O objeto era quadrado. Um dos lados não estava em paralelo aos limites da mesa,
também quadrada. De onde estava, plantado como vara de bambu, estudou o estar.
Pôs o olho até onde a vista alcançava. A porta de correr à sacada estava
aberta. Joaquina não deixaria assim. Adolfo deu dois passos para trás e de
costas abriu a porta de entrada.
— Não saia! Fique onde está! — ordenou. Ele
parou de imediato. A luz que tinha dentro do apartamento era frágil, desfocada,
a luz vinha de sobras luminosas do exterior.
— Se puder aparecer, conversamos. — pediu estático — Não estou armado.
O invasor apareceu. Carregava uma arma. O
detetive se deparou a um espectro sinistro de salto alto, saia justa e longa,
peruca morena de fios sedosos caídos à cintura. E mãos enluvadas. Luvas de
couro preto. O rosto era pálido — maquiagem pesada — usava um cinto de fivela larga.
Lábios engrossados de batom.
— Você virá até aqui – ordena o visitante com
mesclas na voz. Inicialmente Adolfo confundiu-se homem ou mulher. — Você subirá no parapeito e
vai pular — mandou o visitante.
O investigador tomou a tática do medo. Mostrar
pavor tranquiliza o agressor. Seu oponente não estava para brincadeira.
— É uma pistola — comentou.
— Comece a andar e salte!
— É uma típica ‘.22LR’. Ainda hoje vi a munição
desse tipo de pistola — gracejou.
O visitante deu um passo à frente e estendeu o
braço para atirar. Mirou o peito de Adolfo, que lavado em suor tremia. Sentiu perder
forças. Continuou provocando.
— Você não sabe atirar com a direita! É canhoto!
Entrou aqui com o pé direito, deslocou o tapete para a esquerda!
— Desgraçado. As mortes são minhas! Minha obra!
Não envolva mais ninguém! Nunca saberão! Em quem vão acreditar? Por essa hora a
túnica já está purificando! Chegou o seu fim, cretino!
Percebendo o controle de si, situação em pausas na
fala, o gélido entardecer noturno esvaía-se ao sobressalto de agigantamento do
inevitável. O
visitante deu mais um passo à
frente, agora muito próximo de Adolfo, que o olhou fundo apesar da pouca luz. Arregalou os olhos e
gritou:
— Gisela! Como? É você? Reconheci! Por que isso,
Gisela?
Surpreendida e confusa, maneou a cabeça.
— Sim... Eu... Eu sou Gisela... É verdade...
Ao perceber o estado de como se surpreendeu ao
deparar frente a frente com o fim, sua invasora afrouxou o pulso permitindo a
arma tombar no piso. Recompondo-se, mandou Adolfo ajoelhar-se. Seria ali mesmo
o último suspiro. Acabou. Mas um golpe revés revirou ao avesso a cena e todo
seu significado, afrontando o destino. No instante de soltar o gatilho, faltou
luz. Escureceu. Adolfo safou-se à porta de entrada em silêncio tumular. A
inoportuna gritava. Disparou para frente. Nos últimos momentos, Adolfo tocou no
abdômen. Nas pernas e braços. Estava no holl,
ileso. Chaveou todas as fechaduras, eram quatro no total, e tratou de descer os lances de escadas —
vinte e dois, no total — em feroz velocidade, enquanto pedia o corpo de
bombeiros e a polícia. Acionou Dagmar em urgência, e o comparecimento da equipe de salvamento dos
paramédicos.
— Ela está no meu apartamento! Vai saltar! Desesperada! Suicídio!
A descida era infindável e com dor no peito e
nas pernas temia enfartar. Além do apoio de Dagmar, engasgado da própria
saliva, clamou socorro a Calisto.
Mas a mulher saltou derradeiramente. Em queda
livre, passou à
frente de Adolfo. E dos bombeiros.
Na enlouquecida fuga de Adolfo, ao celular,
Dagmar perguntou:
— Quem está em seu apartamento?
— A Delegada! Delegada Haidê. Com luvas de couro
e tudo!
...
O corpo caído, estatelado, irreconhecível. O
rosto desfigurado, as grossas sobrancelhas. O queixo pontudo de Haidê se
conservou. O Instituto
Médico Legal trouxe
as pás de remoção. Martinho do culto evangélico, em estado de choque, apareceu.
— Que lástima para o Estado!
Adolfo chamou para si o médico da ambulância.
Solicitou abrir o punho direito da vítima. Estava milagrosamente intacto. A mão
cerrada exigiu ação do funcionário do IML.
— Podem abrir. Puxem os dedos com cuidado, ordenou o médico.
À volta do corpo um grupo de policiais observou
a atitude do investigador, ajudando a retirar o que nela continha. E o viram
pondo cuidadosamente no saco plástico de coleta um enorme cílio postiço
guardado na mão enluvada.
III
O quase
final
Depois os meses correram na cidade alegre. Havia
muita quietude. Gisela voltou aos serviços. Agradeceu de imenso a atuação
compositiva de Adolfo.
No correr dos dias, ele estudou mais. Olhou as
avenidas. Evitava às noites. Ainda permanecia a insegurança dos abandonados.
Evitava tocar no escabroso modus operandi de
eliminação aos indesejáveis da sociedade excludente, modo eleito por ala da polícia. E Haidê, na liderança, era
candidata a Chefe
da Polícia Estadual. Mas no meio do caminho apareceu a ponta do iceberg no Lago Guaíba. As
festas proibidas. O sereno Navio Travessia.
O cartão recuperado na biografia de Coco Chanel,
nos subterrâneos do gabinete de Haidê, tinha o escrito datilografado na máquina
Hermes Baby. Como os demais escritos, conforme
a perícia:
Os homens distinguem-se pelo
que mostram, e se assemelham pelo que escondem.
(Paul Valéry)
Nas opulentas tardes, fazia suas caminhadas.
Nada terminou. Foi ver o endereço residencial de Haidê. De binóculo, contemplou a
residência. Do amplo janelão envidraçado da sala de estar avistou as filhas
gêmeas da falecida.
Magras, altas, caminhavam de um lado para outro,
como se dois animais enjaulados.De passadas largas, no compasso de andamento
marcado, prontas sim para despontar às ruas, vislumbrando avanços no céu de
manchas feias.
Ele viu tudo. Sua tese comprovada.
Impacientes, outra mochila era aberta para receber estoque. Preencheram os vazios com uma lanterna, um canivete, cordas e dois pares de luvas de couro escuro. E túnicas lilases.
Nei Rafael Filho
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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