
No Covil das Raposas
de Edih Longo
Cheguei pontualmente às oito horas
e trinta minutos. Entrei na sala de meu futuro Chefe que me indicou a mesa e
foi me colocando a par da rotina da Empresa. Eu mal conseguia respirar, tal a
emoção. Há seis meses procurando outro emprego para complementar a renda,
aquilo era a própria Loteria. Trabalharia quatro horas por dia, alternando as
manhãs e as tardes. Dispensou-me, pois aquele era um dia especial.
Final do Campeonato Paulista de
1977 e o seu time disputaria o título naquela tarde. Mas, o escritório era bem
localizado, bem no centro da cidade de São Paulo, onde as conduções são fartas.
O salário era compensador, eu estava exultante. Ao perguntar quando faria o meu
registro, exibindo minha carteira profissional, deu uma sonora gargalhada:
—Isso a gente vê depois e, cá entre nós, o que interessa não é o salário
que estou lhe pagando? Para que registro? Para pagar impostos? Para quem se
beneficiar? Você acha que o que pagamos vai para as necessidades que o povo
tem? Olhe, faça um círculo nessa folhinha aqui. Hoje é dia 13 de outubro,
quarta-feira. Você receberá o seu salário sempre no dia 10 de cada mês sem
falta. O importante é ter o dinheiro. O
suor é seu. A forma que vai usar o que recebe pouco me importa. Você deve
avaliar o quanto lhe custou. O resto é balela, menina!
Saí de lá tropeçando naquela
gargalhada e fui direto ao meu restaurante preferido no centro da cidade e,
desanimada, brindei comigo mesma. Não via a hora de começar a trabalhar, mas a
despeito do que tinha ouvido, teria que recolher meus impostos. Nunca
compactuei com quaisquer falcatruas. Ele que engane o governo. Isso é problema de sua consciência. E a minha
me exige certos atos para que tenha uma noite de sonhos sem deslizes.
Dane-se! Trabalho uns dois meses e
procuro outro emprego. O lugar não era muito aprazível, mas o salário era
compensador. Ganharia o dobro do que ganho no outro emprego, que apesar de
fixo, posso trabalhar em sistema de plantão, o que me dá a liberdade de horários.
Fiquei saboreando a minha cerveja já fazendo planos sobre o quanto iria
fazer. Separando o dinheiro para
condução, ajudar com as despesas de casa. Pagaria o plano de saúde.
Depois de quase dois meses
trabalhando, estranhei o fato de que um armário em um corredor estava sempre
parado. Não via ninguém o limpar, mas intrigantemente era muito limpo. Os
livros dispostos de forma impecável.
Um dia, quando o movimento estava
menor, resolvi pegar um dos livros para dar uma folheada. Era um romance de Eça
de Queiroz: o Mandarim. Fiquei curiosa, pois só ouvira falar de “Os Maias” e “O
crime do padre Amaro” do escritor. Quando voltava para a minha mesa, senti-me
segura pelo braço e o livro foi prontamente retirado de minhas mãos.
—Nunca mais mexa nesta estante, ok? Se quiser algum livro, peça-me que eu
o entregarei. Restrinja-se a mexer no que lhe foi permitido fazer. O que não
lhe expliquei significa que não deve tocar.
Fiquei pasma. Balbuciei um
inaudível pedido de desculpas e me sentei à mesa, com o choro paralisado na
garganta. Aquilo me chocou de verdade e aguçou a minha curiosidade. Por que o
cuidado? Por que a faxineira limpava todos os móveis, menos aquela estante? E
por que estava impecável sempre? Outra curiosidade agitava meu espírito. Era
sempre eu quem fechava o escritório, quando trabalhava à tarde, tendo que jogar
a chave por uma portinhola em uma caixinha que era destinada aos Correios.
Quando chegava mais cedo do que o
Chefe ou a senhora que fazia a faxina no dia seguinte, tinha que ficar
esperando. Num sábado, fomos chamados para uma reforçada no expediente.
Chegaram novas mercadorias e coubera a mim a catalogação de todas, limpar as
prateleiras do depósito e a disposição numeral de todas as caixas. Aliás, a
minha função era apenas preencher as NFs. de mercadorias que nunca vi.
Outra coisa intrigante: o
pagamento era feito em espécie. Os trabalhos extras eram pagos no mesmo dia. Eu
fazia os pagamentos das despesas do escritório. Sempre em dia e em dinheiro
vivo. Eu olhava para o monte de caixas e olhava para a enorme relação de
códigos incompreensíveis, pelo menos para mim, mas para o Chefe era como se
tivesse convivido com aqueles códigos desde a barriga da mãe. Assim que chegava
à porta de minha sala, virava-se e me recomendava mais uma vez sussurrando
entredentes:
—Nem mesmo ouse pensar em abrir quaisquer caixas, verstanden? E não se esqueça de colocar um pequeno “x” nas que têm
uma tarja preta, all right?
—Não entendi a última parte. Se a caixa já é identificada pela tarja, por
que preciso reidentificá-la com um “x” pequeno e em vermelho? Não lhe parece
supérfluo?
—Por duas razões: primeiro porque isso não é da sua conta. Segundo: porque sou o Chefe e estou mandando, capice?
Ele terminava as frases sempre em
outra língua. Isso significava uma coisa: para se ter muito cuidado em não o
contrariar. Acho que pensava que com isso já era um poliglota e poderia nos
matar sem quaisquer cerimônias, pois era um cidadão do mundo e tinha todos os
direitos de pisar nos mais humildes. Eu já estava procurando outro emprego, mas
precisava dessa complementação.
Minha mãe tinha recém-saído do
hospital, vítima de um acidente no trabalho. Papai disse que ela se machucou de
propósito para receber a indenização trabalhista e engordar a raquítica renda
familiar. Assim como meu atual Chefe, colocava o indicador nos lábios em sinal
de silêncio. Ninguém jamais poderia saber do fato. Ele não estava conseguindo
segurar todas as despesas da casa, além do mais éramos sete e eu — desgraçadamente a mais velha — tinha sob minha responsabilidade o pagamento de
parte da prestação do antigo BNH. Lá em casa, todos trabalhavam aos quatorze
anos. Tornávamo-nos, assim, maiores à força da necessidade.
Quando fiz quinze anos, ao invés de uma festa, tive que
ficar mais uma vez cuidando dos meus irmãos menores porque minha mãe foi para a
maternidade. Irresponsabilidade familiar. Tornamo-nos sete, pois nasceram
gêmeas. Parece conta de mentiroso, mas é a pura verdade. Minha tia caçula de
treze anos veio morar conosco para me ajudar com a criançada, mas era só uma
boca a mais para alimentar, irresponsável e chorona.
Mamãe teve duas meninas lindas,
mas, como todos os bebês, chatas que dói: só choram, sujam e sugam, além dos
seios de mamãe, a paciência dos irmãos mais velhos com as suas idiossincrasias impostas.
Tenho plena consciência desta
incoerente e redundante afirmação a respeito das “idiossincrasias” delas, mas é
a mais genuína verdade. O choro das meninas parecia o canto de duplas caipiras
com aquelas vozes trêmulas.
Bem, o jeito era me ajeitar melhor
na cadeira e fazer “x” não para uma máquina fotográfica para registrar um
momento feliz, mas para fazer um monte de “xises” (existe isso?) para marcar
alguma coisa que, a propósito da matemática, eram verdadeiras incógnitas e, a
propósito da realidade, mais uma absoluta verdade, quase um axioma de tão
importantes, pelo menos para o chefe.
Um dia, fui ao banheiro e
retornando, quando estava absorta em minha estranha tarefa, ouvi barulhos que
pareciam vir da tal estante já citada. De minha mesa, percebi que havia um
espaço grande entre um dos livros e outro de uma mesma prateleira. Olhei para
todos os lados e não vi ninguém. Havia um silêncio sepulcral na sala contígua
onde quatro funcionários trabalhavam. Fui até a sala e não tinha ninguém. A
faxineira não estava,
apesar de ser duas e meia da tarde.
Fora
dispensada, sem dúvidas. Encostei os
ouvidos na estante, mas só conseguia ouvir balbucios. Dei novamente a volta
pela sala onde ficavam os quatro funcionários e, novamente, certifiquei-me que não havia
nenhuma porta por onde saiam aqueles barulhos. Conclusão lógica: do outro lado
da estante algo acontecia. Fiquei em minha mesa muda e indiferente. Uma hora
qualquer, aquelas pessoas que estavam do outro lado teriam que sair e como na
sala não tinham outras portas...
Para me desfazer de quaisquer
dúvidas, pois jamais suportei a hipótese de um erro voluntário, fui ao corredor
entre as demais firmas que existiam no andar e nada. Deduzi, pela lógica, que
todos tinham entrado quando fui ao banheiro. Munida desta pista, fui outra vez
ao citado local e...
Pessoas, olhando por um canto meio
escuro que ficava entre as nossas salas e a cozinha, todos saíram olhando para
todos os lugares com passos cautelosos de maridos infiéis e o ar ficou fétido
como a privada da qual tinha acabado de sair.
Ali tinha coisa. Nos dias seguintes, fui a
secretária mais eficiente que o 30 de setembro já conheceu. O chefe me
surpreendeu com um elogio tão rasgado que os demais bateram palmas. Quando
recebi novamente as mesmas caixas para fazer os mesmos “xises” (existe isso?),
depois de tê-las fantasiado em vermelho, fingi uma lastimável dor de barriga e
corri ao banheiro.
Do meu observatório no cantinho
escuro, escutei quando mandaram a faxineira sair mais cedo. Na sequência, meu
chefe e seu inseparável assistente a quem ele mesmo chamava de “meu
chaveirinho” entraram por uma porta na largura exata da estante que foi aberta
quando o “Mandarim” do Eça de Queiroz foi empurrado.
Ele fez um sinal aos funcionários
da sala ao lado e todos olhando para todos os lados levaram as tais caixas que
eu reindentificara. Entrei correndo no banheiro, pois um dos funcionários veio
em minha direção. Percebi que escutava à porta e dei descarga. Com eles, confesso,
entrou também naquela sala a minha curiosidade que chegava à beira de uma
Agatha Christie.
Meu coração pulava incontrolável.
Quando fecharam a porta-estante
antes de darem mais uma olhada pela sala, saí de meu esconderijo trêmula e
agora, com medo. O que acontecia ali atrás naquela sala? Um importante detalhe:
percebi que, quando eles anunciavam que iam buscar mercadorias. Falavam
cochichando.
Era sempre quando eu, ou estava no
banheiro ou quando ia embora na parte da manhã. Quando trabalhava na parte da
tarde, só estava a faxineira. E até a hora de eu ir embora, eles nunca
chegavam, ou seja, era sempre eu quem jogava a chave na caixinha do correio. E
no dia seguinte, as ditas caixas de mercadorias já estavam dispostas em minha
sala.
Dedução: traziam, eu identificava
e eles voltavam mais tarde para trabalhar na outra sala. Acho que pensaram que
eu já tinha ido. Uma tarde, depois do almoço, na antessala, várias moças com
idades variadas entre dezoito e vinte anos no máximo esperavam para serem testadas
para trabalhar na empresa. Meu chefe me chamou e secamente disse que eu iria
entrevistá-las e, confiante no meu bom gosto e cultura, deixar-me-ia a
incumbência de escolher cinco delas para um pequeno trabalho no exterior.
—Para qual
função precisamos de cinco moças no exterior?
—Isso não é, absolutamente, de sua
conta. Você entrevista as moças em inglês, verifica se a documentação está de
conformidade com o que foi exigido no pedido que fiz à Agência e pronto.
Elimina as que não servirem e é só.
—Desculpe-me, mas parece nonsense alguém entrevistar outrem sem
saber qual o objetivo disso. Afinal, essas moças sabem quais serão as suas
atribuições?
—Só quero que você avalie se sabem
mais ou menos falar inglês, observe a forma de sentarem, a forma de se
comunicarem e se vestirem sem serem vulgares. Se os documentos estão em ordem.
Só isso. Do you understand me?
—Sure.
A olhada enviesada que ele me
lançou, deu-me a certeza de que eu daria o fora daquele lugar. Ou ele daria o
fora de mim. Não conseguia entender o que fazia ali, sem ter explicações
necessárias para saber exatamente qual era a minha função. Eu estava me
sentindo incomodada, como se fosse usada com uma finalidade dúbia. Além daquela
sala atrás de uma estante; agora, essas moças que iriam para o exterior, mas
para fazerem o quê?
Bem, aleatoriamente, fui fazendo
as tais entrevistas e por minha própria convicção, resolvi que seriam
escolhidas de acordo com as necessidades de cada uma. Por ex., se faziam uma
faculdade, se ajudavam os pais, quais as suas perspectivas diante deste novo
trabalho e, principalmente, a todas perguntei se tinham consciência da forma de
trabalho que seria.
Mara Sanches, a última que entrou
em minha sala, tinha uma tez pálida e estava um pouco trêmula. As demais, ou
melhor, as quatro que selecionei estavam impecáveis. Cabelos bem penteados.
Mas, todas, sem exceção, tinham os olhos ávidos pelo emprego. A todas fiz as
mesmas perguntas e terminava com: sabe qual será a sua função? Fingindo, claro,
que eu sabia. Nenhuma delas sabia, mas não se incomodavam com isso.
Dei um copo d’água para Mara e
olhando os seus olhos bem maquiados, achei-a a mais bonita de todas. Mas, as
mãos eram maltratadas, com unhas apenas com base. Fingindo me arrumar melhor na
cadeira, cheguei mais perto e não senti nenhuma réstia de perfume. Ela percebeu
o meu exame e se encolheu.
—Sabe qual será a sua função?
—Mula. Mulheres que ingerem drogas
e trazem ao Brasil. É a terceira vez que faço isso. Por favor, faço só mais
essa vez. Minha mãe precisa de remédios que não consigo em nosso serviço
público e tenho urgência, pois ela morrerá sem eles. Não posso me dar ao luxo
de procurar um emprego que não existe, pois sou Professora e, atualmente,
parece uma profissão desnecessária.
Sei que está olhando as minhas
mãos. Efeito das várias faxinas que faço e por mais que me multiplique não
consigo manter minha irmã e minha mãe. Infelizmente, não tenho os tentáculos de
uma centopeia, e sinceramente, moça, adoraria ser uma. Temos apenas uma pensão
medíocre que meu pai nos deixou quando morreu. Aliás, baleado numa emboscada
com drogas no caminhão. Com a morte dele, o Raposão me usou para o ressarcir do
prejuízo.
—Raposão?!
—Esquece. Acho que falei demais.
Desculpe-me. E então? Já tenho experiência. Comigo, vocês não correm risco
algum. Por favor, preciso do dinheiro. Só não aceito a prostituição, engulo a
droga e caio fora.
—Vocês?! Que fique claro que não
faço parte em absoluto do grupo. Já que conhece metade da sujeira deste lugar,
não quer ficar com o meu emprego? O salário é bom e você não precisa correr o
risco de uma intoxicação por drogas e, principalmente, o risco maior que é ser
presa. Estou com vaga em outro lugar e penso em pedir demissão ainda hoje. Mas,
não comente com ninguém, viu? Eu a indicarei para o cargo.
Ela saiu com a felicidade
estampada no rosto. Esperei todos saírem para o almoço.
Convidaram-me, mas dei a desculpa
de que tinha trazido marmita e adiantaria o resultado das entrevistas em um
relatório que deixaria em cima da mesa do Chefe. Ele ainda me agradeceu, feliz
pelo meu exemplar esforço. Babaca! Fui direto no Mandarim e a porta se
escancarou. Sem querer, assustei-me com o barulho do elevador e apertei a
lombada do livro.
Esse era o segredo. Quando entrei
na sala, fiquei pasma. Havia muita coisa
podre no reino daquela Dinamarca. Aquilo era um laboratório onde se processava
cocaína. Numa estante estavam vários pacotes envoltos em papel alumínio
fechados com sacolas de plástico transparente e com nomes de pessoas e
indicações tipo, ponto 1; ponto 2, etc.
Talvez, os usuários e destinos
como casas noturnas e motéis, os distribuidores. Numa das caixas que eu
colocava o tal “x” em vermelho, havia quilos e mais quilos da droga. Várias
balanças e etiquetas. O local era limpo e, apesar de não ter janelas, o ar era
purificado por potentes aparelhos condicionadores.
No fundo da sala, havia uma
elevação, onde de um lado tinha uma pequena prateleira com vários livros-caixa
e do outro um pequeno sofá de dois lugares. No centro, uma mesinha de vime,
cujos restos de pó evidenciaram
que alguém tinha usado. Os cretinos ainda se drogavam. Raro isso em aliciadores
e traficantes.
Quatro das ardósias do piso
estavam deslocadas e se via milhares de dólares e reais estocados no
contrapiso. Por isso, eles me pagavam muito bem e em dinheiro. Sempre estranhei
o fato de nunca ter assinado um recibo. Em um tonel de madeira típico para
vinho, um pó que mais parecia farinha de trigo. Eles, com certeza, misturavam.
Mas, o que mais me espantou foram
várias pistolas dentro de caixotes, todas da marca WALTHER (made in USA).
Aquilo devia entrar ali, na calada da noite, pois nunca tinha visto aquelas
caixas antes. Não vacilei e tirei foto de tudo. Sabia que eles não voltariam
mais, pois iam buscar mercadorias. Quase berrei de tanta felicidade. Uma mera
coincidência que me daria, com certeza, uma recompensa.
Sai dali correndo e fui para a
Polícia Federal onde trabalho como Agente por meio período, enquanto não for
efetivada. Há meses estamos à procura deste lugar incrível que, por conta da
necessidade, caí de paraquedas. Guardei
o telefone da Mara Sanches e o endereço. Se eu fosse efetivada, indicaria para
ela o emprego de atendente em uma Clínica Dentária que tinha conseguido. O
salário era pouco, mas o lugar honesto e seguro.
E ela, não posaria de galinha para
aquele Raposão e seria uma providencial testemunha. À noite, o Jornal Nacional
dava as notícias do desmantelo de um dos pontos mais procurados pela polícia
nos últimos meses. Lá se traficava drogas; mulheres para prostituição e mulas;
documentos falsificados; diplomas universitários etc.
Esse etc., incluí nas minhas
orações de agradecimentos à noite. Meus amigos consideraram melhor eu ficar no
anonimato. Seria uma etc. facilmente eliminada. Todos os funcionários,
inclusive a faxineira, sabiam do que acontecia na sala que levavam os meus
“xises” (existe isso?) e a minha curiosidade que salvou um montão de gente.
Ah, soube pelas matérias
televisivas que as armas eram distribuídas como prêmios para os traficantes que
mais consumidores aliciassem. A operação ficou conhecida como o “Covil das
Raposas”. Ufa! Ainda bem que não tenho tendências galináceas, nunca fui
gananciosa e muito menos conformista, senão, seria facilmente depenada pelo
Raposão poliglota.
Ele regimentava o seu quartel de
acordo com a ambição de cada um. E nossa faxineira era uma das melhores
distribuidoras na favela onde fazia questão de morar, apesar da grana que
ganhava. Por isso, saía sempre mais cedo e sempre com uma sacolona que eu
achava que era sua roupa de faxina. Já tinha um pequeno arsenal de armas em
casa: quatro WALTHERs, é brincadeira?
Quando descoberta, soube que a sua
casa era de alvenaria, com três andares e tinha até piscina, enfim...Naquele
monte de barracos, parecia a Basílica Nossa Senhora Aparecida que a gente vê de
tudo quanto é lado, que ela me perdoe a comparação.
Por isso, atualmente, quando sigo
as notícias da nossa recente descoberta sobre doleiros; corrupções políticas e
empresariais; e, eteceteras afora; feita pela nossa maravilhosa equipe da Lava
a Jato, lembro-me saudosa de minha experiência há anos.
Não tem jeito, a história sempre é
a mesma. Descobrimos também que havia alguns políticos melecados com a sujeira
do Raposão. E isso aconteceu há...Ah, deixa para lá. Faz um tempinho. Afinal, o
mais importante é que consegui sair salva do “covil das raposas”.
Não comentei com ninguém, nem
mesmo em minha casa.
Vamos mudar de assunto?
Cheguei pontualmente às oito horas
e trinta minutos. Entrei na sala de meu futuro Chefe que me indicou a mesa e
foi me colocando a par da rotina da Empresa. Eu mal conseguia respirar, tal a
emoção. Há seis meses procurando outro emprego para complementar a renda,
aquilo era a própria Loteria. Trabalharia quatro horas por dia, alternando as
manhãs e as tardes. Dispensou-me, pois aquele era um dia especial.
Final do Campeonato Paulista de
1977 e o seu time disputaria o título naquela tarde. Mas, o escritório era bem
localizado, bem no centro da cidade de São Paulo, onde as conduções são fartas.
O salário era compensador, eu estava exultante. Ao perguntar quando faria o meu
registro, exibindo minha carteira profissional, deu uma sonora gargalhada:
—Isso a gente vê depois e, cá entre nós, o que interessa não é o salário
que estou lhe pagando? Para que registro? Para pagar impostos? Para quem se
beneficiar? Você acha que o que pagamos vai para as necessidades que o povo
tem? Olhe, faça um círculo nessa folhinha aqui. Hoje é dia 13 de outubro,
quarta-feira. Você receberá o seu salário sempre no dia 10 de cada mês sem
falta. O importante é ter o dinheiro. O
suor é seu. A forma que vai usar o que recebe pouco me importa. Você deve
avaliar o quanto lhe custou. O resto é balela, menina!
Saí de lá tropeçando naquela
gargalhada e fui direto ao meu restaurante preferido no centro da cidade e,
desanimada, brindei comigo mesma. Não via a hora de começar a trabalhar, mas a
despeito do que tinha ouvido, teria que recolher meus impostos. Nunca
compactuei com quaisquer falcatruas. Ele que engane o governo. Isso é problema de sua consciência. E a minha
me exige certos atos para que tenha uma noite de sonhos sem deslizes.
Dane-se! Trabalho uns dois meses e
procuro outro emprego. O lugar não era muito aprazível, mas o salário era
compensador. Ganharia o dobro do que ganho no outro emprego, que apesar de
fixo, posso trabalhar em sistema de plantão, o que me dá a liberdade de horários.
Fiquei saboreando a minha cerveja já fazendo planos sobre o quanto iria
fazer. Separando o dinheiro para
condução, ajudar com as despesas de casa. Pagaria o plano de saúde.
Depois de quase dois meses
trabalhando, estranhei o fato de que um armário em um corredor estava sempre
parado. Não via ninguém o limpar, mas intrigantemente era muito limpo. Os
livros dispostos de forma impecável.
Um dia, quando o movimento estava
menor, resolvi pegar um dos livros para dar uma folheada. Era um romance de Eça
de Queiroz: o Mandarim. Fiquei curiosa, pois só ouvira falar de “Os Maias” e “O
crime do padre Amaro” do escritor. Quando voltava para a minha mesa, senti-me
segura pelo braço e o livro foi prontamente retirado de minhas mãos.
—Nunca mais mexa nesta estante, ok? Se quiser algum livro, peça-me que eu
o entregarei. Restrinja-se a mexer no que lhe foi permitido fazer. O que não
lhe expliquei significa que não deve tocar.
Fiquei pasma. Balbuciei um
inaudível pedido de desculpas e me sentei à mesa, com o choro paralisado na
garganta. Aquilo me chocou de verdade e aguçou a minha curiosidade. Por que o
cuidado? Por que a faxineira limpava todos os móveis, menos aquela estante? E
por que estava impecável sempre? Outra curiosidade agitava meu espírito. Era
sempre eu quem fechava o escritório, quando trabalhava à tarde, tendo que jogar
a chave por uma portinhola em uma caixinha que era destinada aos Correios.
Quando chegava mais cedo do que o
Chefe ou a senhora que fazia a faxina no dia seguinte, tinha que ficar
esperando. Num sábado, fomos chamados para uma reforçada no expediente.
Chegaram novas mercadorias e coubera a mim a catalogação de todas, limpar as
prateleiras do depósito e a disposição numeral de todas as caixas. Aliás, a
minha função era apenas preencher as NFs. de mercadorias que nunca vi.
Outra coisa intrigante: o
pagamento era feito em espécie. Os trabalhos extras eram pagos no mesmo dia. Eu
fazia os pagamentos das despesas do escritório. Sempre em dia e em dinheiro
vivo. Eu olhava para o monte de caixas e olhava para a enorme relação de
códigos incompreensíveis, pelo menos para mim, mas para o Chefe era como se
tivesse convivido com aqueles códigos desde a barriga da mãe. Assim que chegava
à porta de minha sala, virava-se e me recomendava mais uma vez sussurrando
entredentes:
—Nem mesmo ouse pensar em abrir quaisquer caixas, verstanden? E não se esqueça de colocar um pequeno “x” nas que têm
uma tarja preta, all right?
—Não entendi a última parte. Se a caixa já é identificada pela tarja, por
que preciso reidentificá-la com um “x” pequeno e em vermelho? Não lhe parece
supérfluo?
—Por duas razões: primeiro porque isso não é da sua conta. Segundo: porque sou o Chefe e estou mandando, capice?
Ele terminava as frases sempre em
outra língua. Isso significava uma coisa: para se ter muito cuidado em não o
contrariar. Acho que pensava que com isso já era um poliglota e poderia nos
matar sem quaisquer cerimônias, pois era um cidadão do mundo e tinha todos os
direitos de pisar nos mais humildes. Eu já estava procurando outro emprego, mas
precisava dessa complementação.
Minha mãe tinha recém-saído do
hospital, vítima de um acidente no trabalho. Papai disse que ela se machucou de
propósito para receber a indenização trabalhista e engordar a raquítica renda
familiar. Assim como meu atual Chefe, colocava o indicador nos lábios em sinal
de silêncio. Ninguém jamais poderia saber do fato. Ele não estava conseguindo
segurar todas as despesas da casa, além do mais éramos sete e eu — desgraçadamente a mais velha — tinha sob minha responsabilidade o pagamento de
parte da prestação do antigo BNH. Lá em casa, todos trabalhavam aos quatorze
anos. Tornávamo-nos, assim, maiores à força da necessidade.
Quando fiz quinze anos, ao invés de uma festa, tive que
ficar mais uma vez cuidando dos meus irmãos menores porque minha mãe foi para a
maternidade. Irresponsabilidade familiar. Tornamo-nos sete, pois nasceram
gêmeas. Parece conta de mentiroso, mas é a pura verdade. Minha tia caçula de
treze anos veio morar conosco para me ajudar com a criançada, mas era só uma
boca a mais para alimentar, irresponsável e chorona.
Mamãe teve duas meninas lindas,
mas, como todos os bebês, chatas que dói: só choram, sujam e sugam, além dos
seios de mamãe, a paciência dos irmãos mais velhos com as suas idiossincrasias impostas.
Tenho plena consciência desta
incoerente e redundante afirmação a respeito das “idiossincrasias” delas, mas é
a mais genuína verdade. O choro das meninas parecia o canto de duplas caipiras
com aquelas vozes trêmulas.
Bem, o jeito era me ajeitar melhor
na cadeira e fazer “x” não para uma máquina fotográfica para registrar um
momento feliz, mas para fazer um monte de “xises” (existe isso?) para marcar
alguma coisa que, a propósito da matemática, eram verdadeiras incógnitas e, a
propósito da realidade, mais uma absoluta verdade, quase um axioma de tão
importantes, pelo menos para o chefe.
Um dia, fui ao banheiro e
retornando, quando estava absorta em minha estranha tarefa, ouvi barulhos que
pareciam vir da tal estante já citada. De minha mesa, percebi que havia um
espaço grande entre um dos livros e outro de uma mesma prateleira. Olhei para
todos os lados e não vi ninguém. Havia um silêncio sepulcral na sala contígua
onde quatro funcionários trabalhavam. Fui até a sala e não tinha ninguém. A
faxineira não estava,
apesar de ser duas e meia da tarde.
Fora
dispensada, sem dúvidas. Encostei os
ouvidos na estante, mas só conseguia ouvir balbucios. Dei novamente a volta
pela sala onde ficavam os quatro funcionários e, novamente, certifiquei-me que não havia
nenhuma porta por onde saiam aqueles barulhos. Conclusão lógica: do outro lado
da estante algo acontecia. Fiquei em minha mesa muda e indiferente. Uma hora
qualquer, aquelas pessoas que estavam do outro lado teriam que sair e como na
sala não tinham outras portas...
Para me desfazer de quaisquer
dúvidas, pois jamais suportei a hipótese de um erro voluntário, fui ao corredor
entre as demais firmas que existiam no andar e nada. Deduzi, pela lógica, que
todos tinham entrado quando fui ao banheiro. Munida desta pista, fui outra vez
ao citado local e...
Pessoas, olhando por um canto meio
escuro que ficava entre as nossas salas e a cozinha, todos saíram olhando para
todos os lugares com passos cautelosos de maridos infiéis e o ar ficou fétido
como a privada da qual tinha acabado de sair.
Ali tinha coisa. Nos dias seguintes, fui a
secretária mais eficiente que o 30 de setembro já conheceu. O chefe me
surpreendeu com um elogio tão rasgado que os demais bateram palmas. Quando
recebi novamente as mesmas caixas para fazer os mesmos “xises” (existe isso?),
depois de tê-las fantasiado em vermelho, fingi uma lastimável dor de barriga e
corri ao banheiro.
Do meu observatório no cantinho
escuro, escutei quando mandaram a faxineira sair mais cedo. Na sequência, meu
chefe e seu inseparável assistente a quem ele mesmo chamava de “meu
chaveirinho” entraram por uma porta na largura exata da estante que foi aberta
quando o “Mandarim” do Eça de Queiroz foi empurrado.
Ele fez um sinal aos funcionários
da sala ao lado e todos olhando para todos os lados levaram as tais caixas que
eu reindentificara. Entrei correndo no banheiro, pois um dos funcionários veio
em minha direção. Percebi que escutava à porta e dei descarga. Com eles, confesso,
entrou também naquela sala a minha curiosidade que chegava à beira de uma
Agatha Christie.
Meu coração pulava incontrolável.
Quando fecharam a porta-estante
antes de darem mais uma olhada pela sala, saí de meu esconderijo trêmula e
agora, com medo. O que acontecia ali atrás naquela sala? Um importante detalhe:
percebi que, quando eles anunciavam que iam buscar mercadorias. Falavam
cochichando.
Era sempre quando eu, ou estava no
banheiro ou quando ia embora na parte da manhã. Quando trabalhava na parte da
tarde, só estava a faxineira. E até a hora de eu ir embora, eles nunca
chegavam, ou seja, era sempre eu quem jogava a chave na caixinha do correio. E
no dia seguinte, as ditas caixas de mercadorias já estavam dispostas em minha
sala.
Dedução: traziam, eu identificava
e eles voltavam mais tarde para trabalhar na outra sala. Acho que pensaram que
eu já tinha ido. Uma tarde, depois do almoço, na antessala, várias moças com
idades variadas entre dezoito e vinte anos no máximo esperavam para serem testadas
para trabalhar na empresa. Meu chefe me chamou e secamente disse que eu iria
entrevistá-las e, confiante no meu bom gosto e cultura, deixar-me-ia a
incumbência de escolher cinco delas para um pequeno trabalho no exterior.
—Para qual
função precisamos de cinco moças no exterior?
—Isso não é, absolutamente, de sua
conta. Você entrevista as moças em inglês, verifica se a documentação está de
conformidade com o que foi exigido no pedido que fiz à Agência e pronto.
Elimina as que não servirem e é só.
—Desculpe-me, mas parece nonsense alguém entrevistar outrem sem
saber qual o objetivo disso. Afinal, essas moças sabem quais serão as suas
atribuições?
—Só quero que você avalie se sabem
mais ou menos falar inglês, observe a forma de sentarem, a forma de se
comunicarem e se vestirem sem serem vulgares. Se os documentos estão em ordem.
Só isso. Do you understand me?
—Sure.
A olhada enviesada que ele me
lançou, deu-me a certeza de que eu daria o fora daquele lugar. Ou ele daria o
fora de mim. Não conseguia entender o que fazia ali, sem ter explicações
necessárias para saber exatamente qual era a minha função. Eu estava me
sentindo incomodada, como se fosse usada com uma finalidade dúbia. Além daquela
sala atrás de uma estante; agora, essas moças que iriam para o exterior, mas
para fazerem o quê?
Bem, aleatoriamente, fui fazendo
as tais entrevistas e por minha própria convicção, resolvi que seriam
escolhidas de acordo com as necessidades de cada uma. Por ex., se faziam uma
faculdade, se ajudavam os pais, quais as suas perspectivas diante deste novo
trabalho e, principalmente, a todas perguntei se tinham consciência da forma de
trabalho que seria.
Mara Sanches, a última que entrou
em minha sala, tinha uma tez pálida e estava um pouco trêmula. As demais, ou
melhor, as quatro que selecionei estavam impecáveis. Cabelos bem penteados.
Mas, todas, sem exceção, tinham os olhos ávidos pelo emprego. A todas fiz as
mesmas perguntas e terminava com: sabe qual será a sua função? Fingindo, claro,
que eu sabia. Nenhuma delas sabia, mas não se incomodavam com isso.
Dei um copo d’água para Mara e
olhando os seus olhos bem maquiados, achei-a a mais bonita de todas. Mas, as
mãos eram maltratadas, com unhas apenas com base. Fingindo me arrumar melhor na
cadeira, cheguei mais perto e não senti nenhuma réstia de perfume. Ela percebeu
o meu exame e se encolheu.
—Sabe qual será a sua função?
—Mula. Mulheres que ingerem drogas
e trazem ao Brasil. É a terceira vez que faço isso. Por favor, faço só mais
essa vez. Minha mãe precisa de remédios que não consigo em nosso serviço
público e tenho urgência, pois ela morrerá sem eles. Não posso me dar ao luxo
de procurar um emprego que não existe, pois sou Professora e, atualmente,
parece uma profissão desnecessária.
Sei que está olhando as minhas
mãos. Efeito das várias faxinas que faço e por mais que me multiplique não
consigo manter minha irmã e minha mãe. Infelizmente, não tenho os tentáculos de
uma centopeia, e sinceramente, moça, adoraria ser uma. Temos apenas uma pensão
medíocre que meu pai nos deixou quando morreu. Aliás, baleado numa emboscada
com drogas no caminhão. Com a morte dele, o Raposão me usou para o ressarcir do
prejuízo.
—Raposão?!
—Esquece. Acho que falei demais.
Desculpe-me. E então? Já tenho experiência. Comigo, vocês não correm risco
algum. Por favor, preciso do dinheiro. Só não aceito a prostituição, engulo a
droga e caio fora.
—Vocês?! Que fique claro que não
faço parte em absoluto do grupo. Já que conhece metade da sujeira deste lugar,
não quer ficar com o meu emprego? O salário é bom e você não precisa correr o
risco de uma intoxicação por drogas e, principalmente, o risco maior que é ser
presa. Estou com vaga em outro lugar e penso em pedir demissão ainda hoje. Mas,
não comente com ninguém, viu? Eu a indicarei para o cargo.
Ela saiu com a felicidade
estampada no rosto. Esperei todos saírem para o almoço.
Convidaram-me, mas dei a desculpa
de que tinha trazido marmita e adiantaria o resultado das entrevistas em um
relatório que deixaria em cima da mesa do Chefe. Ele ainda me agradeceu, feliz
pelo meu exemplar esforço. Babaca! Fui direto no Mandarim e a porta se
escancarou. Sem querer, assustei-me com o barulho do elevador e apertei a
lombada do livro.
Esse era o segredo. Quando entrei
na sala, fiquei pasma. Havia muita coisa
podre no reino daquela Dinamarca. Aquilo era um laboratório onde se processava
cocaína. Numa estante estavam vários pacotes envoltos em papel alumínio
fechados com sacolas de plástico transparente e com nomes de pessoas e
indicações tipo, ponto 1; ponto 2, etc.
Talvez, os usuários e destinos
como casas noturnas e motéis, os distribuidores. Numa das caixas que eu
colocava o tal “x” em vermelho, havia quilos e mais quilos da droga. Várias
balanças e etiquetas. O local era limpo e, apesar de não ter janelas, o ar era
purificado por potentes aparelhos condicionadores.
No fundo da sala, havia uma
elevação, onde de um lado tinha uma pequena prateleira com vários livros-caixa
e do outro um pequeno sofá de dois lugares. No centro, uma mesinha de vime,
cujos restos de pó evidenciaram
que alguém tinha usado. Os cretinos ainda se drogavam. Raro isso em aliciadores
e traficantes.
Quatro das ardósias do piso
estavam deslocadas e se via milhares de dólares e reais estocados no
contrapiso. Por isso, eles me pagavam muito bem e em dinheiro. Sempre estranhei
o fato de nunca ter assinado um recibo. Em um tonel de madeira típico para
vinho, um pó que mais parecia farinha de trigo. Eles, com certeza, misturavam.
Mas, o que mais me espantou foram
várias pistolas dentro de caixotes, todas da marca WALTHER (made in USA).
Aquilo devia entrar ali, na calada da noite, pois nunca tinha visto aquelas
caixas antes. Não vacilei e tirei foto de tudo. Sabia que eles não voltariam
mais, pois iam buscar mercadorias. Quase berrei de tanta felicidade. Uma mera
coincidência que me daria, com certeza, uma recompensa.
Sai dali correndo e fui para a
Polícia Federal onde trabalho como Agente por meio período, enquanto não for
efetivada. Há meses estamos à procura deste lugar incrível que, por conta da
necessidade, caí de paraquedas. Guardei
o telefone da Mara Sanches e o endereço. Se eu fosse efetivada, indicaria para
ela o emprego de atendente em uma Clínica Dentária que tinha conseguido. O
salário era pouco, mas o lugar honesto e seguro.
E ela, não posaria de galinha para
aquele Raposão e seria uma providencial testemunha. À noite, o Jornal Nacional
dava as notícias do desmantelo de um dos pontos mais procurados pela polícia
nos últimos meses. Lá se traficava drogas; mulheres para prostituição e mulas;
documentos falsificados; diplomas universitários etc.
Esse etc., incluí nas minhas
orações de agradecimentos à noite. Meus amigos consideraram melhor eu ficar no
anonimato. Seria uma etc. facilmente eliminada. Todos os funcionários,
inclusive a faxineira, sabiam do que acontecia na sala que levavam os meus
“xises” (existe isso?) e a minha curiosidade que salvou um montão de gente.
Ah, soube pelas matérias
televisivas que as armas eram distribuídas como prêmios para os traficantes que
mais consumidores aliciassem. A operação ficou conhecida como o “Covil das
Raposas”. Ufa! Ainda bem que não tenho tendências galináceas, nunca fui
gananciosa e muito menos conformista, senão, seria facilmente depenada pelo
Raposão poliglota.
Ele regimentava o seu quartel de
acordo com a ambição de cada um. E nossa faxineira era uma das melhores
distribuidoras na favela onde fazia questão de morar, apesar da grana que
ganhava. Por isso, saía sempre mais cedo e sempre com uma sacolona que eu
achava que era sua roupa de faxina. Já tinha um pequeno arsenal de armas em
casa: quatro WALTHERs, é brincadeira?
Quando descoberta, soube que a sua
casa era de alvenaria, com três andares e tinha até piscina, enfim...Naquele
monte de barracos, parecia a Basílica Nossa Senhora Aparecida que a gente vê de
tudo quanto é lado, que ela me perdoe a comparação.
Por isso, atualmente, quando sigo
as notícias da nossa recente descoberta sobre doleiros; corrupções políticas e
empresariais; e, eteceteras afora; feita pela nossa maravilhosa equipe da Lava
a Jato, lembro-me saudosa de minha experiência há anos.
Não tem jeito, a história sempre é
a mesma. Descobrimos também que havia alguns políticos melecados com a sujeira
do Raposão. E isso aconteceu há...Ah, deixa para lá. Faz um tempinho. Afinal, o
mais importante é que consegui sair salva do “covil das raposas”.
Não comentei com ninguém, nem
mesmo em minha casa.
Vamos mudar de assunto?

Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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