O Gato Possível
de Matheus Zucato
Era uma noite intranquila para aquele rapaz. Sua
habitação na rua Coronel Pimenta estava tão silenciosa quanto a noite do lado
de fora. Ele havia trabalhado na plantação durante todo o dia, mas ainda assim
não podia fechar os olhos e dormir. Em realidade, fechava os olhos, mas bastava
retirar a pressão das pálpebras e as mesmas se abriam. Vivia um cansaço
excêntrico naquela noite: o corpo pouco se movia, mas sua mente estava
desperta.
Na
cama, deitado, imaginou por horas cenas do cotidiano, pois isso o fazia dormir.
Imaginou inclusive que voltara à escola e que tinha a obrigação de ouvir e
anotar tudo o que o professor falava. Quão tedioso era isso? Quase todas as
vezes dormia com esta lembrança — da mesma forma que dormia nas aulas de
outrora. Não foi bom aluno, mas não se importava. Estudar era para aqueles que
sabiam submeter-se à arrogância dos que ensinavam. Não, ele não. De forma que
se tornou um trabalhador geral, isto é, um faz-de-tudo. Trabalhou na quitanda,
no matadouro e na escola, como auxiliar. Estava desempregado, naqueles dias.
E
o que importava? Ele recebia o pouco dinheiro oriundo dos pequenos serviços que
prestava aos próprios moradores da pensão onde morava já há dois meses. Morava
numa daquelas pensões cujo aluguel mais caro era o de vinte mil réis.
Espelunca. Sua sobrevivência era a
tal espelunca. No primeiro mês, visto que não tinha o dinheiro para pagar o
proprietário, fizeram um acordo: ele se responsabilizaria por todos os reparos
e manutenções da grande pensão. O proprietário quis aproveitar-se, e, no
desespero, o rapaz também concordou em trabalhar na plantação de milho que
ficava atrás da antiga habitação.
Conforme
dizia, naquele dia o rapaz trabalhara na plantação, mas mesmo cansado não podia
dormir. As cenas imaginadas eram todas bem vívidas; passou, inclusive, a
divagar a respeito do que imaginava. Será
que aquele professor explicava daquela maneira mesmo? Como será que anda
Carlinhos hoje? Ah, Maria, essa era bonita! Os tempos de escola vieram e
tomaram conta do homem que já se confundia entre imaginação e sonho, até que
ouviu um barulho do lado de fora da janela.
Era
metal batendo em metal: leve, rápido, acidental, talvez? Mas ouviu. Os olhos se
abriram num susto e o coração sacudiu o peito, enérgico. Que fora aquilo? Seus
pensamentos, novamente em funcionamento, passaram a se questionar sobre as
causas do barulho. E o que importava? Quem sabe nunca tivesse havido barulho
algum e aquilo fosse fruto imaginativo? Aí seria certeza de que estava
sonhando. Mas, caso tivesse havido
realmente um barulho, a quem provaria ter ouvido qualquer coisa naquela hora da
madrugada? Afinal, a realidade não é somente aquilo que é de conhecimento
comum? Pensou. Ainda, o que importava à população que dormia um barulho de
metal batendo em metal no meio da madrugada, sem a perspectiva de perigo
iminente? Portanto, não deveria ter sido real. E, se fora, decidiu por ser o
vento o vilão causador da inquietação do marasmo entediante de uma noite
silenciosa, porém mal dormida.
Mas
sua curiosidade era muito teimosa para aceitar uma solução rápida e ambígua como aquela.
Levantou-se da cama, dirigiu-se até as janelas de madeira e as abriu. Olhou
para fora; a rua escura e vazia limitava-se a reproduzir o som do vento. Não
havia ninguém. Que pena, pensou, podia ter usado a insônia para alguma coisa
qualquer. Nenhum ladrão, nenhum arruaceiro; nada. Só a lua cheia a iluminar a
rua vazia de pedras. Decidiu voltar à cama.
Mal
fechou a janela, ouviu o miado de um gato, lá fora. Ele parecia chorar, como se
tivesse perdido os filhotes há pouco tempo. Teria? Tinha de saber. Abriu a
janela e procurou pelo gato na rua, mas não encontrou nada. Não havia sinal do
bichano. Pensou na possibilidade de a natureza daquele som ser interna, não
externa. Seria a insônia a forma e a substância de um gato noturno vagando na
rua à procura de seus filhotes? Preocupou-se com ambas as possibilidades: a
primeira, em via de realmente haver um gato cujos filhotes estariam perdidos
por aí, sem um pai ou uma mãe. Seriam órfãos, então. Temeu pela segurança dos
gatinhos órfãos imaginários. Porém, como podiam ser imaginários os pequeninos
se nessa sua dualidade existencial o rapaz sentia
pena? É possível dar ao corpo sentimentos sem casualidade real existente? E, se
as causas são inexistentes, isso, portanto, não torna o próprio sentimento
inexistente? Mas eles eram sentidos pelo rapaz que cogitava a existência de um
gato que só emitia som, e nada mais.
A segunda possibilidade que o preocupou foi a de
o gato realmente não existir e de sua mente ser a responsável por aquele som. E
desta vez pensou sobre o gato em sua mente, ou seja, sobre a ideia de um gato (real) que certa vez
emitiu um choro que ficou gravado em suas profundezas. Portanto, o gato
realmente havia existido, mas em tempo e espaço diferentes daqueles que ele
experimentava agora. E esta teria sido uma lembrança, ou ainda, uma
manifestação do gato físico de
outrora.
Ele
desistiu da possibilidade do gato na rua e contentou-se com o ser existente
unicamente em sua cabeça. Fechou as janelas e voltou para a cama. Sentiu uma
vontade enorme de tomar um conhaque e ouvir uma boa música. A vitrola ficava
logo ali, perto da entrada de seu quarto barato. Mas era tarde, e as pessoas
com certeza viriam energicamente iradas ao seu encontro questioná-lo sobre
aquela atividade: ouvir vitrola na madrugada! Que ousadia a dele! Um bêbado,
com certeza!
Ficou
deitado imaginando a música tocar. Fechou os olhos e deixou-se dançar
livremente com qualquer par que aparecesse. Seu coração estava acelerado, pois
dançava com uma mesma jovem de várias faces. Ora era Carolina, ora Tereza, ora
a Joana da esquina, e a Lurdes lá da praça. A dança causava-lhe euforia. Nunca
havia dançado com mulheres bonitas, e isso era tão verdade unicamente por nunca
ter dançado com ninguém. Não era de sua laia
frequentar os salões de dança da cidade. Não tinha dinheiro nem para os
sapatos; o padrão da roupa do baile era caro e vinha daquele antigo conceito de
que tudo que é mais caro é melhor.
Ficou
naquele sentimento de estranheza ao imaginar o motivo de seu coração estar
acelerado pelo fato de dançar, em sua imaginação, com uma mulher bonita. Ora, a
dança existia? O sentimento existia? Como se atreveria a dizer que não? A prova de seu crime estava ali,
nas batidas pesadas de seu coração, na euforia imaginária criada pelo simples
fato de dançar — sem saber dançar — com uma mulher bonita. Como poderia aceitar
a estrita e categórica separação entre corpo
e alma se ele podia, através de sua
imaginação, produzir efeitos tão claros e verdadeiros no corpo? O coração
disparado era a ligação evidente entre os dois opostos. Existe, por acaso, um
certo tipo de estado conjunto, isto é, uma ponte que liga o corpo e a alma, de
forma que este território comum pertence — e transita entre —, simultaneamente,
a razão e o sentimento?
Percebeu
estar dormindo somente quando ouviu, novamente — e desta vez pôde jurar que realmente ouviu —, o miado do gato.
Vinha de fora. Abriu as janelas de madeira e procurou pelo bichano. Nada. A lua
como uma lanterna a mostrar a paisagem urbana. Mas nada de gato. Que coisa! O gato só podia estar o
azucrinando! Gato
maldito! Que este fosse procurar pelos filhotes em outro lugar! Aquela choradeira toda em plena madrugada!
Ficou com raiva da possibilidade do gato.
Fechou as
janelas e foi até a cômoda antiga que ficava entre a porta do aposento e a
cama. Abriu a gaveta e pegou o frasco. As pequenas pílulas escuras a tilintar
na sílica do vidro. O rapaz lembrou-se de que não devia abusar do uso desse
medicamento. “Todo fármaco vicia”, dissera-lhe o médico. “Tome a pílula somente
quando o caso for excepcional.” Bem, era alta madrugada e ele estava
desmoronando. Era como um rádio quebrado que ainda emite som. O som emitido por
energia desconhecida vinda sabe-se lá de onde. Tomou a pílula com água da
torneira do banheiro. Água quase-potável.
O médico prometera efeito imediato. No entanto,
ele não o sentia, e decidiu deitar e fechar os olhos. Mal sentara na cama, o
bichano tornou a chamá-lo. Irritado, correu até as janelas e as abriu
bruscamente. Abriu e gritou “vá embora!”. Arrependeu-se, um segundo depois.
Rezou para que não tivesse acordado ninguém. Que noite, meu Deus, que noite! A
raiva precedeu sua tristeza, de modo que se encolheu janela à dentro,
fechando-a com o mínimo de barulho possível, na esperança de que, caso tivesse
acordado alguém, não percebessem o autor do disparate.
Passou o ferrolho e decidiu que não mais iria
procurar o gato quando este miasse da próxima vez. Estava cansado. O sono
tomava-lhe. Encostou a testa na janela, desanimado. Pensou no dia seguinte e em
todos os serviços que aquela velha pensão necessitava. Os remendos já não
suportavam sua idade. Precisava de reforma. Dava muito mais trabalho, nesses
dias. E havia a plantação de milho! Ah! Que vida! Que noite! A testa servindo
de apoio para o equilíbrio do corpo todo. Ela, agora, latejava. Ele ergueu a
cabeça e decidiu, por fim, dormir. E o gato miou.
Mas havia algo de estranho. Ele havia miado de
forma muito mais potente, muito mais nítida, como se agora o rapaz soubesse
exatamente onde se encontrava o bichano. E os ouvidos contaram-lhe que a
posição do gato era ali, dentro do quarto. Atrás! Na exaustão, não chegou a
imaginar ser obra sobrenatural ou demoníaca a chance de o gato estar, no chão,
olhando em sua direção quando se virasse. Seria óbvio demais. Mesmo assim,
virou-se para ver o gato, que só podia estar ali, a pregar-lhe uma peça, a
terminar o serviço noturno zombeteiro. Seria como uma boa história de terror.
Virou-se, mas o gato não estava no quarto.
Ora, melhor ainda. Se não houvesse terror real
que lhe causasse mal, este seria, portanto, de fonte unicamente imaginária. Era
imaterial. Era somente um som produzido e disparado por sua cabeça cansada.
Virou o corpo, até então rígido, quase militar, em direção à cama e deitou-se
para dormir. Cobriu parte do corpo, ajeitou o travesseiro de palha que, neste
ponto, já não lhe pinicava mais. O corpo amortecido dava sensação de fundir-se
ao colchão mofado que, nesse momento, era de um majestoso conforto.
Abriu os olhos novamente, antes de se entregar.
E pareceu não se incomodar com a pequena pata a cutucar-lhe o ombro direito,
tampouco com os pequenos olhos amarelados do felino que, ao seu lado, miou como
se houvesse perdido seus pequenos filhotes — reais ou imaginários.
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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