4x13 - Taxi-fretado
de Edmilson A. M. Junior
“ABAIXA OS
VIDRO,
TIRA O
CAPACETE!...”
O funcionário público leu o aviso no muro e
jurou novamente ser a última vez que andava com o “Seu Genoíno”, saindo da
capital, às 03:30 da manhã.
— É osso, “professor Girafales”! Mas a gente
vence mais essa parada!
Morava próximo da interestadual, contudo o
motorista, gente boa, fazia questão de apanhá-lo primeiro, como copiloto para
apoio moral. Rumavam para bairros remotos, buscavam passageiros por vielas e
avenidas às escuras, lâmpadas estilhaçadas, pegariam a rodovia somente em ponto
adiante, após atalhos suspeitos.
Rodavam defronte quarteirões iguais e nada do
passageiro seguinte ouvido há pouco em mensagem de voz. Até que o aplicativo
despertou de novo:
— O senhor está perto?
— Rapaz, passei várias vezes onde sempre ficava.
Mudou foi?
— Ah, esqueci de avisar, moro mais na frente
agora, o senhor pega a direita onde era antes e avança até passar por um
terreno baldio. É na rua depois a direita de novo, depois da quadra cheia de
vira-latas dormindo.
— Tá bom, mas se apronte rapidinho, fique em
ponto de bala, tem um menininho numa motinha me seguindo faz tempo. Deve ser um
“olheiro”, entendeu?
“Menino de moto? Cadê?”. Olhou para trás: a
cinquentinha, um pequeno no comando mascando chiclete, deslizava espantosamente
silenciosa pelas rotas sinuosas, sob a luz da lua refletida nos buracos do
calçamento cheios d’água. “Caraca!”
- “Profi”, quando ele chegar o senhor vai para
trás, ok? Só dessa vez. Ele tá se recuperando de cirurgia, com as duas pernas
quebradas cheia de ferros, o pobrezinho.
— Sem problemas, Seu Genoíno.
Um milhão de cachorros latiu. Na calçada de
areia o cara com as muletas e mochila mais sacolas. Genoíno desceu e amparou,
guardou a bagagem. O professor olhava do banco atrás, o painel da câmera com a visão em 360
graus ao redor, cães e cadelas por toda parte.
— Não se preocupem: a “firma” passou um
comunicado geral que estava tudo em ordem. Ontem escoltaram os bombeiros a um
incêndio numa loja, depois até à saída do bairro. As motos acelerando e os pivetes jogando
rojões na viatura.
Seguiram caminho, observaram a motinha em rua
abaixo, o guri na entrada de uma casa à meia luz de efeito rosa, conversando
com alguém, mais para dentro envolto em trevas.
Minutos depois, carro veloz na alameda larga e
vazia, ligação entre antigos conjuntos de habitação, nova gravação de áudio
ativada sangrou o silêncio da noite:
— Seu Genoíno, estou aqui, onde o senhor sempre
me pegou. Está perto?
— Uns vinte minutos chego, bote logo tudo para
fora, no portão.
Ligeiro, então, a quilômetros de onde pegaram o
de tíbias de metais, Genoíno enlaçou sacos, malas abarrotadas, em cima do táxi,
uma meia hora para isso, ao retornar ao volante mandou a primeira vez na viagem
o seu bordão favorito:
- É osso, galera boa! “Professor Pardal”, esses
meus filhos dão muito trabalho, essa minha menina mais velha é a mais danada,
viu?
A “menina mais velha” era a idosa que entrou com
o monte de coisas para prender, devia ter 80, talvez até mais, especulou o
Doutor. Apressada a anciã anunciou:
— Vamos pegar minha sobrinha-neta ali.
— Ah, na sua irmã e o Josias, né? Ajudei na
mudança deles. “Uísque”, era só mato aqui, agora tem tudo, mudou demais, fiz
frete, dirigi ônibus 20 anos nessa linha, veio primeiro ela aí, esposo,
trabalhou junto comigo na frota, criaram os filhos, vieram vizinhos, irmãos,
sobrinhos, nessa região tem um bocado da terra que o senhor ensina. Tem um que
subiu na vida vendendo verdura cedinho, o Dono do “Cheiro Verde” ali. Aqui é
povo trabalhador, hoje são os mais novos envolvidos no que não presta! Dá dó.
— O nome do Senhor é Uísque? – perguntou o ciborgue bizarro das pernas.
— Ele é o “Teacher”, rapaz, presta atenção!
Riram, na via que ficava para trás, ao ultrapassarem
– pensou “Uísque” – por pessoas parecendo pregadas na muralha da ampla avenida,
figuras desbotadas, coladas até rasgar, cravadas no álbum, desmanchando-se com
o tempo, rasuras humanas.
— Seu Genoíno, minha sobrinha não está com minha
irmã viu, teve que sair de lá.
— Aí foi? E onde é agora?
— Vá em frente pra onde tava indo, é depois,
descendo a antiga rua.
Declinaram centenas de metros ladeira abaixo em
pequena vertigem.
— E aí, está perto?
— E eu sei, Seu Genoíno? Eu só falo com ela por
celular, há 2 anos que não venho para essas bandas, vim uma vez desde que
mudou, sei onde é não. Disse que era só dobrar no beco sem saída, depois do
paredão aí, ir direto.
— Será que não é perigoso? – disse o da platina
nas canelas.
— Não é não, recebemos nos grupos todos do
bairro um recado da “empresa” que essa semana estava tranquila, que “cuidavam
da gente”.
— Será? – duvidou.
— Sim, garoto! Esses dias chicotearam, no caroço
de milho de joelhos, umas menininhas que estavam roubando. “Tudo sob controle”,
afirmaram.
— Sei como é. Só falar pouco, baixo, ficar na
nossa, que eles não mexem com a gente.
Genoíno, que não ligava para os áudios dos
“patrões”, tinha nojo deles e “do chefão da gangue toda”, chamado de “bicho
imundo miliciano”, estava mais preocupado em achar o dito endereço, o GPS não
ajudava. Parou e pela câmera que cobria o perímetro em giro de 360 graus,
lembremos, notou luzinha amarela, quase morta, na ruazinha escurecida, deu a
ré.
— Justamente, Seu Genoíno é ai mesmo. Eu sabia
que sabia onde era!
Não acreditou que conseguiriam entrar na
vilinha, ledo engano. Da casa de três andares repleta de grades, com chapa de
baixar na frente, saíram umas 10 pessoas, entre velhas e crianças, em algazarra
e chororô. Viu a mocinha bem-feita:
— Não chora não Mãezinha que eu volto… Quando
tiver tudo bem.
Foram abraços e beijos de despedida, enquanto 2
malas e novos sacos, sacolas, eram atadas pelo “gente boa”.
O táxi fretado seguiu finalmente livre rumo ao
interior do estado.
Rádio ligado, Genoíno alegrou-se todo com a
música:
- “Mas quem manda é o cabeça branca”. Viva o
“Cabeça Branca”, galera boa! Vai tirar esse bandido do poder, esse nojento,
bicho imundo, sem postura de gente.
Já o
educador teve suave sensação de segurança, sentiu alívio pela primeira vez na
noite, o sereno frio na face, cores do céu e da cidade misturavam-se em
espetáculo de natureza e tecnologia, vida e morte, na penumbra que ruía não
predominava mais o receio, era grata emoção de retorno ao primitivo em cavalo
selvagem de pneus, navio em fuga de piratas naquele mar azul escuro que os
envolvia e despedia-se lentamente.
Chegaram à autovia sombreada às 05:23, galos
tiraram o “catedrático” de seu encantamento:
— Que foi isso, caramba? Parece que o bicho
cantou aqui dentro.
O motorista gargalhou:
— “Mestre dos magos”, você notou agora? São uns
galinhos atrás de você, levando pra Fazenda do Capote, por isso estamos com
menos gente na lotação hoje.
Genoíno brincou, mas estranhava o silêncio de seus
colegas da Cooperativa: a Janja, sua mulher, chamada de Sandália de Chumbo, o
Valdevor que nem celular usava e pegava os passageiros no susto buzinando de
madrugada e buscava todo mundo de memória na parada certa. O Osnaldo, deixava a
galera era na rua com medo de entrar nos cantos, ou o Amarilgo – ficava com
raiva e dizia que “os passageiros só o procuravam quando estavam precisando”?!
Ninguém dava notícias como de costume, saíram igual, alguns deviam ter era
chegado, no Ponto do Café, na Placa do Zé Viana.
Foi quando avistou o primeiro veículo
engarrafado na passagem, estavam engavetados: os táxis, cinco carros, mais três
ônibus intermunicipais que faziam o trajeto do “táxi fretado”, indo além para
quase fora do Estado. Quatro motos e dois carros os bloqueavam na pista. Dar a
ré ou fazer o retorno na via, ainda estreita, era impossível – seriam
descobertos e alcançados facilmente.
— Que porra é essa, “Paulo Freire”?
— Ah, o nome do senhor é Paulo então? - Acordou
o fraturado, virando-se para o docente ao lado da novinha morena e da guardiã
com cabelos de prata.
— Seu Genoíno, que merda é essa? Estão vindo,
estão vindo… Armados até os dentes, olha
lá, a pé, vistoriando cada veículo, táxi e ônibus.
— É assalto, galera boa! Todo mundo correndo
para o mato ali na beira, bora, antes que cheguem! Não nos viram. Bora, bora,
ajude sua tia-avó, mocinha. Professor, vamos carregar o lesado das muletas!
— Valha-me Deus – não pode nem reclamar o platinado.
— Batam às portas todas, vamu, bora bora,
ninguém leva nada, corram, corram!
Conseguiram se enfiar no mato pós meio-fio,
entrando mais e mais. Não podiam ser vistos, deitados cavando, com a cara rente
a terra, o capim, assistindo o carro abandonado, vidros fumês fechados, portas
batidas. Estalou um “Triiiiiiiimmmmmmmmmmmmmm”. Genoíno travou pneus, motor,
portas, vidros, disparou o alarme, o seguro, o alerta para uma multinacional de
vigilância. “Girafales” chegou a vê-lo com o braço todo esticado, o dedo firme
no botão:
— Toma seus bostas!
Rapidamente o automóvel foi cercado, no barulho
imenso da sirene em fúria.
— O que a gente faz, o que a gente faz,
“Paizão”? – alucinou o primeiro.
— Será que ela ta aí, será que ela ta aí,
“Padrinho”? – grita outro.
— Se ela não pode ser minha não vai ser de
ninguém, melhor se aquela velhota rapariga estiver junto, a família toda. Senta
o dedo, porra!
Metralhadoras e fuzis berraram, juntando-se ao
barulho infernal do alarme que durou um tempo, no coro do caos. Plásticos,
vidros, borrachas, tecidos, sangue, órgãos e penas voaram, estraçalhados em várias
direções, o auto de grande porte destroçado, devorado pelas infinitas e velozes
moscas-balas, abelhas-cápsulas, besouros-projéteis!
No mato comiam terra, formigas, folhas – as
cabeças atoladas fundo no chão:
— Não falem meus filhos, minhas filhas, chorem
baixinho, psiu, chorem baixinho. Pobre
dos galinhos, meu Deus!
Veio-lhe à mente outra alvorada: Jorge da Feijoada viajou
de última hora em busca do ganha-pão – a mulher perto de parir – quase derrubam
a porta de Genoíno, só ele tinha transporte, para que a acudisse com a bolsa
estourada e gemendo de dores, correram pra Maternidade, não deu tempo – no meio
do caminho encostou, segurou firme sua mão, deu força dizendo “Força”, apanhou
a guria, botou pra gritar, cuidou do cordão – ano passado na “Festa de 15 anos”
da moça foi o convidado especial, se acabou de chorar.
— Não estão ai não, vamos atirar nos dois lados
da pista, nos matos, chefia!
— Não, já era, devem tá longe, os homi estão
chegando, já era, depois pego ela, a vadia não escapa, nem a velha. Ganhamos os
cuzão, os chorão dos carros e dos buzão.
Os lamentos e urros abafados nos veículos eram a
nova sonoplastia da noite que finalmente esvaía enquanto a facção ia-se nos
automóveis e motos desfazendo o bloqueio.
Seu Genoíno levantou seus passageiros,
limpando-os um a um:
— Deviam ter me dito que estavam fugindo. Teria
outro jeito, outro itinerário.
— A gente teve medo do senhor não ir. Outros não
quiseram. Disse que ia me matar, minha avó, se não ficasse com ele. A família
da amiga Belinha foi pro saco…
— Vou
olhar a Janja, vocês vão com ela agora, é forte, a Janja é desenrolada, deixa
só parar de tremer, vendo daqui ela ali já na direção. Os passageiros dela vão
noutra viagem, chamar um táxi reserva que temos. “Professor da Casa de Papel”,
você vai junto com as duas e o “quebradinho” – ainda bem que você não se lascou
ainda mais né, meu danadinho? Já está todo fudido, o meu filho. Vou fazer o
boletim de ocorrência. Vão embora, a jornada de vocês, o pior passou, deixem
tudo para trás. O carro no seguro, pego um novo e melhor. Ruim esperar uns 15
dias para voltar ao batente. Mas é assim a vida, como Deus quer... A gente há
de vencer essa batalha, galera boa!!!
Edmilson A. M. Junior
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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