O Amigo Fiel
de Luiz F. Haiml
Julinho e Julia estavam juntos há quase dez
anos. Na verdade, quase treze, contando o período de namoro. Um dia, num sonho,
Julinho viu a esposa a casar-se com o melhor amigo deles. Beijaram-se
(levantando as máscaras), Julia e o outro, apaixonadamente. A realidade havia
passado para o sonho, em tempos de Covid, os personagens desse, com exceção de
Julinho, estavam todos protegidos. As máscaras eram de cores várias, mas em
todas a mesma decoração: uma boca voluptuosa, a sorrir, lábios que também
variavam de cor. A noiva então jogou o bouquet,
os recém-casados acenaram as últimas despedidas e embarcaram numa enfeitada limousine que se sumiu dentro de um
horizonte ensolarado.
Julia estava linda de noiva. Julinho sabia que
ela ali aparecia como queria ter se casado na vida real: vestido com véu, grinalda,
luvas, tudo de um branco imaculado que gerava um belo contraste com os grandes
olhos negros e a vasta cabeleira longa e escura da esposa. E mais, Julia ali
aparecia rejuvenescida, estava como nos dias em que Julinho a conhecera.
O outro, o amigo, vestia um fraque, cartola,
flor na lapela – trajes que Julia sempre admirava quando via em cerimônias.
Além de elegante, o outro também voltara à juventude, por isso haviam sumido
dele os dissabores que uma vida de solteirão dera a seu físico. Julinho via a
cena toda posicionado junto à porta da igreja, de pé ante a escadaria que
ligava o templo à rua.
Não era uma situação tão estranha a ele, não totalmente.
Sonhos de Julia com outros, entregando-se, voluntariamente ou não, a esses, já
haviam lhe ocorrido antes. Julinho divertia-se muito com tais momentos, tornava-se
voyer de tais encontros, inclusive aproveitando
alguns para seu próprio prazer. Mas até então, só haviam envolvido estranhos, nunca
conhecidos. Às vezes, em tais oníricos episódios, Julinho conseguia tomar
certas atitudes, em outros, porém, nada podia fazer, a não ser observar. Afinal,
neste universo dentro do sono, que existe sem consistente substância, que
ninguém sabe exatamente como surge nem a dimensão em que existe, qual a certeza
de agirmos por mão própria, ou essa ser movida por outras forças?
Julia adorava estudar sonhos. Queria sempre saber
o que o Julinho sonhava, para ir então buscar simbologias e significados do que
escutava. Queria muito testar uma ideia que ouvira uma vez “os amantes, mesmo
adormecidos numa mesma cama, poderão sonhar os mesmos sonhos?”. Além do que
poderiam representar, acreditava serem os sonhos possíveis canais de
comunicação entre as pessoas - e ela era favorável a que essa comunicação deveria
ser estudada de modo científico,
treinada de forma consciente – além disso, serviriam eles como portas entre nós
e seres feitos de matéria que não a nossa, criaturas essas que viveriam em faixas
dimensionais não captadas por nossos sentidos comuns. Julia achava fascinante a
ideia de que, ao sonharmos, estamos dentro do nosso cérebro, e, nesse interior,
é como se estivéssemos aqui fora: há cores, formas, sons, cheiros, movimentos e
uma tridimensionalidade igual a do lado de cá. No entanto, e isso todos
sabemos, as coisas lá vão ao surreal, e o tempo, o espaço e os acontecimentos podem
se alterar de formas surpreendentemente ilógicas. Julia queria ter sido psicóloga.
A vida, porém, a empurrara a outros rumos, ajudar na empresa do marido, os
filhos. Talvez um dia.
Julinho
a satisfazia contando seus sonhos, menos aqueles em que a achava com outros, desses
Julia não ficava sabendo. Mas ele decidiu que o do casamento dela com o melhor,
e mais querido dos amigos do casal, esse lhe revelaria. Enquanto fazia a Julia o
seu relato, percebeu a esposa ir apresentando aquele comportamento, que os anos
de convívio o ensinaram a reconhecer, quando ela queria se afastar de algum
assunto. Aquilo foi inquietando Julinho. Terminada a narrativa, a mulher evitava
olhar para ele e procurava assuntos não relacionados aos que tinha escutado.
Logo ela, uma estudiosa dos sonhos. Tal reação, tal estranha atitude dela diante
ao que ouvira, atiçaram algo em Julinho, uma pequena brasa, que logo aumentaria
de modo irreprimível.
O que ele, porém, desconhecia, é que a esposa,
ao adormecer, ao submergir no estágio que leva às terras de invisíveis
fronteiras, também, vez que outra, o achava com outras, em situações diversas.
E, como ele, escondia-lhe tais sonhos. Enquanto isso, a brasa atiçada virara um
fogo que turvava cada vez mais, com sua intoxicante fumaça, as inquietações de
Julinho. Tomou ele ares de Casmurro, passou a ser um rigoroso vigia da mulher e
do amigo: os olhares eram constantes? os beijos calorosos? os abraços demorados?
o que diziam ao telefone? Além disso, fazia de tudo para que, o menos possível,
tivessem contato um com o outro, e se por ventura fosse inevitável o encontro, procurava
não deixá-los a sós.
Julinho começou a arrumar desculpas para
saírem mais vezes, só os dois, ele e a mulher. Era hora do casal tirar um tempo
maior para si, e assim ele planejava, para logo, e em muito guardada surpresa, uma
nova lua de mel. Porém, ficava cada vez mais difícil controlar as chamas da dúvida,
da incerteza e da desconfiança, que se ampliavam e revolviam sem parar em seu
peito, ainda mais depois de um outro sonho que veio a Julinho: ele e Julia
passeavam com um casal de conhecidos, quando, inesperadamente, Julia é
questionada pela amiga “lembrava ela de um certo fulano de tal, com quem deixara
de ser virgem”. Tal revelação, embora tivesse se dado fora da realidade, foi
como jogar álcool no que já queimava inapagável pelo coração e miolos de Julinho,
pois a esposa sempre garantira ter sido ele o seu primeiro.
Até que um dia, a gota d’água: sua mulher e o
amigo sentados, muito juntinhos, no sofá da sala, ela o braço envolto no
pescoço dele, as faces tão próximas, tão próximas.... Tomou Julinho as dores de Othelo, mas não
a matou, matou o amigo. Silencioso e rápido buscou no quarto um revólver que há
poucos dias comprara, e disparou uma, duas, três vezes... Talvez também a
tivesse matado, mas Julia gritou e correu e conseguiu ir para a rua. Julinho,
após o gesto alucinado, caiu de joelhos, atônito e em lágrimas, diante do que
tinha feito. Veio a polícia, e ele deixou-se prender, sem reação Pegou uma
longa pena.
Confusa com o que tinha acontecido,
traumatizada com o que presenciara, Julia não quis ir visitá-lo. Bom tempo passou,
até ela mudar de idéia. A primeira coisa que lhe disse foi “Louco, tu tem noção
do que tu fez?” Ele nada respondeu. Ela ainda estava com raiva. Disse-lhe mais
algumas coisas. “Tu sabia que ele não tinha ninguém. E assim como ele te
considerava um irmão... eu também considerava ele.” E Julia saiu. Voltou tempos
depois e, com a certeza de que ainda amava Julinho, tentou se comunicar de uma
maneira mais efetiva. Desejava que suas palavras realmente o atingissem,
despertassem nele algum tipo de reação. Aquele silêncio a afligia de uma
maneira quase claustrofóbica. E não poucas vezes sonhara que na prisão lhe
cortavam as cordas vocais.
“Tu tá
bem? Precisa de alguma coisa?”. Julinho ora a olhava, ora baixava a cabeça, mas
nada dizia, nada respondia. Então Julia o visitou, meses depois, uma última vez.
“Sabe... não adianta negar, eu ainda te amo,
acho que isso não vai mudar.” Nenhuma palavra, nenhuma reação positiva obteve
dele, e acrescentou “Vou orar por ti, eu sei que tu te arrependeu. E tenho
certeza que Deus já te perdoou...fica bem tá?" Foi-se e nunca mais voltou,
o silêncio dele pesando-lhe no peito a ponto de transbordar pelos olhos que
tentava inutilmente secar com o dorso das mãos.
Julinho soube então que queriam soltá-lo antes
da pena cumprida. Apesar de acharem-no estranho – pouquíssimo falava com os
outros presos ou com os guardas – não incomodava, assim decidiram pela soltura,
um a menos nas lotações penitenciárias, e do lado de fora ia ele seguir sob o
olhar atento de um psiquiatra. Julinho, porém, adoeceu.
“Adoeceu-se” comentavam na prisão, querendo
dizer que ele não havia sido contaminado por nada, mas que o mal surgira de
dentro para fora. A doença agravou-se, e a burocracia impediu que desse seu suspiro
final longe das grades. Pelo menos houve tempo dele ter um último sonho.
“Lá estava Julia, exatamente como no sonho que o levara ao crime: mesmo vestido, rejuvenescida, casando-se com alguém trajado da mesma forma como o outro – o amigo que o acompanhara desde a adolescência, o mais fiel e companheiro dos amigos – e lá estava a limousine enfeitada, adornada a esperar os noivos. E, de novo, as máscaras, com os mesmos variados coloridos, mas agora todos os lábios tinham uma só cor, escuros como a noite, e as bocas não sorriam, viravam-se para baixo como aquelas bocas tristes do teatro trágico. Então o beijo, o voltar-se para os convidados, e, em enorme, e despreparada surpresa, Julinho a descobrir que o acompanhante de sua esposa, não era outro a não ser ele próprio. E enquanto Julia lançava o bouquet, Julinho buscou o alto da escadaria. Ao lado da porta da igreja, de pé, e a sorrir, estava o amigo, seu melhor amigo, aquele que, em vida, matara.”
Desenho
Karollayne Foschieira. dos Santos
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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