2x04 - A Ceia das Moscas
de Lucas Mercês
Se as moscas pudessem relatar o que estava sendo feito naquele pequeno espaço repleto de sujeira e instrumentos estranhos sobre uma mesa de madeira, onde inúmeras variáveis matemáticas eram quantificadas, o que elas diriam? Pois sob a luz de candelabros velhos, onde duas mãos circulavam para lá e para cá carregando tais instrumentos, eram elas as únicas testemunhas.
Arabescos manchados de compostos químicos cobriam aquelas paredes, nas quais retratos de Paracelso e Cornélio Agrippa se encontravam fixados por parafusos, como sendo os precursores das artes que ali eram praticadas. E se seus olhos pintados a óleo também pudessem enxergar, restaria a tais homens sentir orgulho ou repulsa, não havendo espaço para sentimentos amenos.
Os líquidos borbulhavam sob o fogareiro, liberando pelos gargalos de vidro um vapor, cuja miríade de cores poderia encantar uma criança, como também despertar a ira daqueles com o conhecimento necessário para entender o que estava sendo realizado. Os cálculos são consultados a todo momento por aquelas mãos, para que com tal capricho, a qualidade dos produtos diluídos atendesse a seu objetivo.
Aquele par de olhos luminosos flutuava pelo escuro junto das moscas, e sequer piscava diante da própria ansiedade; pois assim como os olhos do artista mais habilidoso, estes também sofrem com o medo da falha durante o término de sua obra. Até porque, uma pincelada no lugar errado contaminaria todo o conjunto, assim como um grande castelo de cartas, que despenca ao ter sua última carta mal posta.
Tendo sido preparados individualmente durante dias, agora os líquidos de aspecto extravagante estão prontos para se unir em um único recipiente. Com isso em mente, a sombra dona de mãos tão bem treinadas as sente tremer conforme o suor escorre pelas têmporas. Precisa de ar. Precisa de tempo.
Atirando num ímpeto irritadiço as luvas sobre a mesa, recua com frustração até o outro lado do cômodo. Destilando a raiva que sente pela própria fraqueza, apanha um pano qualquer e seca o suor da face. A luz do fogareiro irradiava atrás de si, e olhando fixa para a própria sombra que tremula no chão, um leve desânimo começa a correr por suas veias. Estou tão perto, tão perto...
Até que então, uma surpresa! As moscas se agitam inquietas, e alçando voo em direções anormais para sua espécie, agora cortam o ar com velocidade sobre a mesa. Elas se enveredam ao redor dos frascos, e, como que hipnotizadas pelas cores ou aromas exalantes, se chocam violentamente contra os vidros.
A figura que arquitetou tudo aquilo observa como um espectador atencioso, e, sentindo não apenas as mãos, mas todo o seu corpo tiritar sob a sinfonia executada pelas moscas, retorna a passos largos para a sua mesa de trabalho.
Agora sem luvas, as pequenas engrenagens são giradas com lentidão precisa, e os compostos tão cuidadosamente preparados já descem por tubos até se encontrarem em um único receptáculo. As colorações se misturam e se alteram diversas vezes, e, após alguns minutos repletos de agonia, a sombra criadora de tamanha abominação constata que, assim como peças de um quebra-cabeças, todas as variáveis se encaixaram perfeitamente.
Se as moscas pudessem compreender — não apenas ver, mas compreender de fato — entenderiam que tal artista, agora derramando lágrimas quentes e erguendo os braços para o alto, acaba de se estabelecer ao lado dos antigos mestres em sua parede. Sua risada foi longa, e longo foi o seu olhar de admiração para o composto refinado em suas mãos, agora negras pela quantidade de moscas que as cobrem.
Pondo o produto com cuidado sobre a mesa, saca uma foto amassada que estava em seu bolso e, abrindo-a sob a luz do fogareiro, fita mais uma vez os semblantes de uma família que lhe sorriem alegres. Seu corpo se agita em um frenesi raivoso, e plenamente confiante das deliberações tomadas, enterra a fotografia nas brasas, que queimando em chamas crepitantes, revela para as negras criaturas o seu rosto de mulher.
Mesmo havendo ali apenas as moscas entorpecidas para partilhar de seu triunfo, ela exaure dos pulmões a satisfação exasperada pelo seu sucesso e, mirando o olhar para Agrippa e Paracelso, profere palavras sussurradas que ninguém ouviria, e sequer entenderia.
Eu consegui.
***
Ainda que o Natal seja, para o bem da verdade, a menos brasileira das festividades, há em nosso país algumas poucas casas nas quais podemos constatar o que, no resto do mundo, é conhecido como “magia do Natal”. Se trata do sentimento pungente de renovação que permeia os corações daqueles na companhia de uma árvore enfeitada, que sob as luzes coloridas do pisca-pisca, se reúnem ao redor de uma mesa para celebrar. Não o renascimento de Cristo, mas a pura e simples união enquanto rasgam a comida com os dentes. Cristo fica para depois.
Muitos concordariam que Melinda cortava as cebolas exibindo um contraste interessante entre a boca e o olhar. Mas enquanto um observador comum diria que o contraste estava na indiferença dos lábios e no ardor lacrimejante provocado pelas cebolas, um outro mais atento perceberia um fino sorriso se desenhando nos cantos, ao passo que uma tristeza escondida transparecia em seus olhos, denunciando as verdadeiras lágrimas retesadas. Mas, naquele fim de noite, havia apenas um observador atento em sua casa.
Seu filho adolescente assistia à televisão na sala e, consultando as horas a todo o momento, sentia aquele típico nervosismo dos brasileiros, que na contramão dos outros povos, não aguenta ter de esperar a meia-noite para comer. Mas o peru suculento gira dentro do forno, e no auge de sua majestade, exala o aroma de seu tempero por toda a casa, fazendo Jonathan amargar o vazio em sua boca.
— Se eu tiver que esperar mais, temo ter de dar os parabéns para Jesus pessoalmente — diz o garoto para o pai, que lia um jornal em sua poltrona.
Leonardo sorri do gracejo feito pelo filho e, voltando os olhos cheios de expectativa para Melinda, percebe em sua cabeça mal voltada nada além de um sorriso cinza, esse traço tão abundante nos que fingem ter abandonado o passado. E ela volta a cortar as cebolas, compelindo a si mesma um riso alto que enganou o filho.
Leonardo abaixa lento e frustrado seus olhos, pois cada investida contra o enfado da esposa tem um efeito tão forte quanto o seu silêncio, e a impotência, misturada com a vergonha pelos seus erros, o faz refletir sobre a própria ingenuidade a respeito do Natal, que não propiciou qualquer magia no ar além do cheiro da boa comida.
— Mas onde está sua irmã?! — pergunta, simulando uma perplexidade exagerada em direção ao filho — Você deveria estar de olho nela!
— Ah — diz Jonathan — Ela saiu para dar uma volta na feira. Já deve estar voltando.
— E não acha irresponsabilidade sua deixar sua irmãzinha sair tão tarde da noite? — pergunta de olho em Melinda, esperando que se junte a ele no puxão de orelha.
— Eu pedi para ela ir comprar uns temperos que estavam faltando — diz sua esposa, finalmente.
Leonardo contrai a face diante da própria estupidez e, se afundando na poltrona, decide que o melhor a fazer é ficar quieto, por enquanto — Mas o que eu poderia esperar? — Se pergunta enquanto passa os olhos pelas manchetes do jornal, fingindo lê-las.
Um ano se passara, e durante esse tempo sua consciência lhe torturou com o peso da infidelidade cometida. Melinda suspeitava, e tendo o confrontado diversas vezes, exigia que fosse sincero e confessasse a traição — Como ela pode saber? — Se questionava, ignorante sobre os sentidos sensíveis da mulher quando se trata de amor. Pois o marido infiel, tomando suas precauções rasas para não ser pego, apaga seus rastros com um pano imundo e corta as pontas soltas com uma tesoura cega.
E Melinda insistia. Insistia dizendo que o perdoaria se ele confessasse e prometia deixar tudo para trás, pelo bem dos filhos — Eu nunca traí você! — O esforço grotesco que fazia ao falar essas palavras não escapava aos olhos da esposa, e ele sabia disso.
Leonardo nunca se deixou enganar pelas promessas de sua esposa sobre deixar tudo para trás, pois ela, com toda certeza, quereria saber quem é a amante. Seja para ter certeza de que não foi com uma amiga, ou talvez com uma vizinha, ou até mesmo para saber o que seu marido viu nessa outra mulher.
Sim... ela vai querer saber quem é.
Absorto em tais pensamentos, Leonardo repara que o jornal está deitado sobre seu colo. Ele sacode de leve a cabeça e, ao olhar na direção da cozinha, se vê fustigado pelo olhar de Melinda, que sequer exibe o seu sorriso surrado dos últimos tempos. E Leonardo se entristece pelos cacos quebrados de seu casamento, que não se colam, não importando o quanto tente.
Eu a perdi para sempre.
Assim sua família permaneceu, até que Melinda finalmente falou.
— Minha irmã telefonou mais cedo. Ela não vai cear conosco essa noite — ao som dessas palavras, os ombros de Leonardo despencaram como se o peso de um mundo inteiro tivesse saído de cima deles.
— Que bom! — diz Jonathan — Minha tia Larissa me dá medo.
Leonardo estava para repreender o filho, mas logo aproveitou a oportunidade.
— Você também?! — pergunta com uma falsa e exagerada surpresa na voz, e todos riem.
E, apesar de sua esposa manter preservada a expressão entristecida ao sorrir, ele se sente presentado com a esperança de um dia ter seu casamento de volta. A porta se abre nesse momento, e sua filha Bianca entra carregando algumas sacolas.
— Olha ela aí! — diz Leonardo que a puxa pelo braço e a beija repetidas vezes nas bochechas.
— Pai! As sacolas vão cair! — o repreende.
O sopro de vida que entra pela porta alegra a todos, e a família se sente aquecida pela união ainda viva entre eles. Logo todos foram se arrumar, e agora sentados à mesa conversando sobre o progresso na escola, aguardam Melinda entrar na sala de estar com o peru.
Ela anda lenta e cuidadosa com a bandeja em mãos, e a reverência de todos para com o prato principal recompensou seu orgulho maternal em relação aos filhos — e ao marido também.
Enquanto o relógio não marca meia-noite, as crianças não param de falar. Jonathan continua apressado e dispara reclamações contra o relógio; enquanto Bianca continua falando sobre como está feliz pelos brinquedos que recebeu.
Os olhos de Leonardo e Melinda se encontram nesse momento de felicidade. E sendo um daqueles olhares exclusivos entre os que se amam, e que a tudo esclarece, sabiam que, ao menos naquela noite, nenhuma palavra precisava ser dita.
— O que você está fazendo? — pergunta Jonathan para a irmã, que borrifa uma espécie de perfume com aroma adocicado sobre todos na mesa. Melinda e Leonardo despertam.
— Tia Larissa que me deu quando a vi na feira — Leonardo sente um tremor lhe subir pelas mãos — Ela disse que é para sermos abençoados com a boa sorte de Natal.
Bastava uma única boa olhada para que Melinda percebesse o medo na face de Leonardo, mas com seus filhos rindo da estranheza da própria tia, como não se distrair com a beleza de seus sorrisos alegres?
Logo os ponteiros do relógio soaram meia-noite, e o que mais precisa ser dito? Quem olhasse para eles, veria a família perfeita festejando a magia do Natal, como uma das que todos vemos nas propagandas de televisão.
Satisfeita e terminando de comer, Bianca alça os olhos para o alto da janela na parede, e em meio à conversação alta de seus pais e irmão, percebe pequenas sombras negras que correm céleres do outro lado do vidro.
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Espalhados pela residência, como se tivessem tentado fugir de algo, mãe, pai, filho e filha foram encontrados com picadas e dilacerações ao redor de todo o corpo, que muito provavelmente foram causados pela enorme quantidade de insetos que infestavam a casa.
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CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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