Ruffus & Eu
de Raphael Curan Peterson
Ainda me lembro como se fosse ontem. Estava em meu trabalho
na produtora, ali na sala do 3D, mesmo que ainda estagiando como operador de VT
na central da antiga PIX.
– Vou pegar um cachorro! – exclamei, afinal, desde muito
pequeno sempre delirava pelos animais, todos eles. Mas os cães sempre me
encantaram de uma forma descomunal. Eu não podia ver um, que se pudesse,
ficaria grudado o dia inteiro. Usava camisetas de rottweilers, entrava em canis ou passava o dia inteiro com eles em
locais que eram, ou para brincar com outros amigos humanos, ou onde ninguém
mais tinha coragem de entrar por medo.
Meu colega de trabalho que estava por ali replicou na hora:
– Não faz isso, cara. Compra um videogame.
Aquilo me marcou muito. Refleti muito para entender aquela
frase. Sabia que ele estava mencionando sobre toda a responsabilidade que
seria, e pior, eu também gostaria muito de ter um console, já que eu estava
totalmente desatualizado e meu último videogame havia sido um Nintendo 64.
Mas eu estava decidido. Só precisava tomar coragem e avisar
a minha mãe. E essa era a minha única barreira a ser superada.
O final de semana havia chegado e minha mãe não estava em
casa. Resolvi ligar.
– Mãe... Sabe... Eu ando pensando bastante, e... sei lá... sabe?
Eu queria pegar um cachorro.
E toda aquela tensão se foi, quando ela respondeu:
– Você que sabe, Raphael. Mas você que vai cuidar! Já vou
avisando.
Praticamente não ouvi mais nada depois do “você que sabe”,
aquela era a minha carta de autorização para fazer o que eu bem entendesse.
Liguei para um dos maiores petshops da época (não era assim como hoje, que tem um a cada
esquina, e ainda por cima 24h) e perguntei se havia bastantes cachorrinhos por
lá.
– Temos todos que o sr. pode imaginar. – Respondeu o
atendente.
– Mas tem beagle?
– Temos sim.
– Mas e rottweiler?
– Também!
– Ótimo! Já, já, estou por ai!
Desliguei e peguei na época aquele que foi o meu primeiro
carro, um Civic 94, cheio de
problemas, mas que eu adorava.
Liguei para o meu amigo Pi (abreviação de Filipe, e nem faz
sentido, já que o nome dele termina com “pe”) e disse que já estava passando
por lá! Obviamente como melhor amigo da época, ele já sabia dos meus planos
mirabolantes. Inclusive, era o responsável por plantar ideias malucas na minha
cabeça (e que eu gostava muito) de arrancar a maçaneta do carro, ou de até
mesmo que seria tudo bem ter um
Rottweiller dentro de um apartamento.
Minha ansiedade era absoluta, e ao chegar no local, eu não
via a hora de ir até onde ficavam os cãezinhos.
E para minha surpresa, estava vazio. Isso mesmo.
Praticamente não havia nenhum bichinho por lá. Obviamente que todos eram
lindos. Mas onde estava aquele império de cães que me citaram ao telefone?
Fui até o responsável e o alívio veio imediatamente.
– Olha, se você puder aguardar um pouquinho, daqui uns 30
minutos chegará a uma van com mais um
monte deles.
– CLARO QUE SIM!
Esse tempo eu usei para fazer todas as perguntas possíveis
de um iniciante do mundo de cães ao meu amigo que já tinha bastante experiência
com eles e para conhecer cada canto daquele petshop.
Sempre de olho ali no canto onde o responsável pelos cãezinhos estava.
– É Raphael, né? Então, a van chegou e vamos colocá-los aqui dentro, mas se quiser ir lá dar
uma olhada já na van, fique à
vontade.
Óbvio que eu fui no mesmo instante. Lembro de cada detalhe.
A van branca parada em frente à loja,
ainda com a porta fechada.
Cheguei ao lado dela e veio outro rapaz abrir aquela porta
lateral grande do veículo. Era um paraíso. Literalmente um paraíso. Aquele
barulho ensurdecedor de dezenas de cãezinhos latindo pedindo para saírem logo
dali. O meu olhar passava rapidamente por todos eles porque a vontade era de
soltar todos e pular ali no meio. Mas um deles não latia. Estava quietinho e me
olhando fixamente lá da gaiolinha, mais da parte de cima da van. Eu parei, fiquei olhando por cerca
de 2 segundos, até que meu olfato fosse ativado. Um dos cãezinhos teve diarreia
e a van estava toda enfeitada de
marrom. O cheiro eu vou deixar para a imaginação de vocês.
– Se o sr. puder aguardar mais um pouco, nós vamos colocá-los
lá dentro da loja e limpá-los.
E assim eu aguardei por mais alguns minutos que pareciam uma
eternidade.
Assim que acabaram, comecei a girar ao redor dos quadrados
de vidro, vi os labradores, e todas as outras raças que estavam ali, mas permaneci
com o foco total no Beagle fofo que brincava
por ali com seus irmãos. O peguei no colo e o achei super legal. Super legal, mas
não fenomenal. E eu sei que foi essa sensação pelo que veio depois.
Fui conversar com o dono novamente para saber os preços e
como funcionava tudo, se havia alguma burocracia, e que eu iria pegar o beagle.
Em meio a essa conversa, um latido agudo e fino se
destacava. Alto e incansável, interrompi o assunto e falei:
– Nossa, deve estar acontecendo alguma coisa.
Fui em direção aos ininterruptos latidos e chorinhos, e ali
se encontrava: uma bolinha de pelo preta em cima de uma bolinha de pelo amarela
mordendo-a sem parar no pescoço e a sacudindo loucamente: Dois labradores. A
fêmea amarelinha sendo atormentada pelo irmão, o pretinho. Aquele mesmo que
havia ficado me olhando sem parar na van.
Separei os dois e naquele exato momento eu havia decidido.
Poxa, se eu cheguei a pensar em ter um rottweiler,
será que seria muito ruim um labrador? Claro
que não seria. Afinal, um beagle pode
causar mais caos em uma casa pela sua energia que até mesmo um mamute
(obviamente que nessas horas eu conseguiria qualquer argumento para me
incentivar e conseguir qualquer desculpa factível que fosse em favor ao meu
desejo).
– Certo – disse o vendedor –. Mas qual dos dois?
Algumas dúvidas ficaram em minha cabeça, afinal, a fêmea não
levanta a perninha para fazer xixi, era aparentemente a mais calminha.
Fui até lá e peguei os dois no colo. E foi ali que eu mal
sabia que minha vida mudaria por completo. Pois quando peguei o pretinho, eu
não o achei super legal, ou fenomenal, eu senti como se todas as energias e
sentimentos dele haviam se conectado comigo e os meus aos dele.
– O pretinho. Eu quero o pretinho.
– Ok, mas o sr. sabe que não aceito devolução, correto?
Na minha mente, eu apenas pensei: “Por qual motivo eu
devolveria? Seria possível algum ser humano fazer isso?”
– Fique tranquilo, é impossível que isso aconteça.
– Muito bem, então eu preciso que você assine aqui. E vou
precisar do nome que você irá dar a ele, se quiser pens....
– Ruffus – interrompi o vendedor. – Com dois “f”.
Eu sempre tive o sonho de que meu primeiro cachorro iria se
chamar Ruffus, e nem eu mesmo sabia o motivo. Um amigo meu, meses depois
perguntou se seria por conta do Denis, O
Pimentinha, pois no desenho tinha um cachorro com o mesmo nome. Pode ter
sido, mas confesso que eu nunca soube realmente a razão. Eu só queria, e
pronto.
A partir daquele dia, eu não sabia, mas a minha vida seria
completamente transformada com o mais puro amor que eu poderia conhecer.
Comprei algumas coisinhas para ele, bolinha, caminha, ração, potinhos etc., e fui correndo até onde minha mãe estava, na casa da minha avó Ju. O Ruffus veio no assento do banco de trás do carro, no chãozinho para não cair.
Quando cheguei, buzinei e minha mãe veio até o portão.
Peguei o Ruffus e o levei até o portão. Minha mãe ficou encantada. Lembro até
hoje do rosto dela brilhando e se apaixonando por aquela coisinha linda e já
esticando o braço para pegá-lo no colo.
Aquele dia foi incrível. A minha família por mais rígida que
fosse, se entregou por completo ao Ruffus. Naquele dia não houve problemas ou
discussões. Aquele dia a dor de quase 1 ano de ter perdido o meu pai havia ido
embora e qualquer dúvida e preocupação sobre o futuro haviam desaparecido.
Mal eu sabia, que ele lutaria todos os dias para que os meus
dias fossem sempre assim.
Quando chegamos em casa, ele já chegou fazendo xixi no meio
da sala. Corri e o coloquei na varanda. E é incrível o quanto diversos cães
demoram para assimilar algo assim. Mas o Ruffus não, o meu pretinho desde
aquele dia, aprendeu naquela única vez e nunca mais fez qualquer xixi dentro de
casa.
Eu esperava ansiosamente para passear com ele pela primeira
vez, já que era necessário esperar alguns meses para isso. E obviamente, lembro
de cada segundo daquele momento. Ele estava perdido. Havia um chão imenso para
ele andar comigo, e como ele queria pegar os pássaros que havia na rua. Logo
quando ele os viu pela primeira vez, parecia que corria rumo à felicidade. As
orelhinhas indo para trás em cada impulsão das patinhas pequenininhas e o
desapontamento ao chegar perto e notar que, diferente dele, eles podiam voar.
– Mãe, tá vendo aquele cachorro? O Ruffus vai ficar mais ou
menos daquele tamanho – disse-lhe, ao ver um labrador adulto.
Veio aquele som de susto quando se puxa o ar rapidamente.
– Meu Deus! Você tá brincando!?
– Num tô não!
Mas isso realmente nunca foi um problema. Era capaz do
Ruffus ter mais liberdade que diversos cães que nunca ao menos saem do seu
quintal, pois passeava, com chuva ou sol, duas vezes ao dia, além, é claro, de
passeios de carro, viagens.
Durante os primeiros meses (e depois anos inteiro), o Ruffus
destruiu a nossa casa, a ponto de arrancar cortina rebocada da parede, derrubar
árvore de Natal em cima de si, mesmo ainda sendo super pequenininho. Comia
parede, os móveis, sapatos, meias, discos de vinil e qualquer coisa que ele
visse pela frente que poderia parecer apetitoso.
Até o dia que minha mãe me acordou logo cedo em um sábado.
– Eu estava limpando a casa e ele comeu um sabonete!
– Mãe, tem certeza?
– Tenho! Ele comeu um sabonete! Sumiu!
Na minha cabeça, estava até que tudo bem, afinal, os
sabonetes derretem. Mas esse foi o nosso primeiro grande susto com o meu
pretinho. Corremos para uma veterinária que haviam indicado. E naquele dia eu
descobri como existem até mesmo pessoas que deveriam se dedicar a salvar os
nossos animaizinhos que mais amamos para tirar alguma vantagem.
– Vamos ter que abri-lo. O quanto antes! Vocês conseguem ver
aqui? Consigo sentir exatamente o sabonete preso. – Disse a veterinária
apalpando a barriguinha do Ruffus.
Por um certo momento fiquei desesperado. Mas lá no fundo
alguma voz me disse:
– Calma, saia daí o quanto antes e vá em outro veterinário
que você possa confiar.
E foi o que fizemos. A outra veterinária só faltou
gargalhar. Sabia que tudo aquilo era bobagem, mas que se fosse nosso desejo,
ela poderia solicitar um ultrassom. Obviamente que o fizemos, e foi a primeira
vez que rasparam os pelinhos da barriguinha dele. Não havia absolutamente nada
ali. Apenas uma leve gastrite. Posso dizer que o Ruffus nunca nos deu qualquer
problema grave além desse, entre uma diarreia e vômitos que nos assustavam, mas
que eram sempre muito simples de serem tratados (alguns nem tanto,
principalmente para passageiros de primeira viagem).
Durante seu crescimento, minha mãe resolveu colocá-lo para
adestrar, já que ele parecia um maluco! O adestramento funcionou para duas
coisas: sabermos que ele só obedeceria ao adestrador e aprender a ficar em
pezinho para cumprimentar. Todos os outros truques eu o havia ensinado em poucos
minutos. Sentar-se, dar a patinha, a outra patinha, deitar-se, fingir de morto,
e por aí vai.
Houve um dia em que o adestrador desejou sair conosco e
mostrar que o Ruffus poderia já passear até sem guia. Bom, pelo menos foi o que
ele pensou. O meu pretinho era esperto a ponto de até fazê-lo achar que isso
era possível. Estávamos do outro lado da rua para apenas observarmos enquanto o
adestrador andava com ele sem a guia. Eu vi, lentamente, o Ruffus tomando
distância, até dar o seu bote infalível. Correu como se não houvesse amanhã sem
dar qualquer chance para o adestrador pegá-lo ou até mesmo pisar na guia que se
arrastava ao chão.
Começou uma gritaria da minha mãe desesperada (e com razão)
e do adestrador aclamando pelo nome do Ruffus enquanto ele atravessava a rua
ainda longe de nós com o risco até mesmo de ser atropelado. O meu instinto só
permitiu que eu abaixasse, abrisse os braços, e o chama-se firme e uma única
vez:
– RUFFUS, VEM!
Foi o tempo de ele achar a minha voz e correr até onde eu
estava. Abracei-o, e pedi para ele nunca mais fazer aquilo. Depois foi só
tentar tranquilizar o adestrador e minha mãe, mas ficou tudo bem.
Nove anos se passaram, e em exames de rotina, descobrimos
que seria necessário castrá-lo. Seria bom de certa forma, pois ele acalmaria um
pouco. Ele continuava se achando um filhote, porém, com 43kg.
Mas aquilo me causou muita angústia. Seria a primeira vez
que meu cachorrinho passaria por uma cirurgia, na qual todas mencionavam que
era muito simples, mesmo assim, nada poderia acontecer com o meu pequeno. Eu
fiquei insuportável por dias, até o dia da cirurgia, a ponto de discutir com a
minha mãe. E lembro que quando o levava até a clínica, eu rezava e pedia a Deus
para que o protegesse, pois eu não sobreviveria sem ele. Foi também que o vi a
primeira vez sendo sedado, e ele lutando contra o remédio para ficar em pé. Era
angustiante... ajudei a colocá-lo sobre a mesa, ainda rezando em meu pensamento
(pois eu sempre quis parecer muito forte). E uma equipe gigante estava
preparada para atendê-lo. Uma certa conversa aqui e ali dos médicos que me
deixaram totalmente perdido, pois parecia que algo estava errado.
– Rapha, você pode ir agora que vamos começar.
Eu saí desnorteado. E iria aproveitar esse intervalo curto
para ir até uma lojinha para comprar aqueles cones, já que ele não poderia
lamber ou coçar o local.
Lembro que tanto na ida, quanto na volta, eu fui chorando. E
socava o volante do carro da minha mãe só de imaginar se algo desse errado.
Consigo me lembrar de pensamentos como: “Se eu voltar e meu cachorro não estiver
bem, eu juro que destruo aquela clínica inteira”.
Quando eu cheguei e abri a porta do carro, eu ouvi algo de
longe: era o latido dele. Meio “mole”, mas era ele. Eu tinha certeza. Sempre
consegui reconhecer o latido do Ruffus de longe.
Corri para dentro e a recepcionista já chegou avisando:
Fui quase sem interromper meus passos até o ambiente que ele
se encontrava. E lá estava ele, meio grogue, me esperando. Só não conseguia
correr ainda, mas era nítido que ele não poderia esperar mais um segundo pela
minha ausência. Claro que o sentimento era recíproco.
Óbvio que o castrar não mudou nada a sua energia. Continuava parecendo um filhotinho ligado no 220v.
Figura 3 – Ruffus após castração
O Ruffus conheceu os meus melhores amigos, minhas namoradas até a minha futura esposa, me conheceu desde quando eu não havia um centavo, até eu conseguir ter certa estrutura financeira. De quando eu não sabia o que fazer da vida, até eu ter meu direcionamento. Participou das minhas brigas que tive na minha vida, e talvez por saber o quanto me entristeço quando essas coisas acontecem, sempre vinha e se deitava ao meu lado, em silêncio, e nesses momentos mais nada precisava ser dito. Sem ao menos perceber, eu ia ficando mais calmo até tomar alguma decisão sobre aquilo.
Quando o Ruffus estava com 13 anos, eu ia para mais um dia de passeio com ele aqui pela rua, mas infelizmente foi um dia marcante.
Figura 4 – Ruffinho após banho
Ao esperar para atravessar a rua, o Ruffus caiu sentado no chão com as patinhas de trás para frente. Olhei para ele, e perguntei: “O que foi, Ruffinho? Aconteceu alguma coisa?”
Eu nunca vou esquecer aquele olhar. Não importava o que havia acontecido. Ele virou a cabecinha para trás para me encontrar e ficou olhando nos meus olhos, com uma feição triste. Eu sei que eles não falam, mas eu conseguia entender tudo o que ele queria me dizer. Era um olhar dizendo que algo não estava certo. Algo o incomodava.
Fiquei tentando me enganar por muito tempo, mas naquele dia eu soube que o Ruffus estava começando a sentir o peso do tempo. Não que antes não nos desse sinal, como ir dormir mais cedo, não tão agitado 24h por dia etc. Mas aquele sinal em específico me machucou e ficou gravado eternamente em minha memória. Eu não deixaria o meu filhote com qualquer dor, e eu havia jurado, por tudo, que eu faria o possível e impossível para sempre lhe trazer conforto.
Começamos um tratamento com acupuntura que ajudou de forma extremamente eficaz para que o Ruffus continuasse suas caminhadas diárias, pouco a pouco, com maiores dificuldades. Ao invés de irmos pela escada, íamos pelo elevador. Na rampinha da saída, já descia com mais dificuldade. E nesse meio tempo, outros problemas começaram a chegar. Entre diversos sufocos, precisávamos tentar descobrir o que o nosso filhote tinha.
Diarreia. Precisamos ir ao hospital, pois ele estava com um problema intestinal insuportável, e não queríamos mais dar remédios fortes a ele. E foi nessa ida, que oficialmente havíamos chegado em uma das fases mais marcantes de nossas vidas.
Alguns poucos dias antes, eu havia notado algo estranho. Enquanto eu fazia uma live e a minha namorada estava na cama deitada, ouvi o Ruffinho passar algumas vezes atrás de mim, incansavelmente. Passou uma, duas, três vezes. Eu olhei para a minha namorada, fiz apenas um gesto com a cabeça perguntando o que estava acontecendo, e ela respondeu da mesma forma dizendo que não sabia. O Ruffus andava sem parar e sempre girando para o lado esquerdo.
Após consultas no hospital, nos foi sugerido irmos em alguns especialistas, e dessa forma, entre sufocos e dúvidas sobre o que poderia ser, com as chances de inclusive ser um tumor cerebral, descobrimos, após uma ressonância, que o Ruffus estava começando a ter Alzheimer.
De certa forma, aquilo foi um alívio para nós. Eu e minha mãe choramos em frente ao médico. Mas a minha maior preocupação era: “ele vai me esquecer?”. Por sorte, a doença em cães é bem diferente do que nos humanos. E isso seria muito difícil acontecer.
Aprendemos a conviver com este problema. Até o dia que ele
não conseguia mais levantar sozinho, apenas com nossa ajuda. Ainda consigo me
lembrar de um dia em que eu voltei da academia, já há dias sem vê-lo
levantando-se sem ajuda. Ouvi um barulho. Minha mãe veio até a porta, e vimos
junto a cena, dele apoiando a patinha na porta, se erguendo sozinho, e vindo me
receber. Aquele era o último dia em que ele conseguiria realizar tal proeza que
a idade estava tirando pouco a pouco do meu cachorrinho.
Após meses, houve um dia em que me deparei com o narizinho
do Ruffus escorrendo uma secreção, além de já alguns problemas em sua coluna
que estavam dificultando cada vez mais que ele até mesmo caminhasse.
Fizemos de tudo. E por meses, de “é apenas um dente
infeccionado” a “é um tumor”, fomos adiantes, e para não ficarmos com essa angústia,
arriscamos a cirurgia, que nos chegou a notícia que meu cachorrinho estava com
um câncer no rostinho.
Para piorar, o pós-cirúrgico que nos dava medo, nos
proporcionou ainda o maior susto que poderíamos ter. Contratamos uma equipe
para que tudo fosse realizado aqui. Até que, no segundo dia, um remédio não fez
bem ao Ruffus, e ele entrou em plano anestésico. Meu pretinho estava indo
embora. Foi desesperador. Os veterinários voltaram correndo, por mais que aquilo
parecesse uma eternidade, e a única coisa que eu conseguia fazer, era fazer
carinho em sua cabeça e pedir para ele ficar calmo... “Vai ficar tudo bem
Ruffinho... Fica com o papai... Ouve a minha voz”.
Aquele dia havia sido apenas um susto. E obviamente que
passamos a madrugada e dia inteiro ao seu lado. Não que qualquer outro dia
tenha sido diferente.
E essa foi a versão resumida do que nos passamos durante um
ano inteiro com o Ruffus. E parecia que a cada aparente vitória que conquistávamos
algo novo e ruim aparecia para nos surpreender.
Eu e minha mãe estávamos cansados, mas tirávamos forças de
qualquer canto para continuarmos lutando junto a ele. Não dormíamos mais
direito, e fazíamos apenas nossas obrigações diárias, quando possível, também
ao lado dele.
Até o dia em que fomos ao hospital novamente, pois ele
estava muito cabisbaixo e sem querer comer direito. Quando voltamos, ainda
tarde na noite, ele comeu um pratinho com carninha moída que minha mãe fazia
sempre com muito amor. Aquele seria a última vez que veríamos o Ruffus comendo
por conta própria.
Começamos então a bater sua comida e a dá-la com uma
seringa, como se fosse uma sopinha. E eu sempre o “testava” para ver se ele
ainda estava ali. Pegava uma bolinha, um brinquedinho, e era nítido ver o
esforço dele, ainda que sem conseguir levantar sozinho, brincando comigo.
Tentando me devolver a bolinha e acompanhando com os olhos qualquer que fosse o
brinquedo.
Até o dia em que o Ruffus foi se distanciando. Parou de
beber água... Não respondia mais quando eu chegava ou o chamava. Ali consegui
perceber que aquela luzinha que estava fraca e ainda o mantendo conosco, havia
ido embora.
De qualquer forma, havíamos decidido que o Ruffus partiria
ao comando de Deus. E não por nossa escolha.
Eu pedia isso incansavelmente desde quando ele ainda era
filhote. Sei que de alguma forma isso é errado. Mas o fantasma do “fim” sempre
me perseguiu e me dava medo do dia que isso acontecesse.
Lutamos dia após dia. Incansavelmente. Por mais que a nossa
vontade fosse de sumir por alguns dias, não podíamos, pois minha mãe dependia
de mim, eu dependia dela, e o Ruffus dependia de nós. Minha mãe não sabia mais
o que era dormir e tentava de tudo me dar suporte para que eu conseguisse
manter meus empregos. Eu fazia de tudo para tentar ajudá-la com seu trabalho. E
o Ruffus fazia de tudo para ainda, de alguma forma, manter-se conosco.
Eu ficava me remoendo todos os dias, sem saber qual seria o
último dia, e de como ele seria. Claro que foi diferente de tudo que eu poderia
imaginar. Por algum motivo Deus não ouviu ao que eu tanto implorava.
Houve o dia em que o Ruffinho não suportava mais. Ele mesmo
nos pediu de alguma forma para que aquilo parasse.
Aquele seria nosso último domingo juntos, sem que nos
imaginássemos e por algum motivo, eu havia ficado literalmente 24h ao lado seu
lado. Normalmente eu saia ao menos para respirar um pouco com a minha namorada.
Mas ela mesmo havia pedido para ficarmos aqui em casa.
Dei o seu jantarzinho, e fui apenas levar a minha namorada
para sua casa. Quando voltei, o Ruffus ainda estava acordado com a minha mãe e
eu resolvi ficar ali para ajudá-la.
Ficamos a madrugada inteira acordados, tentando fazê-lo
dormir. Até que o câncer que já havia dominado seu lado esquerdo do rostinho
começou a sangrar. Conseguimos fazer com que aquilo parasse, e por algum milagre,
havíamos conseguido fazê-lo dormir. Sono que durou apenas uma hora. Quando ele
acordou, não conseguia parar de latir.
Eu havia tentado dormir, mas sequer cochilei, e levantei
imediatamente quando minha mãe me chamou. Tentamos fazer todo o procedimento
que fazíamos para que ele dormisse, limpamos o narizinho com soro, demos
remédio, inalação. Mas nada, nada parava o Ruffus.
Resolvi levantá-lo um pouco para que andasse, pois isso as
vezes o ajudava. Consegui chegar com ele até o corredor, onde ele apoiou-se em
um dos móveis. Notei sangue... Conseguimos dar mais poucos passos, e mais
vestígios de sangue apareciam no chão. Até que ele caiu no chão da sala. Chamei
minha mãe, e ela sentou-se ao lado dele, tentando incansavelmente parar o
sangramento, que era praticamente impossível, pois a cada latido que ele dava,
pior era. Ouvi algo que, de certa forma, eu esperava que ela dissesse...
– Liga para o veterinário... Não está dando mais...
Eu liguei para o veterinário e ainda questionei minha mãe,
como uma esperança de que talvez eu estivesse ouvindo errado.
– Tem certeza, mãe? – E desliguei antes mesmo do segundo
toque.
Mas eu já sabia a resposta. Era nítido. Eu precisava apenas
do apoio dela.
O veterinário ainda demoraria duas horas para chegar. E eu
não queria mais ver um dos maiores amores da minha vida sofrendo mais. Sentei-me
ao seu lado, coloquei sua cabecinha apoiada em meu colo. Pedia calma a ele, e
dizia que tudo ficaria bem, enquanto segurava um paninho com gelo em sua boca
para tentar amenizar a dor.
Pedi para minha mãe o vidrinho de CDB do Ruffus, já que
tínhamos um pouco ainda, pois até esse tratamento estávamos fazendo e fugi das
regras nas quais o veterinário havia me instruído. Dei uma quantidade alta do
remédio que eu sabia que era natural, e não o faria mal. Em menos de 5 minutos,
o meu pretinho começou a ficar mais calmo... a parar de latir. A cabecinha foi
ficando mais pesada, até que se deitou ao chão.
Aquele momento, foi a última vez que estive 100% fisicamente
com ele. Até que o veterinário chegasse e conseguisse nos ajudasse a dar fim
aquele sofrimento que ele estava passando. Cheguei a pensar que talvez seria
loucura fazer aquilo, pois eu havia conseguido fazê-lo dormir. Mas lembrei-me
que ao passar o efeito do CDB e do seu cansaço, tudo aquilo voltaria. O cheiro
da infecção de urina que ele também já tinha estava muito forte, mesmo
tratando.
Eu tremia. Tremia enquanto falava com o veterinário e não
sabia mais o que estava acontecendo.
Até que o meu cachorrinho foi embora para sempre.
E quando ele se foi, eu senti como se metade de mim
estivesse indo junto. Perdi metade do que eu sou, e que talvez, por mais que
isso passe, jamais será da mesma forma.
O Ruffus foi o meu primeiro cachorrinho. A minha melhor e
fiel companhia. Não importa o que aconteça, eu o carregarei para todo sempre em
meu coração. Me moldou, me ensinou, e continua me ensinando, mesmo não estando
mais aqui ao meu lado.
Em qualquer viagem que eu estivesse, eu me lembrava dele e
sempre trazia algum presentinho. Até mesmo no momento da vida em que me
questionei se eu deveria fazer algum intercâmbio, e logo essas ideias iam
embora quando eu lembrava que eu não teria todo o tempo do mundo com ele.
Foram escolhas e sacrifícios que certamente eu, e falo pela
minha mãe, faríamos tudo de novo. Sem mudar qualquer vírgula.
Figura 6 – Última foto com o Ruffus em vida.
Espero que você nos guie, de onde você estiver. Eu
continuarei lutando por aqui, sempre pensando em você.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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