2x06 - Instinto Feroz (A Errata)
de Edih Longo
Saí da saia de minha mãe sem a mínima condição
física. Adiantei meu relógio biológico e apareci aos cinco meses. Fiquei os
meses que faltavam para minha maturidade fetal em encubação. Vim como folha de
outono que o vento faz de ioiô. Cheguei, olhei para tudo e dei um muxoxo. Logo de cara, levei umas
tapas na bunda e mandei o moço mascarado e de roupas brancas para o inferno.
Isso iria me alertar para essas coisas que
acontecem na vida,
pensei com o meu cordão umbilical que estupidamente foi cortado. Perdi parte de
mim. A minha comunicação com a nave mãe e, consequentemente, com a Terra. Senti-me solto no ar. Uma árvore-pássaro sem
raiz e sem asas. Nunca darei bons frutos, nem lindos voos.
E agora? Aos seis anos, comecei os ensinamentos
escolares. Nunca entendi porque meus coleguinhas não conseguiam casar as
palavrinhas. Aprendi sozinho e com
alguma percepção, claro, que se casasse as consoantes com as vogais iam saindo
lindos bebês. Se as somasse mais, sairiam lindas palavras e se essas se complementassem sairiam as frases.
E a gente ia sem perceber, perpetuando num
papel, nossas falas e pensamentos. Virei um escritor. Vivia pegando qualquer
papel que visse pela casa e escrevendo tudo o que meu pensamento afoito ia me
atropelando como um carro de corrida com o motor superturbinado. Por pensar
tanto e tão rápido, não conseguia verbalizar a fala.
Quando fiz oito anos, ganhei de presente da
Diretora da Escola uma coleção de livros de histórias. Então, afundei-me nelas.
Ouvia comentários pela casa de que eu teria um pequeno problema. Era um ausente
(embora mais presente que nunca); um antissocial (achava os seres humanos uns
inúteis, com necessidades pequenas, como, por exemplo, comer).
Tem coisa mais feia do que comer? Um sociopata (adorei esse
nome! Jamais admitiria pertencer ao mesmo clã que os homens). Depois, descobri
que antissocial e sociopata são palavras homônimas e, segundo as regras da
língua, é uma redundância usá-las na mesma frase. Achei os adultos mais idiotas
ainda. Assim, fui acreditando nisso e me fundindo em meu próprio eixo.
A
primeira história que escrevi foi: o ausente presente. Deixei que os
adultos idiotas que me cercavam acreditassem nisso também, assim teria paz ao
meu redor e poderia confabular com meus fantasmas. Eles que me aguardassem.
Minha mãe era a única que parecia me entender. Não queria me levar a nenhum
médico, pois me achava normal.
E
eu, para não a ver triste, sorria quando me falava e mexia a cabeça
acompanhando a sua fala, demonstrando que a entendia. Mas, não falava. Um dia,
meu pai cansado de minha muda figura; levou-me a um fonoaudiólogo e gargalhei a
cântaros, internamente, quando o idiota disse que eu devia ser um autista. Bem,
eu me achava um artista, claro!
Só uma simples questão gramatical: a troca de
uma vogal por uma consoante e um modo especial de se levar a vida. Mas, como
doutor! Veja como ele escreve bem. E ele não é surdo, pois nos entende. Não é
débil mental, pois pensa com mais lógica do que um adulto. Tira boas notas na
escola. É aplicado. Sabe se vestir, sabe se...
Senhor,
eu sei que nenhum pai quer admitir que o seu produto de fabricação tenha
defeito, mas infelizmente, o seu tem. Não vejo qualquer sintoma de surdez, não
vejo qualquer distúrbio mental, mas o seu produto é defeituoso: ele é mudo.
Ora, vá para o inferno, doutor. Vamos embora, filho. Nunca mais vou expô-lo
para nenhum idiota.
Só falta o senhor dizer que ele precisa trocar a bateria. Que ele não fala eu sei. Só não sei e quero saber o porquê? “Por que”, entendeu? Incompetente. Saí do consultório exultante. Afinal, sou um produto com defeito que não veio com a respectiva nota fiscal de validade, por isso nem posso ser devolvido. E aquela de trocar a bateria foi genial.
Adorei saber disso, assim ninguém mais vai me
encher a paciência. É só esconder a bateria. Que coisa essa mania de gente grande!
Minhas melhores amigas são duas árvores frondosas que temos no quintal de casa.
O pé de jabuticaba, que por ter os frutos grudados no caule, foi descartado para fazer o meu
escritório.
A mangueira que tem o caule superalto e forte
foi a escolhida, a qual
ajudei o meu pai a construí-lo.
Só conseguia escrever ali. Meu pai era o meu herói. Minha mãe, a minha musa. Para que eu precisaria de mais
alguém? Digam-me! E quando deram o meu
primeiro computador, então, foi como se tivessem parido um irmão. Nunca me
sentia solitário. Adorava meu silêncio.
As piores horas do meu dia eram quando estava na
escola e quando soava o bendito sinal da hora do recreio. Olhava para a horda
enfurecida que corria para as filas na Cantina e, prosaicamente, degustava o
meu lanche caseiro. Além de minhas amigas frutíferas, comecei a curtir umas amizades com
algumas personagens de uns jogos. O primeiro recebi meio com receio.
Depois, comecei a me apaixonar e a ficar
impressionado com a violência contida. Meus pais compravam para mim aquela
parafernália toda só porque me viam rir. Um dia, fui dormir com a imagem do último jogo na cabeça
me martelando. Era uma cena onde o herói tinha que matar todos os vizinhos do
prédio e, por último, os próprios pais. Fiquei triste com este final, pois meus pais, para mim,
eram o máximo, mas resolvi colocar em prática tudo isso. Resolvi jogar também.
Já havia feito isso com os animais que tínhamos na casa. Senti-me tomado por
sentimentos inusitados. Hoje acho que são chamados de instintos ferozes, li
isso na sala de espera do único psiquiatra que me levaram.
Apesar dos acontecimentos pouco comuns que aconteceram, meus pais são do tipo que não aceitam derrotas e admitir que eu possuísse algum outro defeito para eles era impossível. Eu, lá no íntimo, me considerava um pequeno gênio demoníaco. Quando Lorde Byron – nosso cachorro – apareceu morto, minha mãe atribuiu o fato à tentativa de roubo em nossa casa.
Simular isso foi fácil. Foi só arrebentar uma
das janelas da casa num dia em que eles foram ao Cristo Redentor acompanhar uns
parentes. Fiz aos poucos. Cada dia tirava um parafuso da grade de ferro e,
depois, foi só dar umas marteladas. A gata Lili eu apertei a garganta e joguei
na caçamba. Minha mãe achou que foram os homens que tinham sido presos
recentemente.
Eles entraram na casa do vizinho e tinham matado o cachorro. Ela pensou
que talvez a Lili,
que vivia se enfiando por lá,
tenha miado e fora vitimada. O papagaio Papudo eu eletrocutei colocando os fios
descascados em suas patas com água. Eu gostava de todos os animais, mas começou
a me dar uma sensação de poder.
Ser dono do destino dos vivos, como era dono dos
destinos das minhas personagens quando as escrevia. Sentia-me, nessas horas, um
verdadeiro deus ou... um
demônio. Repito: quando não gostava de uma personagem,
simplesmente o apagava. Às vezes, apagava uma que gostava e imaginava que ela
estava implorando para sobreviver, mas era radical. Frio e calculista.
E
comecei a bolar como faria a minha matança mais espetacular. Comecei a
frequentar uma escola onde eu aprendia a Libras, forma brasileira de você se
comunicar. Meus pais desistiram depois de tantas tentativas da fonoaudiologia.
Eu percebi, com o tempo,
que conseguia me comunicar. Não tinha problema na glote, mas na alma. Tinha me
tornado um masoquista.
Mas,
diante de minha docilidade e falta de ação, quem iria imaginar que todas
aquelas maldades feitas contra os animais eram de minha lavra? Jamais o
coitadinho do Jonas faria uma coisa dessas, o pobrezinho mal faz alguns sinais
com Libras. Meus testes estavam aprovados. Ninguém jamais iria colocar a culpa
em mim se qualquer outro incidente maior acontecesse.
Comunicando-me com os sinais, pedi aos meus pais que reunissem alguns vizinhos do prédio para comemorar o meu aniversário de onze anos. Meus pais não se cabiam em si de felizes. Achavam que, como eu podia me comunicar de alguma forma, agora eu seria uma criança normal, finalmente, integrada à sociedade.
Surpreendi-os até fazendo planos sobre meu
casamento, netos e todas essas coisas inerentes à vida comum. Diante destas
expectativas e esperanças, eu os absolvi e resolvi não os jogar na lixeira. E,
seguindo um manual pego na Internet com um boboca do qual fingi ser amigo, fiz
várias bombas domésticas. Fácil, fácil.
Coloquei-as em lugares estratégicos e, quando todos os
convidados tivessem chegado, eu acionaria um controle que coloquei fora da
casa. O único problema era tirar os meus pais de lá. Teria que ter argumentos
mais do que fortes para que em determinado momento, exatamente o auge, saíssem
fora. Quando faltavam cinco dias para o fatídico acontecimento, tive um insight.
Assistindo a um filme na TV, a solução veio mais
clara e convincente: usaria o argumento de que queria presentear a todos com
nossas frutas. Eu as colocaria ricamente adornadas em cestinhas de vimes. Sem
essa de lembrancinhas infantis. Quando meus pais fossem me ajudar, pois
deixaria as cestinhas na edícula, eu acionaria o controle que escondi lá.
Fiquei
esses últimos dias que antecediam o meu aniversário quase sem dormir. Estava
obcecado. Fechava os olhos e via a casa explodindo, via pedaços de vizinhos
pulando para todos
os lados. Imaginei a cara de pavor da Rosinha, uma menina chata que vivia me
atormentando quando cantava suas músicas sertanejas. Ela destilava lágrimas de
sangue.
Cada
pedaço de gente que eu antevia, era uma mágoa que eu despedaçava. Frequentava
uma escola normal, pois não tinha problemas mentais como já foi amplamente
dito, mas sofria com os olhares maliciosos e os risinhos cabisbaixos dos
coleguinhas. Preferia que esse bullying
velado fosse feito às claras para que eu pudesse, de alguma forma, revidar.
Numa de minhas redações tentei colocar essas angústias que eu sentia, mas acho que a professora considerou tudo como se fosse fruto de minha imaginação e, apesar de ter-me dado um dez, nunca comentou o que eu escrevi. Por isso, fiz questão que meus pais a convidassem. Seria mais um pedaço de mágoa flutuando pelo espaço. Agora ela entenderia meu recado.
Enfim, coloquei todos os coleguinhas que tinham
sorrisos hipócritas e olhinhos curiosos no mesmo saco. Quando percebi que a
maioria já havia chegado, fiz o que tinha premeditado. Além disso, fiz uma
linda escultura estilizada de Cervantes tendo em uma mão um livro e na outra
uma pena e gravei em letras cursivas:
“Sou uma errata que merece ser esclarecida. Preciso de alguém
capacitado para ser entendido”.
Estou
mudando de clínicas psiquiátricas há quatro anos. Já passei por várias
instituições tanto aqui em São Paulo quanto no Rio, onde nasci. Por minha causa, meus pais
resolveram se mudar. Adorei essa ideia quando me avisaram, pois achei que
mudando de cidade poderia ficar com eles, mas me tornei um objeto de estudos.
Nesta estou há seis meses.
Depois
de tantos choques e tratamentos ineficazes acho que continuo cada vez mais uma
errata, cada dia aumenta a ferocidade de meus instintos e jamais serei
entendido. Meus pais se convenceram que sou um doente e me visitam pouco,
principalmente, depois que adotaram uma menina.
Não a conheço. Acho que têm medo que a exploda só com o olhar.
Agora, até eu me sinto um idiota, pois devia
tê-los explodido também. Escrevo essas palavras para que um dia, quem sabe,
alguém se lembre de mim e tente fazer uma correção em tudo o que foi minha vida
enquanto não se apague, definitivamente, a chama de minha inteligência. Pedi
para Dª. Margarete, a nossa Diretora, que enviasse essa minha última história
escrita.
Sei lá, para vários órgãos da Imprensa Dª. Margarete é a única
que me dá atenção e substituí totalmente a lembrança de minha mãe pela presença
dela. Além de bonita é muito inteligente
e faz análises fantásticas de minhas histórias. Quando recebi o AR (Aviso de
Recebimento); dei três pancadas com uma pedra na cabeça dela.
Assim, ela ficará para sempre sendo só minha,
apesar da ausência física. Como anulei sua presença com a morte que lhe impus,
tornou-se como uma personagem criada por mim como outra qualquer de meus
escritos. Posso vê-la a hora que quiser e fazer uma releitura. Posso não mais
gostar dela e modificá-la,
ou seja, guardá-la-ei dentro de mim.
Ela virará minhas letras que correm ágeis na
tela de meu computador e explodem como lebres nas folhas de minha impressora.
Devia, como já disse, ter feito isso com os meus pais e eles não teriam me
substituído. Viveriam sempre na outra vida que eu lhes teria proporcionado:
dentro de mim e de minha saudade.
Bem, escondi o corpo de Dª. Margarete na... quero dizer, no... ora, que procurem. Tudo
será esclarecido quando lerem a minha história, não é mesmo? Isso se alguém se der a esse trabalho... Quanto a mim, continuarei na mesma. Não posso
ser preso, pois ainda sou adolescente e a lei me protege. Já estou no lugar
certo.
Por
outro lado, quando for adulto não posso ir para uma penitenciária comum, pois
sou deficiente e já fui julgado como tal, inclusive com direito a um número
especial como um animal numa cela em pleno zoológico. Continuarei sendo só eu
mesmo e as paredes brancas de meu quarto onde não posso nem grafitar minhas
incoerências, como os presos comuns.
Por
ser um lugar para menores de idade, tudo aqui é proibido. Idiotas! Pensam que
podem ensinar boas maneiras a débeis mentais?! Como assim? O que querem nos
ensinar se nunca sairemos daqui para praticarmos tais ensinamentos? Há alguma
lógica em ensinar alguém a ser normal se esse alguém, como eu, faz questão de
ser louco?
E
qual é o muro que separa a normalidade da loucura? Será que normal e louco não
são apenas palavrinhas-personagens de questões gramaticais? Será que eu não as
fecundei no útero de meu cérebro como fazia antes? Minha mente parece um
Tiradentes: esquartejado e exposto ao público. E o subtítulo de meu conto pode
até ser ignorado e nunca ser lido. Lembram-se dele?
Não?!
...Pois é, quem, afinal, lê uma errata?
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
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