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Antologia O Mal que nos Habita - 2x07

Conto de Roque Aloisio Weschenfelder
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Sinopse: Um conto em primeira pessoa em que a personagem sofre um pavor enorme de um monstro imaginário chamado Nada, o representante da morte de inatividade e do fim da vida.

2x07 - Pavor do Nada
de Roque Aloisio Weschenfelder

Ele chegou sem o ter esperado. Sempre o temia e tudo fazia para não lhe dar a chance de me ocupar. O nada é um desesperado sem cara nem forma alguma. De um tempo para cá, ele veio se aproximando, mandando mensagens pelas redes sociais onde sua presença fica cada dia mais forte.

Sempre o receei e tudo fazia para impedir que me viesse roubar os dias cheios e as noites de sono com sonhos. Sonhava acordado de dia.

Agora tento mantê-lo a uma distância razoável para que não afete minha reputação de alguém que trabalhou desde cedo, menino ainda e, por cinquenta anos, tive sempre empregos sem nunca receber seguro-desemprego ou auxílio qualquer. Após me aposentar por três vezes, trabalho em home office com revisões e produção de livros de literatura adulta e infantil, além de didáticos.  

De repente, o fantasma da pandemia do coronavírus deu impulso às lives, aos podcasts, a mil e um cursos de toda ordem vendidos pela net, sendo que a compra de livros despencou de vez – já se lia pouco neste nosso país tropical, onde a arte e a cultura são misturadas com a propaganda de peitos, pernas e bundas. 

Uma que outra alma mais tradicional ainda manda um trabalho de vez em quando. Feiras de livro e festas literárias acontecem, mas é difícil participar, pois o nada mandou um tentáculo jogar um coágulo numa minúscula veia cerebral causando um limite ao braço e à mão direita. Isso exige que gaste horas com fisioterapia todas as semanas. Ele conseguiu me impedir de dirigir o carro e visitar parentes, amigos e participar de muitos dos eventos de que gostava bastante. 

Tenho pavor do nada e sequer o sei definir. Vejo nele um mal que pode me habitar. Não o quero imaginar. Agora, depois de alcançar a idade que muitos bem apessoados não alcançam. Bem apessoados de corpo e bens mundanos, imóveis e finanças. De repente, eles viraram no nada depois de uma cremação ou de um enterro. Sim, um nada de caixinha de cinzas ou um nada de um mínimo buraco num cemitério. 

Esse pavor se espelha a cada pensamento sobre o que fazer para manter o nada a uma distância suportável, e isso me faz sentir a chegada dele. Ele quer me agarrar, deixar-me preso em suas garras, imagino-as enormes, na ponta de dedos compridos em mãos largas e ombros sem fim.

Se me agarrar, sei que não haverá como me soltar. Vai desligar o computador, tirar a bateria do celular e apagar os contatos do Whatsapp. Vai me declarar incapaz de falar com alguém, de usar meus dedos para teclar. Dirá que deverei doar meus livros às bibliotecas de rua, que dão renome a quem jamais adquiriu livro meu. 

“Por que tens tanto medo do nada?”, perguntam-me.

Respondo que ele já me pegou quando era bem pequeno e com uma das garras, a do sarampo. Arrancou-me a visão do olho esquerdo e, depois de velho, com a garra do AVC isquêmico, arrancou boa parte das habilidades e forças da mão direita, transformando-me de destro em canhoto, na política, teria virado esquerdista. 

Ele não tem pena da gente, não. Só de pensar nele, meu pavor se estampa na face. Ele me rouba o sorriso, as palavras de amor e me faz tremer no escuro. Logo eu que nunca tive medo e passeava campo afora em noites sem lua e pescava sem enxergar a água do rio durante os anos da juventude.

Queria não precisar pensar nele, mas já vi tantos virarem num nada que a mente não se livra dessas ausências.

A todos ele vem pegar, alguns o chamam de morte e o pintam com uma grande foice.

O jeito é escrever. Escrever e imaginar algo bom, ou mesmo ruim, apenas fictício, que seja, é melhor que nada, muito melhor. Quero escrever minha história, alguns a chamariam de autobiografia, já que pouco me ocorre além disso, o que atrai esse fantasma, dragão ou corvo do nada. 

“Como é medroso!”, soa-me no ouvido. “Há tantos que gostam de fazer nada para não perderem o auxílio do governo, até o chamam de bolsa disso ou daquilo” , ouço a tentação falar. Sim, a tentação, um dos tentáculos do inexprimível, do mal do século XXI, que não será fácil de eliminar, já que é estimulado pelos governantes. 

Viu como esse nada danado se imiscui na sociedade? Na vida de quem preza o trabalho? Uma coisa é precisar descansar e curtir um nadinha camarada, outra é ser atropelado pelo monstro do tamanho de um trator de derrubar árvores enormes. Que ele terá de ter paciência comigo, ah, lógico que vai precisar ter! Minha biografia tem muito a ser escrito! Quem não tem paciência sou eu. Já me considero um neurótico para não dizer um calamitoso frente à figura invisível, mas cheia de garras desse monstro nada agradável. 

Nada de vir me azucrinar neste fim de ano!

Quero é paz para fazer aquilo que gosto: fazer uma ou outra pessoa ler um conto meu. Se o fizer, não precisará ler minha história, chata pra caramba! 

“Chata por quê? Tem nada de interessante?”, querem me perguntar, mas digo que tem vários pontos interessantes. O problema é que há mesmices que vivi, como acontecem na vida de todos que têm aquele gigante chamado nada. Esses que o adoram para ganhar um mísero benefício nunca terão mais que um nada curto, menor que um quinze dias. Eles podem sentir uma de suas garras com o nome de fome. Dessa também tenho medo! 

Preciso dormir, pois o receio dele me cansa e escrevo três ou quatro assuntos na mesma hora. 

Deito e espero o sono, mas ele teima em só fazer doer meus olhos. 

“Ele surge e me grita para abrir os olhos, jura que é belo e fantasioso, que está vestido de Papai Noel. Não sou bobo de acreditar mais uma vez nessa lenda natalina. Fiz isso na infância, que já foi para o fundo, o mais fundo possível da memória. Ele quer me fazer crer que arame farpado é liso, que cactus possui folhas planas sem espinhos, que o peixe traíra não tem escamas. Ele tenta entoar canções de ninar, mas sua voz enrouquece a ponto de ser um corvo de Edgar Alan Poe.”

Puxo a coberta sobre o rosto para abrir os olhos e logo enxergo nada, nada mesmo. Não quero a vida assim, preciso de ação, mas também quero dormir sem nada a temer.

Acordo com um grito estridente que saiu da minha boca. Ele veio, grande, forte, cruel, fantasiado num corvo de nove garras em várias pernas e setes asas que o faziam se desequilibrar na altura do teto. O bico enorme se abria com dentes vermelhos, pingando sangue e suco oriundo de olhos furados. Ameaçava jogar-se sobre meu rosto descoberto. 

O filho e sua esposa vêm perguntar o que houve e indico o monstro no teto, mas dizem haver nada lá. Era exatamente o que temia ouvir dizer: nada! 

— Nada não, nada é perigoso! — reclamo.

— Durma tranquilo! Está tudo certo! — falam ao se retirar.

Como dormir tranquilo com um pesadelo desses?

Levanto, lavo o rosto e sento ao computador para escrever mais um episódio que fará parte da minha história para ser lida depois de o nada me dominar pra sempre.

Levo mais um susto enorme quando digito e nada aparece escrito na tela. O desgraçado bloqueou o editor de texto e, no meu cérebro meio dorminhoco, aparece a figura do corvo com as garras, e, pior, Allan Poe ri segurando ele na sua mão de nada. 

“Não pense que vai me substituir escrevendo contos de horror!”, aparece escrito bem grande na sua boca em que virou a tela. 

Levanto e me refugio no quarto, enfiando-me embaixo da coberta outra vez. Nada adianta. Ouço os grasnos do corvo e as risadas de Poe. Então dou-me conta que o contista norte-americano já está dominado pelo nada, aquele brutamontes que não poupa nem os mais famosos artistas e escritores. Solto outro grito, mas, felizmente, o filho e sua esposa não o escutaram. Empurro a coberta para o chão e rolo direto da cama em cima dela. 

Acordo sentindo a coberta sendo puxada e quatro mãos a me levantar e pôr de volta no colchão. Ouço essas mãos falarem: — o que será que aconteceu? Até ontem tinha nada o importunando! Devíamos chamar o médico. 

Desperto para realidade e falo: — o nada é o problema, o nada quer me subjugar, o nada com suas garras de corvo, o nada que não posso suportar, ele é que me persegue e agora quer me terminar.

— Vamos chamar seu médico — diz a esposa do filho, que não chamo de nora por considerá-la uma filha.

— Não chame, não. Ele nada me pode ajudar. Vou levantar e escrever para o tempo passar. 

— Eu desliguei seu computador, pai. De noite o senhor precisa dormir.

— Está bem, mas isso me reduz a um nada maior! — reclamei. — Podem descansar e não precisam dar bola se eu grito nos sonhos, já fiz isso quando ainda criança. 

Ambos voltam ao quarto, e eu ao computador, que ligo e consigo abrir o editor de texto.

Escrevo: “Já sou um quase nada, porém meu denodo está em não me entregar ao nada, aquele monstro que, o tempo todo, indica que nada serei depois de duas a três gerações, pois nem os famosos contistas como Poe e Borges sobrevivem sem seus leitores, que dizer de mim que sequer consigo vender uma meia dúzia de livros numa festa literária. Eu já sou um nada, apenas ainda não tenho garras porque sequer consegui criar uma barata perigosa, imagina um corvo ou assassino da Rua Morgue.”

Quando começo a reler o texto, um surto me ataca e quero fugir. Não consigo me levantar da cadeira, e as mãos se levantam tapando-me a face. Enxergo só no fundo da mente uma terrível frase: “O Nada é um ser do universo que fará parar  você, a humanidade, a terra, o sistema solar e o universo”.

O corvo voa embora, o ar entra pela janela e sinto que meus pesadelos não pararão enquanto não aceitar que Nada é nada mesmo. Vivo o pavor com horror.

Conto escrito por
Roque Aloisio Weschenfelder

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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