Café com Leite
de Evandro Valentim de Melo
Imprudência. Duas pessoas distraídas caminhavam
a olhar vitrines. Colisão de corpos. Pacotes, até então nas mãos de Saulo,
foram ao chão. Felizmente não havia nada que fosse frágil.
Rosto familiar, ele vivenciou o desconforto de
não se recordar do nome de alguém conhecido. A fim de evitar mal-entendido,
preferiu admitir:
— Perdoe-me, tenho a impressão de a conhecer de
algum lugar, mas não me lembro do seu nome.
Meio sorriso no rosto, por ter causado o
incidente, ela esclareceu:
— Talvez meu rosto lhe seja familiar, pelo fato
de eu apresentar um jornal na TV.
— Caramba! Que mico! Por isso a familiaridade…
Nem sei o que dizer, além do pedido de desculpas.
— Suzana – revelou a mulher. Este é o meu nome.
— Saulo; prazer. É meu primeiro esbarrão em
gente famosa.
— Na verdade, eu é que lhe devo desculpas,
estava bem distraída. Raramente frequento shoppings.
Hoje é uma exceção. Fui convidada pelo meu melhor amigo, Fábio. Em breve, ele
inaugurará uma cafeteria aqui. Como as portas ainda estão fechadas, posso
saborear um excelente café, segundo ele, adquirido para a estreia da loja.
Permita-me compensar a trombada e os pacotes que foram ao chão. Eu lhe pago um
café e fica tudo desculpado, topa?
Inesperado o convite.
— Topo – disse Saulo, meio abobado frente à
beleza de sua interlocutora.
Gênese. Ali nasceu algo capaz de transpassar o
“coração blindado por armadura de liga de titânio e rodeado por mortíferas
minas subterrâneas”, como Saulo descrevia o próprio coração. Uma a uma, o novo
sentimento pisou em todas as minas, divertindo-se com os sons de um retumbante
coração a bater mais alto e descompassado a cada despedida, ansioso por novos
encontros a partir daquele primeiro, tão saboroso quanto o café experimentado
após-trombada no shopping.
Para quem mal assistia à TV, Saulo não mais
perdia o telejornal. Nos demais horários do dia, trabalhava com dois amigos em
uma dessas abnegadas e teimosas organizações não governamentais, conhecidas
pela sigla ONG. O trio empreendeu esforços na construção de ‘pontes sociais’
capazes de ligar desafortunados afrodescendentes a oportunidades de trabalho,
emprego e renda.
Que bela combinação: Suzana, pele negra,
originária desse mesmo povo abraçado pela ONG em que Saulo trabalha. Ele, cuja
alvura da pele e tonalidade dos olhos e cabelos, demonstravam a ascendência nórdica.
O café adquirira especial significado para
ambos. Suzana e Saulo foram apelidados “casal café com leite”, cujo amor nasceu
a partir de um esbarrão e de dois expressos tomados furtivamente. Viviam
intenso sentimento. Aos amigos próximos, impossível não perceber o quão
especial era aquela relação.
Saulo, em reverência ao café, encontrou tempo,
nas entrelinhas de sua tumultuada agenda, para melhor conhecer a bebida mais
tomada no mundo – depois da água, claro – e tornou-se mestre torrador;
esmerou-se, cada vez mais, na arte da torra dos grãos, ora a intensificar,
outras vezes a suavizar, para de lá, extrair o equilíbrio ideal entre sabor,
aroma e acidez. De vez em quando, levava sua microprodução ao crivo de Fábio,
na cafeteria onde tudo isso começou, e obtinha aprovação e dicas para melhorar
ainda mais.
Se por um lado a vida inspira, de outro,
conspira. A cobertura midiática pelo assassinato do negro George Floyd, na
cidade de Minneapolis, Minesota, Estados Unidos, foi imensa. A covardia de
policiais ‘brancos’ foi vista em todo o mundo. Manifestantes daquele país, como
de diversos outros, inclusive no Brasil, acreditavam que o fatídico
acontecimento serviria como um divisor de águas no combate, enfrentamento e
severas punições ao racismo.
A locução de Suzana naquela noite fora
inigualável. Pequenos detalhes em sua expressão facial, só percebidos por quem
a conhecesse de perto, demonstraram o quanto ela sofria diante das câmeras,
como se enorme serpente constritora a asfixiasse, ao narrar a tragédia.
Ela encontrou no ombro amigo/amante de seu
mestre torrefador, o apoio necessário diante de um crime contra todos os negros
do mundo.
Dias depois, para infelicidade de uma família de
Jacarepaguá, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, uma adolescente negra foi
vítima de ‘bala perdida’, em tiroteio entre policiais e traficantes.
Ainda a sentir as dores e o luto generalizado,
herança do recente episódio nos Estados Unidos, pela ferida aberta frente a
tamanha covardia, Saulo se sentou em frente à TV, na expectativa de assistir a
mais uma espetacular narrativa de Suzana. Contudo, analogamente a um jornal
impresso, o telejornal mencionou minúscula ‘nota de rodapé’, sobre a
“involuntária e acidental” consequência da ação estatal no combate ao tráfico
na capital fluminense. Pouco caso da tragédia doméstica, como se vidas negras
no país do Tio Sam fossem mais valiosas se comparadas às de negros no Brasil.
Fúria. Saulo transbordava revolta por todos os
poros. Esbravejou sozinho em sua casa.
— Por que nós, brasileiros, nos sentimos tão
insignificantes, tão inferiorizados? “Involuntária e acidental” é o cacete!
À saída do prédio da emissora, Suzana foi
surpreendida por um colérico Saulo, olhos afogueados. Ela se assustou; porém,
nada pôde dizer. Seu parceiro, seu esteio, seu amigo/amante, seu mestre
torrefador, carbonizara a própria sanidade, queimara-se a si mesmo. De modo
irascível, Saulo despejou impropérios em Suzana, pela pífia menção à tragédia
carioca. Culpou-a da abordagem insignificante à morte da jovem negra.
Medusa. Pareceu que Suzana havia encarado de
frente o ser mitológico. Petrificou-se. Observou o carro de Saulo arrancar
cantando pneus.
Trancafiado em si mesmo, Saulo imergiu no
trabalho, a fim de oportunizar chances a inúmeras famílias atoladas no fundo do
poço. Carências de toda ordem faziam parte das comunidades com as quais lidava
amiúde.
Dias se passaram. Transformaram-se em semanas e
formaram um bimestre, até que Saulo, sentado a sós, em uma mesa de bar, se viu
diante da tela da TV, no exato horário do telejornal que ele deixara de
acompanhar. As lembranças lhe proporcionaram dor. Avisou ao garçom que mudaria
de mesa. Sentou-se em local de onde não assistiria ao programa. A porção de
batatas fritas o ajudou a se desligar da TV, mas não da conversa do casal da
mesa ao lado.
— Não gosto do novo apresentador desse jornal.
— Digo o mesmo. A Suzana era muito melhor. Além
de competente, belíssima! O que aconteceu a ela?
— Ouvi dizer que se demitiu da emissora.
O fragmento de conversa furtou a agradável
combinação de sabores entre batatas fritas e cerveja. Saulo, celular em mãos,
pesquisou na internet e constatou ser verdadeiro o comentário sobre a demissão
de Suzana.
Vãs tentativas de contato com ela. Dezenas de
ligações resultavam na insuportável mensagem com voz de robô. Resolveu procurar
Fábio, na cafeteria do primeiro café saboreado com Suzana.
— Saulo, você é muito filho da puta!
Essa foi a primeira frase de Fábio dirigida a
Saulo. A ela seguiram-se outras sinônimas. Todas acolhidas pelo ouvinte a quem
se dirigiam. Ele nutria esperanças de obter determinada e ansiada informação ao
final.
— Ela viajou há alguns dias. Tentativa de
espairecer, pôr a mente e o coração em ordem. Minha amiga estava um farrapo.
Acredite, você é mesmo um merda!
— Fábio, tudo o que me disse, eu mereço. Agora,
conte-me, pelo amor de deus, onde ela está. Vou buscar essa mulher e pedir
perdão de joelhos por minha sandice, onde quer que ela esteja.
— Só vou lhe revelar o paradeiro de Suzana, por
saber que ela está mesmo muito mal. Acredito em seu arrependimento, seu
canalha, mas torço para vocês se acertarem. Café com leite é uma de minhas
bebidas prediletas. Além do mais, vocês formam um belo par. Detalhe, ela
simboliza muito bem um café da melhor qualidade! Já você...
— Dois últimos pedidos – disse Saulo: por favor,
sugira a ela, ir a esse lugar, nesse dia e horário, mas não lhe conte de minha
intenção. Temo a reação dela, ao saber.
Rápido como quem furta, Saulo organizou seus
afazeres na ONG, passou o bastão aos dois amigos de labuta e os comunicou que
precisaria se afastar por algum tempo.
Dois dias depois, ele caminhava incógnito
próximo a um conjunto comercial localizado no Guará 2, uma das chamadas
“cidades satélites” de Brasília, no dia e horário informados na combinação com
Fábio, para o reencontro dele com Suzana.
O coração de Saulo retumbava de ansiedade, como
nos primeiros encontros com ela. A cafeteria Crioula Café é bem pequena, mas
simpática. Ele a conheceu fazia dois anos, quando viajou a Brasília na busca de
parcerias a um dos projetos da ONG, e guardava significativa harmonia com os
ideais que defendia: a proprietária descendia de quilombolas e superara
diversas barreiras para se tornar microempresária.
Tarde movimentada naquele sábado. Saulo elevou o
pensamento aos deuses do café e lhes pediu ajuda na missão de resgatar seu
grande amor.
Dissimulado, passou em frente à cafeteria uma
vez, duas, três... Nada de Suzana aparecer. Questionava-se: “Fábio terá dado
com a língua nos dentes?”. Na sequência, ele mesmo respondia: “Mulheres quase
nunca respeitam horário. Ainda mais o horário de um encontro não marcado”.
Eis que, de repente, não mais que de repente,
Saulo a avista: “coisa mais linda, mais cheia de graça...”. Lembrou-se do dia
do esbarrão, quando ela própria lhe confessou a mania de caminhar sem prestar a
devida atenção ao redor.
Hesitação. Pernas a tremer, suor a brotar nas
têmporas, Saulo esteve a um triz de desistir, por medo da reação de Suzana, ao
vê-lo.
Sorte grande. Uma mesa vagou e Suzana se
encaminhou para ocupá-la. Era agora ou nunca.
— Poderia dividir esta mesa comigo? Preferi uma
abordagem menos traumática, sem trombadas. Garanto a excelência dos cafés
daqui, e é minha vez de lhe pagar um.
Quantos sentimentos, no encontro dos olhares.
Silêncio com jeitão de eternidade, até que Suzana assentiu. Saulo aproveitou a
deixa:
— Antes de você me dirigir quaisquer ofensas,
sei merecê-las. Fábio já despejou imensa carga delas em meus ouvidos. Foi o
preço a pagar para saber onde a senhorita se encontrava.
Discreto meio sorriso de Suzana, já conhecido
por Saulo, de outra época, expressava tudo, sem externar quaisquer palavras. A
deixa para ele pedir duas matulas e dois sucos de cajá com rapadura, servidos
no local.
O crepúsculo iniciava a transição da tarde à
noite. Vencida a fome e restabelecida a paz, como saideira, pediram dois
expressos. O café, segundo a proprietária da cafeteria, teria vindo das
Montanhas da Mantiqueira, da cidade de Baependi, em Minas Gerais.
— Casa comigo? – Saulo não queria mais viver
longe de Suzana um só dia.
Ela não respondeu de imediato. De novo, junto e
misturado, o casal café com leite partiu para saciar distinto apetite. Outra
fome os motivava com ganas de crocodilo, a espreitar gnus sedentos às margens
dos rios africanos. Bela lua os acompanhava lá do céu. Seria, certamente, uma
noite de torra intensa, com notas de saudade e muito desejo acumulado.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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