Fidelidade
de Vicente de Melo
Na véspera de Natal, após mais um
dia cansativo de trabalho, Moacir chegou em casa. Deixou as compras de lado. Um peru, um panettone,
sacos de nozes e duas garrafas de vinho. Sobre a mesa de centro, avistou o
papel dobrado debaixo do jarro com algumas flores murchas. Pegou o bilhete. Sentou-se no sofá,
deixando o cachorro subir em seu colo. Com as mãos trêmulas, leu o bilhete.
Ficou lívido. Um suor frio escorreu pelo seu rosto cansado. Dirigiu-se ao
quarto, ainda sem acreditar, seguido pelo cachorro. Abriu o guarda-roupa
simplesmente para confirmar o óbvio. Encontrou apenas um vestido velho
pendurado no cabide de madeira, um vidro de perfume vazio jazendo na gaveta e
algumas bolinhas de naftalina. Apertou o papel entre os dedos. Derramou algumas
lágrimas discretas. “Meu Deus, por quê?”.
Triste, com os olhos marejados,
Moacir fechou o guarda-roupa. Alisou a cabeça do cachorro que parecia sentir a
tristeza de seu dono. Seguiu para o banheiro. Ainda meio atordoado, entrou debaixo do chuveiro. Mijou com deleite. Tomou um belo banho para
relaxar. Se enxugou em frente ao espelho, observando as olheiras
profundas. Na pia de mármore, com a
torneira ainda respingando, encontrou uma escova de dente com resquícios de
espuma ressequida.
Olhou-a fixamente. Num
rompante, jogou o objeto na lixeira. Porém, em nenhum momento demonstrou raiva,
ódio ou rancor. Apenas decepção e tristeza. “Ingrata!”.
Com a cabeça latejando, usando um
roupão vermelho, Moacir voltou para a sala. Ligou a televisão, onde a telinha exibia mais um
show natalino de Roberto Carlos repetindo o meloso refrão “Jesus Cristo, Jesus
Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui...!”. Sem prestar atenção na cantoria
enfadonha do “rei”, desdobrou, leu e releu várias vezes o bilhete. Deixou a
folha de papel, agora meio amarrotada, sobre a mesinha do telefone. Olhou para
o cachorro ao seu lado como um fiel escudeiro. Acariciou a sua cabeça. Seguiu para o quarto. O cachorro seguiu
atrás. Deitou-se na cama fria, de lençóis macios, ao lado do travesseiro vazio.
Com a cabeça sobre as mãos, de barriga para cima, mirando o teto, tentou
imaginar o motivo de Cristina, sua esposa, abandoná-lo. Não encontrou nenhuma
explicação plausível, convincente. Afinal de contas, viviam muito bem, em
harmonia, sem nenhuma briga, sem nenhum conflito, sem nenhuma crise de ciúmes,
numa relação desprovida de conturbações. Para completar, cumprindo o prometido,
parou de beber todos os dias.
Jurou beber somente em datas comemorativas, festivas e de ocasiões especiais.
Hoje, véspera de Natal, seria um desses dias. Sim, hoje estavam completando
exatamente cinco anos do primeiro encontro. Além do mais, tinham tudo, na
medida do possível. Uma casa, roupas boas, sapatos de marca e dois automóveis
novos na garagem. E as viagens? Viajavam pelo menos duas vezes ao ano. Então,
de que mais precisavam? A única coisa
que ainda faltava ao casal, era a presença de um filho para alegrar a casa. Mas já estavam
planejando isso também. No entanto, para compensar, enquanto o bebê não
chegava, contavam com a companhia do pequeno cão mestiço, batizado de Apolo em
homenagem ao deus do Sol da
mitologia greco-romana.
Meia-noite. Lá fora, suscitando um barulho
ensurdecedor, os fogos de artifício começaram a pipocar por todos os lados.
Assustando-se, saindo de seus pensamentos absortos, Moacir se levantou da cama.
Dirigiu-se para a sala novamente. Aconchegou Apolo em seu colo, também assustado, acariciando-o.
Com os olhos marejados, mirou a telinha agora sem o rei Roberto Carlos. Em seu
lugar, sobre sacada da luxuosa Basílica de São Pedro, no Estado do Vaticano, o
Papa, como todas as noites de Natal, passava as repetitivas mensagens de paz,
amor e solidariedade para o mundo. Falava, com um esgar de serenidade, em
várias línguas diferentes. Enquanto isso, na gelidez da imponente Praça de São
Pedro, totalmente lotada, os fiéis choravam emocionados, rezavam e faziam
promessas.
Ouvindo o Papa falar na televisão,
mesmo sem prestar atenção, Moacir chorou. Menos pela emoção do discurso prolixo do “Santo
Padre”, é óbvio, do que pela falta de sua companheira ali, naquele momento. No mesmo instante,
lembrou-se da primeira noite de véspera de Natal junto com Cristina. Na ampla sala, sentados
no sofá, no início de mãos dadas, tímidos, os dois beberam vinho. Exatamente à
meia-noite, excitados pela embriaguez, bem mais à vontade, ambos sorriram,
contaram piadas, trocaram carinhos, carícias e beijos ardentes. No final, tudo
aconteceu sob a cumplicidade do Papa, não esse de agora, discursando para o
mundo na telinha da TV. Fora, literalmente, uma noite maravilhosa. A primeira de muitas
noites ulteriores.
Os fogos cessaram na madrugada de
uma chuva fina. As lâmpadas se apagaram. Vencido pela lassidão, pela decepção e pela
tristeza, Moacir dormiu com o cachorro Apolo aninhado aos seus pés. No outro
dia, acordou assustado. Procurou
em vão pela companheira ao seu lado. Tentou agir como se Cristina tivesse apenas viajado e que, em
breve, voltaria. Andou de um lado para o outro procurando alguma coisa. Mas procurando o quê? A
pasta de dente, o coador de café, a toalha de rosto ou mesmo o vestido
preferido da esposa? Literalmente, tudo parecia perdido dentro de casa. Sentou-se. Levantou-se. Colocou ração na
vasilha de Apolo. O cachorro comeu devagar, compartilhando a tristeza visceral
do dono.
Totalmente sozinho, sem outra opção,
após certa resistência em aceitar os fatos, Moacir saiu de casa. Caminhou pela rua
praticamente deserta, com Apolo ao seu encalce. Dirigiu-se à padaria da esquina para fazer o
desjejum. O
cachorro ficou esperando do lado de fora. Cumprimentou o velho português com um bom-dia
amargo. Acenou com
a cabeça para alguns fregueses sentados às mesas. Pediu um café. Bebeu devagar, olhando os filetes de fumaça
saindo da xícara fumegante.
Pagou a conta. Andou
pela praça. Olhou as árvores, as folhas e os bancos molhados. Contemplou
algumas vitrines das lojas fechadas. Voltou para casa com Apolo.
Ao chegar em casa, Moacir ligou a
televisão. Não
encontrou nenhum programa atrativo. Somente mortes, atentados, brigas e guerras santas. “Porra,
que mundo louco, ninguém respeita mais nada!”. Desligou a TV. Dirigiu-se à
estante. Pegou o romance “Cacau”, de Jorge Amado. Sempre fora fã do escritor
baiano, cujas histórias amiúde enfatizavam as injustiças sociais, os preconceitos,
as perseguições, as ameaças e as mortes protagonizadas por uma sociedade
burguesa, vil, hipócrita e conservadora, sedenta de riqueza e poder. Enquanto
lia, sentado no sofá, Apolo mordiscava os pés de seu dono com extrema alegria.
Após ler alguns capítulos, Moacir
fechou o livro. Excomungou a humanidade. Gritou para si mesmo “porra, como o
mundo seria bem melhor sem as desigualdades socais, sem as ambições e sem as
hipocrisias!”. Bateu forte na mesa. Apolo,
ao seu lado, levantou-se assustado com a reação súbita de seu dono.
Ao perceber o susto de Apolo, Moacir
exibiu um sorriso pálido. A seguir, guardou o livro. Olhou mais uma vez para o
vazio da casa. Olhou para o cachorro trançando as suas pernas, balançando o
rabo. Sentiu saudade, olhando para a foto de Cristina na moldura. Seus olhos
marejaram. No mesmo instante, sentiu fome. Afinal, não comera nada desde a
noite passada. Na cozinha, abriu a geladeira. Preparou um sanduíche de queijo
com presunto. Bebeu um pouco de leite. A seguir, engoliu alguns comprimidos.
Entorpecido, dormiu à tarde toda. Acordou com um filete de luz avermelhada do
crepúsculo, invadindo o quarto, lambendo seu rosto. Tomou uma ducha quente.
Assistiu o noticiário na televisão. Decidiu esquecer tudo. Afinal, a vida segue
sem pedir licença. Beijou Apolo ainda deitado sobre a cama. Ensaiou outro
sorriso pálido para o seu único e fiel companheiro do momento.
À noite, após mais de dois anos de
abstinência, Moacir decidiu beber. Até porque, agora não precisava dar mais
satisfação a ninguém. Saiu no portão, deixando a casa para trás. Andou até o
bar da esquina. Às vezes tinha impressão de ver as pessoas o vigiando pelas
janelas semi abertas, rindo da sua situação de abandonado pela esposa.
Suspirou, falando para si mesmo, “meu Deus, quando o mundo vai se livrar da
hipocrisia?”. Ciente de não saber a resposta, em passos firmes, cabeça erguida,
continuou a andar rumo à noite de embriaguez. “Foda-se todo mundo!”. Olhou para
trás, satisfeito em ver Apolo o seguindo em passos miúdos.
Fazia um frio cortante na noite
gélida da cidade. No bar ainda vazio, totalmente carente de um ombro amigo,
Moacir começou a beber acompanhado apenas do cachorro Apolo, da tristeza e da
solidão. Acendeu um cigarro atrás do outro, pois fumava somente quando bebia.
Em poucas horas o cinzeiro ficou abarrotado de guimbas. Ao final de cada dose
de uísque, retirava o papel do bolso do paletó. Lia, relia e cheirava o bilhete
de despedida, escrito com uma caligrafia perfeita, sentindo o perfume de
Cristina. Nem mesmo prestou atenção no bar lotando pouco a pouco, nas conversas
monótonas e nas discussões inúteis sobre negócios, política e futebol. Muito
menos no dono do bar ditando ordens para um rapaz imberbe usando a roupa preta,
de gravata borboleta, típica de quase todos os garçons. Olhou mais uma vez para
Apolo deitado ao seu lado, quase debaixo da mesa.
Um mês se passou, após o abandono
inexplicável da esposa. Um mês de espera em vão. Um mês de tristeza, de solidão
e muito choro. Como todos os dias, Moacir caminhou até o bar acompanhado do
cachorro Apolo. Sentou-se à mesa. Bebeu várias doses de uísque. Retirou o
bilhete do bolso do paletó, agora totalmente amarrotado pelo manuseio.
Cheirou-o avidamente. Leu e releu várias vezes a fatídica mensagem de despedida
de Cristina. “Meu Deus, por quê?”.
De madrugada, com a cidade quase
toda adormecida, em passos trôpegos de ébrio, Moacir saiu do bar. A luz pálida
da lua refletiu sobre seu rosto de barba por fazer. Carregando o paletó no ombro,
caminhou pela rua com dificuldade. No ímpeto, extravasando mais uma vez a
tristeza, chutou uma lata de lixo encostada num poste. Um odor fétido,
putrefato, exalou-se no ar. Mais à frente, debaixo da marquise de uma loja,
parou para mijar. Com os olhos fechados de deleite, ouviu o barulho do líquido
quente, borbulhante, batendo contra a parede, descendo pelas rachaduras da
calçada, formando desenhos ininteligíveis no asfalto. Uma viatura de polícia
passou devagar, mas não parou. Os policiais, sorrindo, ignoraram mais um bêbado
noctívago. Será que compreenderam a sua dor do abandono? Logo atrás, vigiando
os seus passos, o fiel Apolo acompanhou atentamente as estripulias do seu dono.
Moacir empurrou portão destrancado. Na porta da casa,
atrapalhado pela embriaguez, a chave se encaixou na fechadura com dificuldade.
Finalmente, após conseguir abri-la com muito custo, entrou no ambiente de
silêncio fúnebre. Pensou em voltar para a rua. Desistiu. Acendeu as lâmpadas.
Soltou um palavrão de puro desespero. Socou a mesa, quase derrubando um copo
cheio de água. O cachorro Apolo, meio assustado com a reação inesperada de seu
dono, colocando o rabo entre as pernas, ganindo baixinho, deitou-se no sofá.
No banheiro, Moacir sentiu engulhos. Ajoelhado diante do
vaso sanitário, vomitou apenas um líquido branco, viscoso. Até porque, não
comera nada durante todo o dia. Levantou-se. Sentiu uma vertigem súbita. Escorou-se na pia
de mármore. Lavou o
rosto. Olhou-se no espelho.
Enxergou apenas a figura triste, caricata, de um homem lívido, com uma
palidez de morte, olheiras profundas, cabelos desgrenhados e barba por fazer.
Sentiu-se um pária, um verdadeiro mendigo. “O que aconteceu comigo meu Deus?”.
Moacir saiu do banheiro assustado
com a sua aparência. Sentou-se no sofá. Mais uma vez, como um ato mecânico, retirou o
bilhete amarrotado de dentro do bolso do paletó sujo, quase puído. Cheirou, leu
e releu várias vezes a mensagem de despedida, como se fora o primeiro dia. As
lágrimas brotaram de seus olhos miúdos, cansados pelo sofrimento, ornados por
pés de galinha. “Porra, como eu amava aquela mulher!”.
Após acariciar Apolo, levando o
bilhete consigo, Moacir dirigiu-se ao quarto. Abriu a janela. Engoliu seis
comprimidos de calmante. Na cama,
deitado em forma de concha, olhou com tristeza para o lado vazio do travesseiro
intacto. Fechou os olhos.
Dormiu profundamente. Sonhou com anjos gorduchos, corados, atuando como
cupidos no reino do céu. Sonhou com cachorros alados. Sonhou com Cristina nua à
sua frente.
Sob os primeiros raios solares
lambendo seu rosto, Moacir acordou assustado. Ao tentar soerguer o corpo
banhado de suor, sentiu uma dor lancinante no peito. A cabeça, com as têmporas
latejando, parecia cravada de espinhos. Numa palidez de vela, com as mãos
trêmulas, recostou-se no travesseiro. Sentiu também uma febre repentina
consumindo o seu corpo fragilizado pelo álcool, pela falta de alimentação e
pela tristeza mórbida. Pestanejou. Fechou os olhos devagar. Ao seu lado, o bilhete amarrotado
jazia sobre o outro travesseiro. Aos seus pés, sentindo seu último estertor, o
cachorro Apolo gania baixinho clamando pelo dono.
Dois dias após a morte de seu dono, numa noite chuvosa de Brasília, na solidão inóspita da casa abandonada, Apolo, o cachorro vira-lata, sucumbiu de tristeza. Para muitos, sem dúvida alguma, o cãozinho protagonizou uma das mais belas lições de fidelidade literal.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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