O Peste, a Mandinga e a Aroeira
de Marcos Norabele
Embaixo dos cobertores, Chiquinho considerava que ali era o melhor lugar para se ficar numa manhã fria de junho. O problema era que precisava ir para a escola. E tinha que levantar bem cedo porque do sítio até à cidade era uma boa caminhada e no frio! Da cozinha ouviu a mãe gritar: “Chiquinho. Levante menino! Não me faça ir aí de novo! O garoto levantou bocejando e já foi colocando a roupa. Depois foi lavar o rosto e em seguida tomar o café. Ao fim de tudo isso se despediu:
- Tchau, mãe!
- Vai com Deus, Chico e cuidado com o Peste! – advertiu.
Foi. O frio estava castigando. Torcia para o Peste não demorar. O Peste era seu primo de um sítio vizinho. Todo dia iam e voltavam juntos. O nome do moleque era Aníbal, mas era conhecido pelo apelido que ganhara por sua extensa folha corrida de malvadezas, que constava de coisas pequenas até grandes feitos. Chiquinho achava bom ser amigo do Peste porque nem os moleques maiores se metiam com ele como faziam com outros pequenos. Por causa dele ninguém se esquecia da festa de aniversário de Quinzinho, seu outro primo. Por razão que não vem ao caso, os dois se desentenderam e Quinzinho não convidou Aníbal para a festa. O Peste não se conformou com a desfeita, e quando cantavam parabéns ele atirou no meio dos convidados uma cachopa de abelhas, que ninguém sabe até hoje com que artimanha ele conseguiu pegar sem ser todo picado. Na festa foi um alvoroço tremendo com gente correndo e trombando e levando ferroada. No outro dia tinha gente com orelha, nariz e beiço inchado. Coisa estranha de se ver foi dona Zezinha, que era zarolha, com inchaço na pálpebra. A cara de Quinzinho ficou tal qual lua cheia. Foi prometida mais de uma surra para o Peste, mas ele ficou foi alongado. Só quem deu conta de aplicar um corretivo no Peste foi o pai dele. Soube-se depois que o feito foi com uma cinta de couro curtido que o pai guardava para esses fins. O Peste, não reclamou, não gritou e nem chorou. Aguentou calado. Se arrependeu? Sim. De ter estragado a cachopa das abelhas e deixar as coitadas sem casa.
Outro feito do Peste que ninguém esquece foi o espantalho na porteira. Era sábado o dia que ele se pôs a construir o trombolho. Usou camisa e chapéu velho e para a cabeça o crânio seco de um bicho morto. Fixou a obra da arte numa vara de bambu e já de noitinha, saiu escondido. Amarrou cordas no espantalho que deixou no chão e em seguida amarrou na porteira fechada de modo que quando alguém abrisse levantaria o espantalho. Testou e ficou do seu gosto. Se escondeu e ficou olhando. Sábado era dia de baile nas redondezas. Foi um susto atrás do outro e por um tempo só se falava da assombração. Nico que de madrugada voltava do baile, desceu do cavalo e foi abrir a porteira. No que abriu ouviu o rangido e o espantalho ficou em pé. Nico deixou o cavalo e correu desembestado e só parou quando chegou a sua casa. Se comenta que sua roupa de baixo ficou imprestável para uso futuro.
O Peste não demorou naquela manhã e vinha trazendo um embrulho que logo foi notado por Chiquinho.
- Que é isso aí, Peste? Tá de arte?
- Ochê, e não é hoje que tinha que levar doce na escola para a festinha?
Ao ouvir isso, Chiquinho sentiu uma torcida no estômago:
- É mesmo! Me esqueci... E agora?
- Ué! Fala que esqueceu e pronto! Que tem?
- Não. Todo mundo vai levar e só eu que não. Tenho vergonha.
- Então não vai. Volta pra sua casa!
- E minha mãe. Me passa o coro se eu falto sem razão.
- Eita! Fica zanzando por aqui. Depois voltamos juntos. Pronto.
- Se eu não aparecer na escola, Quinzinho vai perceber e depois vai bater em casa para saber o que houve. Vai ser pior.
Nesse momento Chiquinho notou o brilho nos olhos do Peste, seu rosto ganhou uma expressão maliciosa. Chico já tinha visto aquilo, sempre precedia uma malvadeza.
- Já sei como resolver seu problema, Chico. Vem! – disse adentrando pro mato.
- Você tá com arte, Peste. Vi sua cara! Mãe falou pra ter cuidado com suas artes.
- Vem logo, Chico. Garanto. Quando fiz algo contigo? Nunca!
E Chico foi, mas de olho no Peste, desconfiado das intenções dele. Andaram um bom tanto no meio do mato até que o Peste mostrou uma árvore e bem debaixo da copa dela um tipo de oferenda: um litro de cachaça, um pacote de doces, fitas, flores e restos de velas coloridas.
- Vi isso ontem. Pega o doce e vamos, Chico.
- Mas isso é mandinga, Peste! Não pode mexer com isso. Dá azar.
- Que nada! Pega logo. Tem até formiga zanzando. Ou você acha que espírito come doce?
- Melhor não.
- Pega de uma vez! Num vim até aqui à toa!
Chico meio hesitante pegou o doce. Não queria deixar o Peste bravo.
- Vamos daqui, Chico!
- Sei não, Peste. Alguém colocou essas coisas aí. Não é certo tirar.
- Deixa de ser tonto!
Falando isso o Peste partiu pra cima da oferenda. O litro de cachaça tomou uma bicuda que foi virar caquinhos uns dez metros de distância. O mesmo destino teve as outras coisas. Por fim, mandou urina no formigueiro.
- Agora vamos, e vamos logo, não quero atrasar, Chico. Justo hoje que tem festa.
E assim foram os dois, meio andando, meio correndo, mas chegaram sem atraso. Foram direto para a cozinha da escola para deixar os doces com a merendeira, dona Carlotinha, cujo diminutivo do nome era apenas devido à baixa estatura porque era avantajada nas adjacências, por isso era secretamente conhecida pelos alunos como dona Cartolinha. Era de pele negra e usava um lenço rosa na cabeça. Se dizia médium não desenvolvida. Quando ela pegou o doce de Chiquinho estremeceu, depois disse:
- Senti um arrepio estranho agora, meninos.
Os moleques apenas trocaram olhares e antes que Chico falasse algo indevido o Peste o arrastou para a aula. Tudo seguiu normal. A festinha ia ser no intervalo e um grupo de alunos ia dançar Quadrilha. Estavam todos no pátio e os que iam dançar já organizados. Tia Mirtes, a professora, ligou o aparelho de som da escola e o disco começou tocar uma música de sanfona para ir animando a turma. Nesse momento aconteceu a primeira coisa estranha: Dona Carlotinha veio da cozinha, sem lenço e com os cabelos esvoaçados, seus olhos reviravam e ela dançava uma dança esquisita se arremetendo pra frente e para trás balançando as adjacências avantajadas. Todo mundo ficou pasmo com aquilo. Ela então começou a girar o corpo para um lado e depois para o outro.
Chiquinho que estava perto do Peste falou pra ele:
- Baixou um encosto nela. Foi do doce da mandinga, Peste. Será que é a tal de Pomba Gira?
- Girando tá mesmo! Se é pomba é das grandes! - e riu.
A mulher de repente despencou. No chão recobrou a consciência e pondo a mão no rosto se levantou e correu para a cozinha. Tia Mirtes foi atrás. E pouco depois voltaram as duas num berreiro e estapeando o corpo
- Formigas! Formigas!
Aquilo foi um mistério. Em minutos toda escola estava tomada por formigas. Não só na cozinha onde os doces estavam, mas por todo lado, no teto, no chão e até no banheiro. Nem festinha teve mais. Os alunos foram dispensados e deviam voltar só na outra semana, pois iam ter que dedetizar todo o prédio para acabar com as danadas.
Chiquinho e o Peste voltavam juntos.
- Tenho certeza que tudo isso foi por causa da mandinga. As formigas foram atrás do doce que eu peguei. – falou Chiquinho. – Nunca mais fazemos isso, por favor, Peste. Nunca mais me faz mexer em mandinga.
- Tá Bom, Chico. Perdemos os doces. Mas pelo menos não vamos ter mais aula essa semana.
No meio da tarde o Peste apareceu na casa de Chico. Viu dona Chica no quintal
- Oi Tia! Bença. O Chiquinho taí?
- Deus te abençoe! Chiquinho, tá é de cama. Entra lá, Peste!
- Oche. Mas tava bom inda agora. Licença, tia!
O Peste foi direto ao quarto. Chiquinho estava deitado, só de cueca e com o corpo manchado de vermelho. Peste parou na porta assustado.
- Que é isso Chico? Sarampo, catapora...? Vou ficar de longe que não quero pegar isso!
- Pega nada! A árvore que tava a mandinga era aroeira brava, me lascou todo.
- E tá doendo?
- Arde como fogo e coça que é o diabo!
Os olhos de peste ficaram úmidos.
- Eu que te fiz pegar os doces. A culpa é minha disso aí... – olhos minando água.
- É... mas não era sua intenção. Ou tu sabia que era aroeira?
- Não, Chico! Juro! Mas se era aroeira, por que em mim não fez nada? Eu também fiquei embaixo dela. – disse o moleque esfregando as mãos nos olhos. – Desculpa Chico. Quando melhorar vamos pescar. Volto amanhã pra te ver. Melhora! Tchau. – olhos úmidos de novo.
Depois que o Peste foi embora Chiquinho ainda matutava a questão da aroeira, e por fim perguntou para sua mão:
- Oh mãe, o Peste estava comigo embaixo da aroeira e por que com ele não teve nada? Nem uma pinta vermelha.
Dona Chica riu e foi muito observada pelo filho. Depois respondeu.
- Ocê acha que a aroeira ia se meter a besta com o coisa ruim do Peste. Ela é aroeira, mas não é boba.
Como a aroeira pegou fogo e virou cinza ninguém sabe até hoje... Mas há suspeitas!
Gisela Lopes Peçanha
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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