Zumbis, a Morte e dois Canos Serrados
de David Leite
A noite caiu como uma cortina pesada, e eu acordei intranquilo. Não era comum o silêncio naquele bairro, ainda mais ao cair da noite. Era um bairro vivo e barulhento, como a maioria dos de São Paulo, mas algo havia acontecido enquanto dormia, tentando descansar para o próximo plantão. Liguei a TV e estava estranhamente sem sinal. Olho pela janela. Ninguém na rua, exceto um ou outro vulto indistinguível na esquina. Olhei para o relógio e em pouco tempo deveria entrar no trabalho, então me arrumei o mais rapidamente que pude e desci as escadas em direção à rua.
Na rua, podia ouvir o som de sirenes distantes. Todos os comércios estavam fechados, e nenhum carro na rua e um blecaute parecia ter ocorrido em todos os quarteirões, formando uma extraordinária visão da cidade que até então jamais se supunha possível. No escuro, apenas a lua e uma incidental luz alaranjada vindo de algum lugar. Desisti de esperar por algum táxi e decidi correr no escuro até o ponto de ônibus mais próximo. Quando atravesso a rua, ao final dela me deparo com um aglomerado de vultos, possivelmente aguardando o ônibus como eu. Chego ofegante até mais próximo, quando a luz alaranjada se torna mais forte ilumina pouco mais as sombrias figuras, causando-me estranheza sobre àqueles. Intuitivamente, paro alguns metros distantes do grupo e então BLAM!, um estouro elétrico de um transformador no poste próximo gera um clarão que mostra aquelas... pessoas...
Não eram pessoas. Ou não mais eram. Cobertas de pústulas e feridas, com a pele arroxeada dos asfixiados... E o olhar... estacado e sanguinolento. O meio segundo de vislumbre daquilo foi o suficiente para me aterrorizar. Seguido do estouro, o murmúrio compartilhado por eles tornou-se mais alto, e as figuras começaram a se mover... Na minha direção.
Comecei a correr prontamente de volta à rua de minha casa. Para meu horror, as criaturas também o fizeram. Grunhindo animalescamente, os seres horrendos se engalfinhavam em minha direção como predadores. Alguns tropeçam nos outros, atrasando seu avanço. Mas isso não faria diferença. A rua de minha casa era sem saída. Desesperei-me ao lembrar isso apenas ao me deparar com o prédio no fim da avenida. Virei-me contra meus perseguidores, tentando lembrar quais preces deveria resgatar àquele momento e o som de pneus derrapando surge da rua detrás, junto a uma caminhonete negra. Uma parcela dos monstros é atropelada pelo veículo, que para em minha frente. De dentro dele, uma mulher salta e, com uma espingarda de cano encurtado, começa a soltar sonoros disparos contra as criaturas restantes.
– Vamos. Entre. Eles não vão ficar no chão muito tempo. – A mulher se dirigiu a mim.
Sem entender o que acontecia, entro no veículo exasperado. A mulher entrou logo em seguida e o religou, acelerando.
Sob a luz do painel, pude vê-la melhor. Uma mulher pálida, de cabelos negros e desgrenhados e olhos esfumaçados. Belíssima, vestia apenas uma camiseta escura e calças jeans rasgadas.
– O que... O que era aquilo? – Hesitando, pergunto.
– Você está bem desinformado, não? – Ela responde, sem virar o rosto da direção. – São desmortos. Gente que não encontrou a morte ainda.
– Como assim? Desmortos? Gente que não encontrou a morte?
– Bom, me encontraram agora, mas não adianta muito. Eles continuam “vivos”.
Estranho a forma que ela falou, e tento processar a situação.
– Encontraram você? Você seria a morte, por acaso? – ironizo.
– Sim. A própria. – Ela responde, com seriedade na voz.
Tento imaginar o que aquela roqueira saída de algum clube queria dizer.
– Você é a morte? E você não deveria estar, sei lá, colhendo almas?
– Sim, sabichão. Devia. Mas você viu aquilo? Você sabe o que está acontecendo? Bem, parece que eu perdi o emprego.
Tentei entender o que ela queria dizer com tudo aquilo. Enquanto acelerava o carro, as ruas escuras estavam tomadas das figuras vacilantes de antes. Um intenso incêndio numa das avenidas respondia a questão da luz laranja que via. A Morte atropelava as figuras que se aproximavam, tentando dar-lhes cabo.
– E o que você pretende fazer? Você sabe o que está causando isso?
– É claro que não. – Ela responde – Estou apenas tentando salvar alguns desses malditos. Tem um grupo que resgatei no hospital das clínicas. Você é o último dessa cidade, aparentemente.
– No Hospital das Clínicas?? É onde trabalho. – Respondi – Mas, se você é mesmo a morte, por que simplesmente não nos deixa morrer?
– Eu preciso dos vivos. É a matéria-prima do meu trabalho, não? Esses daí não estão nem mortos, nem vivos. Quando eu descobrir quem está causando isso, eu vou dar um jeito.
Ainda tentava entender a situação, embora ela parecesse resistente a qualquer lógica. Um som surdo na traseira da caminhonete cortou meus pensamentos. Um dos desmortos havia caído ou pulado para lá. Com as mãos feridas e a mandíbula escorrendo, ele golpeia o vidro traseiro.
– Cuidado com o rosto.
Impassível, a mulher apontou a espingarda por sobre o ombro, sem olhar para trás. BLAM! Um estouro e o vidro estilhaça. Eu cobri minha face com a mão e, com o canto do olho, vejo a criatura ser arremessada para longe da traseira, caindo e rolando na avenida.
Chegamos ao hospital, saltamos da caminhonete e corremos para dentro. A mulher dispara mais algumas vezes contras as figuras que se amontoavam no portão. Dois, três disparos e elas caíiam uma sobre a outra, espalhando entranhas pelo ar como confete numa noite de carnaval. Duas criaturas se projetaram sobre nós, e a mulher a golpeia com a culatra da arma e com um sonoro soco com a outra mão, forte o suficiente para jogar o zumbi contra a parede. Uma força claramente desumana.
Liberando o caminho, entramos. Ela coloca um suporte de soro entre as barras da porta, trancando do lado de fora os insistentes seres.
– Eles devem estar no segundo andar. – Ela diz.
– Eles quem?
– Os outros que encontrei vivos. Vamos.
No andar de cima, na sala de administração, um pequeno grupo de pessoas aguardava apreensivamente. Exaustos e combalidos, mas apenas um deles estava ferido no chão.
– Estão todos bem? – Ela pergunta.
– Estamos. Mas Elon talvez não resista muito tempo – Uma das mulheres do grupo diz.
No chão, o homem delirava. Uma dolorosa marca de mordida em seu pescoço expelia sangue, mesmo com o curativo improvisado.
– Você é médico? Você disse que trabalhava aqui. – A morte se dirigia a mim.
– Não. Eu sou apenas do administrativo. Não sei o que fazer – Respondi, com um punhado de desespero na voz.
Começo a procurar nos gabinetes por utensílios e medicações, tentando imaginar o que fazer, valendo-me apenas da experiência que convivi.
– Ele morreu... – Escuto atrás de mim.
Ao me virar, o homem no chão estava inerte. A morte, então, aponta a espingarda para ele. Alguns momentos de tensão entre todos, mas o homem continua imóvel.
– Sim. Ele morreu. – A morte diz, com uma voz fria daqueles que já se acostumaram com a cena.
Elon. Aquele nome era incomum por ali. Por acaso me fez lembrar algo. Dirigi-me até os arquivos e retirei um deles.
– Qual o nome de cada um de vocês. – Uma ideia louca me surgiu.
As quatro pessoas do grupo dizem seus nomes. Eu vasculho a pasta e constato a coincidência.
– Vocês... Todos vocês. Eu fui doador de sangue. Vocês receberam meu sangue.
Todos se entreolham. A morte me olha com ainda mais surpresa.
– Talvez... Seu sangue possa combater isso. O que quer que seja.
– Sim. Talvez possamos fazer alguma coisa para curar essa gente.
Mas nossos planos foram bruscamente interrompidos pelo som da porta se estilhaçando. No andar debaixo, finalmente a barricada cedeu para as criaturas, e o som delas ecoava por todo o saguão. A morte retira alguns projéteis e recarrega a arma.
– Esse lugar tem outra saída? – Ela me pergunta
– Sim, tem outra saída no final desse corredor.
– Então, vamos...
Todos começamos a correr para fora da sala, mas o corredor já estava tomado. A Morte, na dianteira, começa a disparar contra as criaturas mais avançadas. Suas cabeças explodem e seus corpos são jogados um contra o outro. Mais duas criaturas se jogam sobre o grupo, e um chute violento dela joga-as para longe.
– Vão! – A Morte berra para o grupo atemorizado.
Eu e mais três deles avançamos em direção à saída. Uma das mulheres, no entanto, tropeça e cai perto da Morte, enquanto ela tentava o máximo possível barrar a massa de criaturas que dominava o corredor. Com disparos e golpes, os acelerados zumbis são jogados de lado, mas um deles, mesmo ao cair, se agarra e ataca a mulher que ficou para trás. Abrindo a mandíbula ferozmente, arranca um pedaço de seu pescoço, matando-a na hora.
A Morte não teve tempo de reagir, no entanto, uma perceptível mudança começou a acontecer à criatura. De repente, seu olhar feroz e animal se atenua, a criatura começa a esboçar alguma consciência, embora entorpecida. Sem entender o que estava fazendo ali, ela olha ao redor, para aquele bando grotesco e para a Morte em batalha, e, numa voz esganiçada, diz.
– O que está acontecendo?
A Morte, mesmo percebendo aquilo, dispara contra o antes zumbi, que cai no chão, morto de vez.
Ficamos atônitos no fim do corredor, ao lado da porta, observando a situação. Sem reação. Sem saber o que fazer para ajudar a morte e a companheira caída. A Morte, então, num esforço maior, joga todas as criaturas para longe, fazendo- as cair por um instante, enquanto corre em nossa direção.
– Venha... Vamos fugir daqui. – Gritei para ela.
– Sim... Estou indo...
As criaturas continuavam a se jogar sobre ela. Que com golpes impressionantes e disparos contra todas continuava as colocando para trás. Mais alguns metros e ela estaria conosco, nos preparando para abrir a porta.
– Temos que sair daqui. Temos que dar um jeito de usar nosso sangue para curá-los. – Disse para ela.
– Sim... Temos que fazer isso. – Ela responde, enquanto nos ajuda com a pesada porta dupla.
Repentinamente, entretanto, a Morte nos joga para trás com os braços abertos e atravessa a porta, batendo-a em nossas caras logo em seguida.
– O quê você está fazendo? – desesperei-me com sua atitude.
– Como você mesmo disse... Temos que usar seu sangue para curá-los. – Ela responde, através da porta.
A feroz onda de mortos-vivos avança sobre nós, com violência. Atrás da porta, ouço a Morte uma última vez.
– Parece que logo estarei de volta à ativa.
Apenas o som de carne se rasgando e então, silêncio.
CAL - Comissão de Autores Literários
Suspense Music
Intérprete:
Gabriel Andrade Produções
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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