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Antologia O Mal que nos Habita - 2x12 (Season Finale)

Conto de Yuki Ehms
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Sinopse: Pode imaginar minha surpresa quando recebi pelo correio uma chave com sangue e um envelope contendo uma carta. De quem era o sangue? O que tinha na carta? Por qual motivo a recebi?

2x12 - A Perfeição de um Morto
de Yuki Ehms


Pode imaginar minha surpresa quando recebi pelo correio uma chave com sangue e um envelope contendo uma carta? Que sangue era aquele? O que tinha na carta? Por qual motivo a recebi?

Há horrores que nos perseguem.

Estranhamente, a carta era de um antigo colega. 

Na primeira vez que o vi, éramos pequenos rapazes de São Joaquim. Foi no verão, então as neves não cobriam as janelas e o lindo sol me permitia ver sua casa. Seu pai era um político velho, gordo, bem-querido pela vizinhança, e sua mãe, uma loira, alta, professora de balé. 

Eu o via tendo aulas particulares de xadrez, esgrima e comendo pratos tão ricos que sequer sabia o nome. Na escola, nunca lhe faltara coisa alguma, estava sempre com um estojo caro e presentes. Invejava-o? Sim, mas é claro que sim. Queria acabar com sua reputação? Sim, claro que sim.

Mas ele era popular e esperto. Por isso mesmo podes imaginar minha surpresa ao ler o conteúdo da maldita carta que recebi. 

Respirei fundo. Rasguei o envelope, abri a carta: era uma lista de confissões. Só Deus poderia imaginar as terríveis coisas que aquilo descrevia!

Como eu disse, seu pai era um velho bem-querido pela vizinhança: um político. Por isso, dava muita importância pela forma com a qual seu filho levava sua imagem: quando as cortinas da casa fechavam, tudo mudava e é por isso que ninguém, inclusive eu, nunca havia visto nada além da mais pura perfeição.

E não me entenda mal, o garoto realmente era perfeito, mas como era podre! Como era podre!

Seu pai fechava as cortinas, amarrava-o na cadeira e fazia-o transcrever um livro por dia: se ele encontrasse uma única palavra errada, o garoto apanhava e reescrevia tudo de novo; sua mão tremia, e pingos de sangue ritmavam encostando no papel em que escrevia. Tic-tac-tic-tac, nenhum erro, não erre. Tic-tac-tic-tac; “Mas e se eu errar?” Pensa com sua mão tremendo de medo, e por tremer de medo, ele erra! E tem suas mãos esmagadas pelas gigantes de seu pai que a mete na mesa! Bate-lhe! Bate-lhe mil vezes! Agarra quase arrancando os fios de sua cabeça e choca seu nariz no livro que copiava; “Isto é um t ou d?”; “É um t! É um t!”; “Pois então... – esfrega a cabeça no caderno de cópia – escreva um t!”. E o ciclo recomeçava.

O garoto escrevia tudo certo, mas seu pai inventava que ele estava confundindo a letra t pela d e, então, fazia-o escrever tudo de novo..., só para então dizer, desta vez, que ele estava confundindo a letra d pela t. Sabe qual era o resultado disso? O garoto reescrevia de novo, e seu pai inventava novos erros, erros infinitos. Depois das 400 páginas reescritas na mesma noite pelas pequenas e pobres mãos de um garoto de 8 anos, o pai, expressamente irritado, pegou a cabeça do garoto e chocou-a com o caderno apoiado na mesa, quase quebrando seu nariz. “Esta é a palavra que você está errando”, ele disse sobre a palavra que já foi escrita com todas as letras do alfabeto. Então, o garoto em seu estado de confusão, reescreve as 100 páginas novamente e, desta vez, escreve a palavra como a fez em sua primeira escrita daquele texto. Desta vez, o pai não brigou: a palavra que, na primeira vez estava errada, agora estava certa.

Após os diversos palavrões dados e socos de mão aberta acertados, o garoto havia, magicamente, acertado? Então o político sai de perto de seu filho e vai para a cozinha. O jovem com os olhos abertos e em puro choque, mão tremendo, sua mente entupida de confusão, dúvida, raiva, medo, adrenalina e tristeza. Ele precisava gritar e chorar, mas não fazia: quando chorava, seu pai dava-lhe pancadas enquanto dizia que homens não choram; só que quanto mais se bate, mais se quer chorar e o faz, portanto, o que ocorria era que o garoto só parava de apanhar após a mão do pai sangrar como a dele de tanto bater. 

O garoto também não podia expressar nenhuma reação facial: se expressasse medo ou raiva, seu pai perguntava o motivo pelo qual tinha cara de imbecil, segurava-o pelos cabelos, jogava-o no chão e o espancava novamente. Portanto, seu distorcido estado mental era disfarçado por uma sobrenatural habilidade em exprimir a exata expressão facial que seu pai queria.

E então, em menos de 2 minutos, o político aparece de novo e, desta vez, não apresentava postura agressiva; muito pelo contrário, é extremamente relaxado, casual e feliz. Ele, com um largo sorriso, se aproxima do garoto e o dá um abraço, uns beijos na testa e diz que o ama.

Mas o horror não está nem pela metade!

E a mãe?

A mãe era como toda esposa de político velho: mais nova que o marido..., muito mais. Me lembro de algumas velhas contando que era prostituta. Pois bem, o que eu sei é que ela gostava de ser mãe.

Ser mãe a colocava numa posição maravilhosa: podia inventar qualquer coisa para transferir o ódio que tinha do irmão, do pai, dos antigos namorados, estupradores e marido sobre seu filho. Por isso, sempre que possível, ela projetava críticas que tinha dessas figuras sobre ele e, sem aviso prévio, empurrava o garoto com força, pegava-o pela cabeça e batia-a contra o chão enquanto gritava em seu ouvido chamando-o pelos odiados. A expressão da mãe era que iria mordê-lo. O movimento quente, vermelho e voraz de seu corpo ameaçava tanto que seu mero grito e gesto já surpreendia o garoto como se fossem socos, pois sempre representavam futuros socos.

Na maioria das vezes, ele ouvia críticas e gritos sem ter ninguém falando; ele explicou que, assim como se fica com uma música na cabeça ao ouvi-la repetidamente durante dias, os xingamentos também ficam na cabeça quando frequentemente repetidos. Ele chegou a contar, pela carta, que pensou seriamente em entrar para o exército pois a ideia da dureza da vida militar e suas humilhações eram a única coisa que o lembravam, mesmo que vagamente, de sua família: era familiar e reconfortante?

Isso explicava o motivo pelo qual ele sempre se destacou no colégio e conseguiu uma faculdade infinitamente melhor que a minha. Mas também me faz questionar se eu gostaria de ter alcançado seu mérito, dado o peso necessário para tal. Ele era o mais inteligente, o mais sociável, o mais forte, mas o mais deturbado. O garoto realmente era perfeito, mas como era podre!

No meio da carta, ele conta que, conforme crescia, seu corpo se tornava forte e as violações físicas de seus pais diminuíam: mas já não eram necessárias, ele tinha sofrido um processo tão escrúpulo, tão penetrante, tão hipnótico, tão triste, tão repugnante que havia chegado no mais perfeito estado de conduta que seus pais poderiam querer; não havia nada, NADA, que pudesse ser criticado, ele era perfeito. Apreendera mil coisas com os livros copiados e se gesticulava com os únicos trejeitos específicos e exatos que não lembravam sua mãe de um dos mil homens que odiava. Sua respiração era controlada, seu batimento cardíaco forçado, seus passos desconfortantes, seus olhos penetrantes, intensos e calmos.

Mas, é claro, teve um dia que sua mãe, irritada com coisas de sua vida, pegou o garoto e o machucou como costumava fazer; mas ele, em vez de chorar ou ficar calado, começou a rir. Riu descontroladamente num ataque insano. Seu músculo de nojo estava evidente em sua face, sua testa era expressivamente triste e seus olhos amargurados. Mas ele ria. Ria.

Sabe o que ocorreu? Ele viveu com extremo sucesso. Eu nunca entendi como ele conseguia fazer esse tipo de coisa: TODO MUNDO, TODO MUNDO tem alguém que não gosta. Mas ele não. Sempre popular. 

“Dos vários livros que transcrevi, boa parte era sobre política, psicologia e outras coisas do tipo”, e como o cenário era receptivo para testemunhar os fenômenos os quais são tratados nesses livros, ele rapidamente transformou sua mente no inferno.

Era muito assustador, lendo a carta, um castelo de areias se despedaçou mostrando o demônio. O que era aquilo? Quem era ele? E o mais importante: como ele conseguiu conviver com a sociedade por tanto tempo com tanto ódio? Como ele não explodia? Deus..., agora que penso sobre o passado, o seu jeito de andar..., de vestir..., de falar..., até os movimentos dos seus braços eram extremamente calmos, precisos, mínimos e certeiros! Ele pensava em tudo que fazia, não cometia um único deslize! As cores de suas roupas, as entonações de sua voz: era tudo, absolutamente tudo planejado.

Acho que a única coisa que o mantinha vivo —  como a carta me fez perceber —  era a possibilidade de encontrar o amor, pois, por mais que tenha vivido numa família sem amor, ele sempre ouvia falar daqueles relacionamentos amorosos.

Ele conta de seus namoros... Tive medo: seria o sangue da chave um sangue feminino?

O caso que mais chama atenção: Esther. Ele se sentia menos sozinho com ela: acompanhava seu nível intelectual. 

Eu deixei de ler a carta por uns meses. Realmente me traumatizei ao saber dessa parte de sua vida, como também pensei profundamente sobre a minha: nunca fui alguém inteligente, destacado: sou um desconhecido medíocre, mas pelo menos não sou insano como ele. Perfeito, mas podre!

Refleti, após descobrir tudo aquilo, se eu ainda queria ou não ver o final daquela carta e entender de onde veio o sangue da chave. Eu tinha medo do que ele poderia ter feito contra alguém. EU teria de carregar a verdade com minha consciência pelo resto de minha vida..., meu Deus, eu vivi ao lado daquele psicopata lunático! Ele era meu colega de classe, meu vizinho e poderia ter feito algo comigo ou minha irmã! Deus...

Percebe? Eu precisava descobrir como a carta acabava para sanar minha consciência, ou pelo menos acalmá-la da dúvida; pois o peso da dúvida multiplicava o peso do fato como a preocupação inventa sofrimento ao futuro.

Então continuei lendo.

Eles tinham uma relação peculiar, principalmente quando estavam sós. Não era leve, era direto e conscientemente sensual, gestos claros e propositais. O provocava sem tocá-lo. E ele enlouquecia. “Vamos?”, “Não – ela respondia”. Ele acumulava as cargas emocionais desses momentos; estava obcecado, não conseguia pensar em outra coisa senão aquilo com ela. “Eu não vou, mas não me importarei se você quiser se satisfazer enquanto me observa”. 

Tratava-se de uma droga que o viciou, e a única que poderia fornecer essa droga era ela, sempre com uma promessa nunca feita, mas imaginada de maior satisfação futura. Ele conta que, nessa época, fez um teste de QI anual e deu um resultado abaixo de sua média de 150: o resultado foi 97. Aquilo dominava sua mente, fazia-o de imbecil.

Depois de um ano nesse estado lesado, Esther, no meio de suas conversas, contou casualmente e com a maior leveza que estava se relacionando com mais pessoas. Isso mexeu com ele: “todas essas pessoas? O que temos não significa nada para você? Você faz com os outros! Mas não comigo?”.

“Eu nunca te prometi nada”, retrucou Esther; “Sim, mas nossas conversas são tão profundas e nos conhecemos a tanto tempo! Você me ama!” disse ele; “Amo? – ela riu – amor não existe. Só existe carência e inveja”, disse com um sorriso captado em câmera lenta enquanto o sol se escondia atrás de sua cabeça.

Isso destruiu tudo: “Amor não existe”. Ele entendeu que os filósofos não conseguem definir o amor pois não existe, é uma fábula, uma invenção. Nunca um ser humano testemunhou o amor, no máximo fingiu amar.

Que dor! Ele tentava raciocinar, se concentrar, ser feliz... Mas estava viciado naquilo. Como foi repugnante para ele, mas como suas conversas e atos eram prazerosos: gigante era a tentação de voltar. Voltar a acender o cigarro, voltar a esquecer das preocupações com a bebida. Nada vencia o cicio do relacionamento: não havia vício maior.

As críticas de seus pais ecoavam pelas salas de sua mente. Nada mais o sustentava. “Amor não existe”.

Durante todos esses anos, algo o segurava para não sair por aí matando as pessoas; e esse algo deixou de existir. As colunas da alma foram destroçadas.

Nos tempos livres, quando não trabalhava, fazia merendas para os mendigos; merendas grandes e afortunadas, mas que não possuíam uma vitamina específica. Os sem-teto comiam felizmente e o agradeciam, mas morriam lentamente sem saber sobre o déficit de proteína; não havia prova do crime cometido.

No seu trabalho em hospital público, envenenava os velhos até a morte. Fazia partos falhos. Assediava mulheres na beira da morte. Apertava órgãos nas cirurgias.

“Eu amaldiçoo o mundo! E quero que cada um desses humanos sofra. Eu quero ser o luto da viúva, a doença do hospital, a fome dos pobres, o sangue dos inocentes. Eu quero dor”.

Deus! A carta estava quase acabando e ainda tinha a pergunta: por qual motivo a chave estava suja de sangue? Seria da Esther? Dos mendigos? E por que ele a enviou para mim? Por que ele a enviou para mim? Como ele escreveu nas últimas linhas:

“O motivo pelo qual há sangue na chave e nenhuma explicação é o mesmo pelo qual te tornei consciente de minha vida: morra por dentro! Morra! Morra como eu morri!”.

Conto escrito por
Yuki Ehms

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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