O Crime
de Ismael Gaião
As ruas estavam desertas, a noite fria e o céu sem estrelas. A cidade apresentava um aspecto estranho, desconcertante. O ar era como um manto de tristeza. Ramiro passeava cantarolando e nem observava que tudo estava diferente. Ainda era cedo, o relógio da igreja matriz marcava oito horas. Na igreja não havia missa, mesmo sendo um sábado. Todas as casas estavam fechadas. Portas velhas às escuras, nenhum sinal de vida. Só os postes tinham luzes acesas, enquanto as praças, apesar de possuírem pequenos postes, estavam na penumbra, com a maioria das lâmpadas quebradas.
Aos poucos, Ramiro foi percebendo que a cidade estava com aspecto melancólico, triste. Ele começou a contemplar aquela solidão. Percebeu que a vida é diversa, poderia até ser feita de mais momentos tristes do que de alegres. Começou a admirar aquele aspecto desértico, chegou a imaginar que a alegria só existe porque também existe a tristeza. Sem uma, a outra não existiria.
— Nossa vida é assim mesmo — pensou alto.
Divagando, não percebia que todas as casas, além de fechadas, estavam com suas luzes apagadas. Escutava o assovio do vento nas copas das árvores, o barulho das folhas e de pequenos frutos caindo. Não passava um carro, nem um pedestre, nem pequenos animais. Não havia, sequer, mariposas pairando na claridade das luzes dos postes. A tamanha solidão, em todas as ruas, começou a lhe preocupar. O pequeno cinema estava de portas cerradas. As praças estavam vazias. Até a delegacia estava fechada.
— Alguma coisa teria acontecido para todos irem dormir tão cedo — pensou Ramiro. — Não é possível que todos tenham saído da cidade ao mesmo tempo — murmurou.
Quando passou na frente do hospital percebeu que havia um rebuliço. Parecia que toda população do município estava lá. Uma multidão tentava entrar, mas o espaço estava cheio e lá dentro não cabia mais ninguém. Gritavam, sussurravam, gemiam, porém, ele não entendia nada do que ouvia. De repente, alguém olhou para trás, o viu e gritou:
— Foi ele!
Todos se viraram e correram em direção a Ramiro. Ele fez a volta e correu, mesmo sem saber o que havia acontecido. A multidão continuava correndo em seu encalço. No primeiro cruzamento, ele entrou à direita. A multidão o seguia aos gritos.
— Vamos pegá-lo!
Vendo o povo se aproximar, Ramiro pulou em um abismo. Era um buraco, quase uma cratera, como tendo surgido pelo desmoronamento em um terreno de encosta, provocado por uma enxurrada num dia de muita chuva. O povo cercou o buraco, no entanto, ninguém pulou atrás dele.
De repente, um clarão surgiu no céu, parecendo a passagem de um meteoro brilhante e fez todo mundo ir embora. Ramiro procurou uma vara. Quando encontrou, usou-a como bengala e conseguiu sair do abismo.
Fora do buraco, percebeu que não havia mais ninguém na rua. Seguiu, acelerando os passos e, quando menos esperava, viu que a multidão saiu em outra rua, todos armados, vindo em sua direção.
— O que foi que eu fiz? — pensou.
Não teve tempo de perguntar. O barulho dos tiros, vindos em sua direção, o fez correr em sentido contrário. Encontrou algumas estradas de sítios. Muito rápido, conseguiu subir em uma jaqueira. Foi para os galhos mais altos e se escondeu. A multidão chegou logo após e ficou embaixo, mas não o via. Alguns deram uns tiros para cima. Ramiro sentiu que fora baleado, o sangue corria pelo seu braço. Temia que os pingos de sangue fizessem o povo encontrá-lo. Tentava parar o sangramento com folhas da jaqueira.
Mais uma vez, um clarão surgiu do céu e fez o povo ir embora. Crente que estava só, Ramiro desceu da árvore. Olhou para todos os lados e não viu ninguém.
— Vou esperar mais um tempo para o povo desistir — falou baixinho.
Depois de algum tempo, resolveu voltar pra casa. As ruas continuavam desertas. As casas continuavam fechadas. O céu continuava cinzento. Nuvens escuras cobriam a lua e as estrelas.
Sua camisa já estava ensopada de sangue, porém, não sentia dor, nem sabia quantos tiros o atingiram. Seguindo em passos lentos, Ramiro ficava imaginando o que teria feito para ser tão perseguido. Não achava justificativa. Pensou na família, nos amigos, nos colegas de trabalho. Nunca fez mal a ninguém.
— Teria cometido um crime tão grave? — pensou. — Teria sido um assassinato, um roubo, um estupro? — continuou pensando.
Não lembrava de nada.
Enquanto isso, tentava chegar à sua casa. Passando em uma antiga praça, percebeu que realmente não havia ninguém. Seguiu tentando se acalmar, porém, não conseguia ver sua casa. Quanto mais andava, mais distante de casa se sentia. Era como se as ruas estivessem se esticando. Procurava um amigo para pedir socorro, contudo, não sabia como encontrá-lo, sequer lembrava o nome de algum. No desespero, resolveu andar mais rápido, antes que aquela multidão aparecesse novamente.
A noite ficava cada vez mais escura. Só as luzes, dos poucos postes das ruas, clareavam seu caminho. Passou em frente ao cemitério. O portão estava aberto. Pensou em entrar e se esconder lá, então, desistiu.
— Se o povo aparecer, estarei cercado e não terei como correr. — Falou pra si mesmo.
Seguiu seu calvário. Sempre à procura de sua casa, entretanto, a essas alturas, já não sabia que caminho seguir. Se fosse para a área rural, não chegaria em casa tão cedo. Se fosse para o centro da cidade, onde ficava sua casa, poderia encontrar aquela multidão novamente. Na dúvida, preferiu tentar ir pra casa.
A roupa cada vez mais molhada de sangue. Com medo de morrer pelo sangramento ou pelas balas do povo que o perseguia, continuou procurando escapar. Pensou no passado, mas não se recordava de nada. Criou coragem e seguiu.
Quando se aproximava de sua residência percebeu que a multidão estava lá, todo mundo no terreiro, como que esperando sua chegada. O desespero aumentou, o medo aumentou, não queria morrer.
— Seria melhor morrer ou fugir sendo culpado? — indagou-se, Ramiro, atordoado.
Ainda era novo e não se achava bandido, pelo menos, não se lembrava de ter cometido qualquer crime, por isso, não queria se entregar.
— Não posso me aproximar – murmurou.
Olhou pra trás, fez a volta e começou a correr. A multidão, mais uma vez, o viu e correu atrás. Ele escutava gritos, mas não entendia o que falavam. Vendo o povo se aproximar, entrou em uma garagem abandonada. Lá dentro, se escondeu atrás de um tonel de alumínio, grande o suficiente para que ninguém o visse. Muitos entraram atrás dele, porém, ninguém o encontrou. Ficavam sussurrando e alguém gritou na multidão:
— Ele deve ter fugido pelo telhado.
— Vamos cercar a casa.
Como aconteceu, anteriormente, muitos deram tiros pra todos os lados. Ramiro sentiu que tinha sido baleado novamente, porém, ninguém o viu, logo desistiram e foram embora.
Desesperado, Ramiro tentava sair da garagem. Pisava lentamente nos pneus e latas de óleo vazias, para não fazer barulho. Seu corpo cada vez sangrava mais. Sentia calafrios, respirava forte, entretanto, teria que sair. Olhou para rua e, mais uma vez, não viu ninguém. Foi a caminho de sua moradia. Seguia cambaleando, sentindo o corpo úmido e as roupas molhadas de sangue. No meio daquele silêncio, escutou um grito:
— Olha ele ali!
— Vamos pegá-lo agora!
Ramiro ainda encontrou forças pra correr. Já não sabia pra onde estava indo, só sabia que fugia da morte e teria que correr muito. Encontrou uma casa abandonada, entrou e se escondeu debaixo de um fogão de lenha. O povo o seguiu e entrou na casa. Procuraram em todos os recantos, mas não o viram. Um gato estava próximo ao fogão, se assustou com Ramiro, miou e correu. O povo disparou contra o gato que caiu morto no quintal. Porém, ninguém viu Ramiro. Enquanto isso, do céu, mais uma vez, surgiu um clarão e todos correram. Ramiro escapou.
Mesmo bastante cansado e com o corpo todo molhado de sangue, ainda teve forças para sair e tentar chegar a sua casa.
Percebeu que estava próximo de sua rua. Bastava caminhar mais um pouco. Seguiu confiando que desta vez não encontraria a multidão que o perseguia. Chorou, rezou, pediu forças a Deus e perdão pelo crime que não sabe qual foi, nem sabe se cometeu. Seguiu a caminho do seu lar.
No primeiro cruzamento, observou que vinha uma multidão de cada uma das quatro ruas, inclusive atrás dele. Desesperou-se, porém, não tendo mais força, nem para onde correr, parou e esperou, aos prantos. As lágrimas desciam pelo seu rosto. As pernas tremiam, o coração batia acelerado. Enquanto isso, as quatro multidões se aproximavam. Logo, notaram que ele já não se mexia, apenas esperava a hora da morte.
Quando estavam a cerca de cinquenta metros de Ramiro, todos pararam. Ramiro esperou atentamente, totalmente desnorteado. Os indivíduos da multidão caminharam lentamente formando um pelotão de homens armados, como atiradores numa execução de pena de morte. Já não gritavam, nem sussurravam, apenas apontavam suas armas para o culpado. Pararam posicionados, a uma distância de seis metros de Ramiro, que continuava em pé, esperando a ordem para os disparos, o que deveria acontecer simultaneamente contra ele. Nesse estado de pavor, ele apenas gritou:
— Pelo amor de Deus, o que foi que eu fiz?
Não deu tempo de ouvir a resposta. Sua mãe apareceu e o acordou para tomar café.
Gisela Lopes Peçanha
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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