Eclipse Total
de Ney Alencar
“Oh, o diabo está subindo com a lua
Ele chora e meu sangue fica frio
Oh, nunca foi a escuridão tão negra
Sem luz e nenhum lugar para ir.”
— Lua Negra, Black Sabbath
Catarina parou o carro e desceu!
O vento bafejou seu rosto com um aroma de capim molhado e almíscar.
Ela passou as mãos pelos cabelos loiros, soltou-os e tremeu, um terror
vago passou por sua mente.
Já estava na estrada há alguns dias, afastara-se o mais que podia de
Julião e de Marcondes, não sabia mais o que fazer.
As faces dos dois amantes ainda a assombravam, o desejo em seu corpo
teimava em se sobressair, um ardor, um calor que a fazia queimar por dentro,
uma febre insuportável que lhe fazia arder as flores de seu jardim, que
misturava-se à um terror- pânico sem sentido.
O coração palpitava, para logo em seguida tamborilar descompassado pelas
lembranças lúbricas que teimavam em arrebatar-lhe as memórias, mas estas eram
eclipsadas por um medo terrível.
As palmas de suas mãos estavam úmidas porque a lascívia corria dentro
dela como um rio indomável.
Olhou o horizonte ao crepúsculo.
O roxo crispado em matizes de vermelho rubro e dourado lembrava-a de
Sérgio!
O marido abandonado jamais a havia perdoado!
Ela sabia que o amava, mas era indiferente aos seus desejos, ele não era
nada para ela senão o provedor de seu amor!
Todo o resto era apenas uma futilidade sem tamanho!
Não conseguia suportar o imperialismo da sociedade que a casara com
aquele homem, e ao mesmo tempo não conseguia abandoná-lo, queria se vingar dele
e ao mesmo tempo queria fazê-lo ver o quanto ela podia fazê-lo sofrer e amá-lo
apaixonadamente ao mesmo tempo.
Ela não era formada da mesma matéria que ele, não se submetia a ele, era
totalmente independente, não queria se submeter àquele homem mesquinho que
sequer se importava com seu prazer ou seu gosto!
O terror de ter que fazê-lo era insupertável!
Porque ela deveria ser fiel à ele quando ele próprio a traía apenas com
o olhar, seu corpo ansiava por tudo o que ela desejava e assim ela fez,
desvairadamente, tantas vezes quantas quis.
Depois, é claro, sempre voltava para ele, saciada e usada, conspurcada e
inebriada com o perfume de tantos amantes diferentes. Preenchida pelo medo!
Ele chorava, era ria!
Ela a maldizia, ela o escorraçava e depois o agradava.
Ele a perdoava e ela ria!
Um cabo de guerra libidinoso que consumia aquele amor herético que os
unia!
Era tão confusa quanto suas tias!
Pelo horizonte distante viu as nuvens de tempestade que se aproximavam!
O céu enegreceu rapidamente e os ventos levantaram-se em redemoinhos de
folhas mortas.
Entrou no carro e dirigiu mais alguns quilômetros até um caminho de
terra batida que levava à uma casa grande e velha.
Devia ser ali que sua tia havia vivido, o local devia ser aquele sim!
Parou na frente da casa e saiu.
Um pensamento estranho pousou em sua mente:
“Até mesmo as corujas devem descansar ali.”
Fechou o carro e entrou na casa.
A porta estava destrancada, o interior a fez lembrar-se da casa de seus
pais na infância. Memórias amedrontadoras que queria apenas esquecer.
Havia um cheiro de frio ali dentro que
a torturava, e madeira e hortelã também.
Um grande tapete de pele de urso branco estendia-se pelo chão da sala à
frente da lareira acesa, cujas chamas faziam sombras longas dançarem pelas
paredes altas e sisudas.
O rosto da fera morta jazia voltado em sua direção e as fauces abertas,
aterrorizantes, pareciam querer devorá-la.
Uma longa escada sinuosa subia e uma menor descia para profundezas
ignotas de um porão abissal.
Ela tomou a primeira e chegou ao andar de cima, havia muitos quartos
ali, todos pareciam vazios.
Catarina escolheu um deles, com uma cama grande e bonita, com lençóis de
seda e uma lareira. Acendeu-a.
Trouxe as malas e deitou-se na cama.
O ar parado do quarto trouxe-lhe mais memórias traiçoeiras até eu ela
adormeceu recitando um poema.
O sonho, ou seria um pesadelo, chegou logo ao cair das pálpebras, foi
como uma visão caleidoscópica, cheia de cores brilhantes e sons farfalhantes
que se misturavam em uma atmosfera esdrúxula.
Diante dela, uma luz forte e negra começou a tomar forma, e dela parecia
emanarem raios de escuridão em diferentes tons de negro, pulsando em um
compasso que era quase como a batida de um coração.
A silhueta disforme de um crânio foi tomando forma devagar diante de
seus olhos cínicos, inundando sua mente com aquele terror ignoto que teimava em
torturá-la sem piedade.
Não era um crânio humano, parecia com o de uma criatura antediluviana,
algo que jamais deveria existir em nosso mundo, uma coisa de pesadelo, vinda de
lugares onde a mente humana não conseguia chegar.
Tomou forma completa e abriu os olhos, bem azuis e faiscantes como duas
safiras octogonais, fitou Catarina diretamente nos olhos.
Um calor disforme tomou conta de seu interior, uma coisa morna e
pegajosa que parecia se arrastar dentro dela, pelos lugares mais proibidos de
seu ser, agarrando-se em sentimentos de piedade e misericórdia, trazendo à tona
uma coleção bizarra de desejos e vontades lúbricas que ela jamais ousara olhar
de frente.
Era como uma serpente se movendo em seu interior, deslizando por suas
veias, fazendo cócegas libertinas em seus mamilos e em suas coxas fechadas de
tal forma que uma angústia insaciável começou a tomar conta dela.
Eram como pequenos vermes caminhando por debaixo de sua pele em um
rictos quase insuportável.
O crânio negro abriu a boca descarnada quase em um sorriso cruel, uma
língua mole moveu-se em seu interior tentando formular palavras ambíguas sem
sucesso.
Uma cacofonia elevou-se ao seu redor como um redemoinho de vozes
espúrias, uma multidão de almas falando todas como uma só legião.
Ao mesmo tempo, Catarina ouviu uma voz incorpórea que lhe falava
disparates devassos, o som da voz fazia sua pele se arrepiar, porém não era
medo o que sentia, era um misto controverso de desejo impudico e
arrependimento, um pesar compungido que apertava seu peito.
Pensou em Sérgio, havia machucado
tanto o marido que já não sabia onde começava seu martírio e onde terminava sua
traição, mas ele também a havia machucado:
primeiro havia deixado ela de lado, abandonado seus sentimentos em um deserto
de solidão, depois que ela encontrara Julião e o deixara perder-se dentro dela
foi que Sérgio tomara consciência do que havia feito, mas aí já era tarde
demais.
A solidão machucava muito, fazia ela querer ser outra pessoa, tornava
cada pensamento seu, cada ação, um desafio interior, um ato de rebeldia!
O remorso e o desgosto pelo que acontecera entre ela e Sérgio a corroía
por dentro, por isso não conseguia mais olhar dentro dos olhos dele, não
conseguia mais ficar ao seu lado, nem mesmo deixá-lo fazer nada consigo, não
suportava mais o seu toque nem de suas mãos nem de seus lábios.
Não suportava a ideia de uma
parte dele dentro dela, sentia-se suja, conspurcada, quase da mesma forma que
sentiu quando o traiu a primeira vez com Julião ou com Marcondes.
Tudo aquilo a deixava doente, e ao mesmo tempo a impulsionava a querer
fazer mais, entregar-se novamente e novamente, até desfalecer, deixar-se
corromper e conspurcar das maneiras mais odiosas e nefandas, das maneiras mais
impudicas e sórdidas, de tal forma que ela deixasse de ser ela própria e
passasse a ser outra pessoa.
Metamorfoseada em uma nova mulher!
Somente com a destruição daquilo que ela havia sido para Sérgio é que
conseguiria tornar-se viva novamente, porque então seria outra pessoa.
Essa necessidade imoral a corroía.
O crânio à sua frente apenas colocara aquilo em palavras, reconhecia
agora que era tudo o que ela queria, por isso havia fugido dele e de todos os
outros.
O medo a impulsionava.
As noites de devassidão havia cevado e feito desabrochar uma outra
Catarina, uma mulher que já não se importava com os sentimentos do marido, nem
dos amantes, se estava saciada isso lhe bastava!
Esse fogo devorador eclipsava tudo o que um dia ela se tornara, essa
escuridão morna dentro da qual ela se refugiava lhe bastava apenas até que o
desejo lúbrico viesse à tona, ele a
possuía como um demônio sensual!
Acordou suada, a pele pegajosa, tirou as roupas e banhou-se.
Vestiu um longo camisão diáfano, sentia fome agora.
Desceu para a cozinha.
Os armários haviam sido abastecidos, ela sentou-se à mesa e desfrutou de
uma refeição suntuosa, morangos encharcaram seus lábios com o sumo doce e figos
e pêssegos macios deixaram escorrer seu sumo pegajoso pelo seu queixo delicado. Comia com uma volúpia libertina, arquejando
ao sentir os pedaços descendo por sua garganta, em um êxtase sensual que a
tornava bela e selvagem.
Foi então que ouviu um barulho.
Algo caminhava em sua direção, vindo do corredor da entrada.
Levantou-se e olhou curiosa, quem poderia ser no meio daquela noite
assombrada?
Pela porta da cozinha emergiu o vulto fabuloso de um unicórnio!
Era pouco maior apenas que um pônei.
A pele castanha brilhava na luz do lampião que entrava pela janela
aberta e o sussurro do vento fazia balançar sua crina comprida.
O longo chifre espiralado que despontava ereto na estrela branca da
fronte do animal parecia ainda mais fabuloso.
Catarina olhou-o sem se mover, gotas de sumo de pêssego desceram por seu
queixo e caíram sobre seus seios que se enrijeceram, despontando por detrás da
camisola.
O Animal fantástico continuou seu andar, batendo os cascos pelo piso de
madeira em um barulho oco e espectral.
A cada passo um arrepio de terror tomava conta do corpo de Catarina, sua
pele se franzia como se percorrida por uma corrente elétrica, até que ele parou
em frente a ela.
Ela sentiu o odor forte, almiscarado, ácido, do corpo do animal, a
quentura da pele dele a fazia suar.
O unicórnio levantou a cabeça e sua língua áspera lambeu o queixo de
Catarina em movimentos caudalosos, depois moveu sua cabeça, de modo que o
chifre quase tocou seus lábios entreabertos e abaixando-a lambeu as gotas de
sumo que haviam caído sobre seus seios.
Ela estremeceu!
O animal, a corporificação dos desejos mais íntimos, dos atos mais
obscenos, dos desejos mais inexprimíveis de sua mente, estava ali parado diante
dela, olhando-a e permitindo que ela o olhasse de frente.
Então ela teve a certeza absoluta que a lua negra havia despontado no
horizonte e seus raios invisíveis a banharam em uma aura profana.
Um rompante de desejo incendiou seu corpo e ela cedeu!
Abandonou-se totalmente àquele terror desconhecido que a dominava
febrilmente, não conseguia mais lutar contra ele.
Curvou-se sobre a mesa e esperou lânguida e amedrontada, molhada já!
O unicórnio relinchou salaz em um tom monocórdio e terrível, e
colocando-se sobre as patas traseiras caminhou como um homem, acercando-se
dela.
O rosto desfigurado assemelhava-se ao do marido abandonado.
A escuridão tomou conta de tudo e apenas um grito de terror reboou pela
noite.
Quando a madrugada veio e um galo distante anunciou o dia que se
aproximava ela afastou-se cambaleante.
Seu interior gelado a fazia tremer, e aplacava a fúria fervente de sua
voluptuosidade, de tal forma que sentia uma saciedade plena preencher lhe a
alma!
Saciada, deitou-se sobre o tapete branco de pele.
Os pelos faziam cócegas em seu corpo nu.
Adormeceu!
CAL - Comissão de Autores Literários
Suspense Music
Intérprete:
Gabriel Andrade Produções
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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