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Antologia Lua Negra: 4x06

Conto de Reginaldo Cerqueira
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Sinopse: Dez anos se passaram, eu estava de volta. O sítio estava abandonado, a  mangueira ainda existia, parte do telhado da casa tinha desabado. Fiquei parado diante do fogão a lenha e, por alguns minutos, fui transportado para o passado.

Caminhei até o riacho, sentindo a dor que senti naquela fatídica manhã, com a morte de meu irmão. Estudei profundamente tudo relacionado com a lenda do Menino do Rio e os meios de proteção. A lenda fazia menção a poderes que o ser transferiria para quem o capturasse, talvez isso compensasse a minha perda.
 
Planejei, cuidadosamente, como eu ia capturar aquela criatura.

A Bruxa de Jaceruba
de Reginaldo Cerqueira

Abri, com dificuldade, os olhos. Fiz um rápido reconhecimento dos meus braços e pernas. Havia ferimentos causados pelas garras da criatura em toda a extensão dos membros, mas no tórax é que o estrago foi maior. Fechei os olhos, segurando o choro de medo e angústia. A lembrança dos últimos acontecimentos aflorou como fonte de água limpa em minha mente. Eu estava em um buraco coberto com folhas de Santa Maria e outras ervas protetoras, mas não tinha certeza se aquela proteção funcionaria por mais uma noite.

Estávamos na BR-113, esperando alguma carona para Ponta dos Trilhos, em Jaceruba, onde tínhamos um pequeno sítio. Era o destino esperado para passar as férias de verão. Eu e meu inseparável irmão soltávamos gargalhadas, antecipando os melhores momentos que a lembrança de minha adolescência poderia guardar. Jaime foi o primeiro a avistar o caminhão se aproximando, envolto em uma espessa nuvem de poeira. Fizemos sinal, pulando e fazendo algazarra, esperando que o motorista nos visse.

O sítio era de minha família há gerações, por parte de pai. Foi onde meu avô criou seus filhos e continuou morando lá depois que todos cresceram e se casaram. Vivia sozinho como um recluso, mas gostava de nossas visitas. Chegamos com o sol se pondo, encontramos o vô sob a mangueira centenária, localizada bem no centro do terreno, em frente da casa simples, mas imponente em tamanho. Tinha sete quartos, sala grande, com fotografias antigas penduradas nas paredes e um piano velho, encostado num canto. O piso de madeira rangia quando andávamos pela casa, e a cozinha era bem ampla, com uma mesa rústica, de madeira, com oito cadeiras e o cheiro da comida, misturado com a fumaça,  é a lembrança mais forte que tenho daquele tempo.  Depois de nos instalarmos em um dos quartos, ficamos sentados no escuro, sob a mangueira, ouvindo histórias que o vovô contava. 

Acordei com o cheiro do café fresco e ovos fritos na manteiga, que se espalhava por toda a casa. Jaime deu um pulo da cama e correu para o banheiro,  sua intenção era chegar antes de mim  na cozinha. Estávamos atravessando a fase em que tudo era uma brincadeira ou mesmo uma competição sem fim. Me aproximei da janela do quarto, que tinha vista para o quintal. Acocorado, às margens do riacho que cortava o sítio, avistei o vovô. Parecia conversar com alguém que estava na água e que eu não podia ver de onde eu estava.  De repente, percebi o seu corpo se curvar e se contrair como se estivesse vomitando. Os pelos de minha nuca se arrepiaram no momento em que ele olhou em direção à janela de meu quarto, dei um pulo para trás, ainda a tempo de ver algo se desprendendo de seu peito. Corri para o banheiro, para contar para Jaime, que estava de saída, mas o traquina me agarrou pela cintura, achando que eu estava apertado para urinar e quis me fazer uma brincadeira sem graça, me fazendo mijar nas calças. 

― O que foi?

― Acabo de ver um negócio estranho.

Da cozinha, ouvimos o chamado.

― Jaime, Juarez, o café está pronto.

Para a minha surpresa, era a voz do vovô. Deduzi que ele não poderia ter entrado tão rápido na cozinha. Fui até lá mais curioso do que assustado. Nosso vô estava sentado na frente de um caneco de café com leite e um prato com ovos fritos, aparentava ter toda a tranquilidade do mundo. Havia sobre a mesa banana e outras frutas, colhidas lá mesmo, no sítio. Eu e Jaime sentamos lado a lado, e o vovô falou:

― Juarez, pode pegar ovos e café.

― Vô, eu sou o Jaime.

― Diabos, nunca que vou conseguir identificar quem é quem. Podem pegar o que quiserem. Vou até a vila comprar umas coisas, não saiam do sítio.

― Jaime, vamos lá no fundo do quintal, eu vi uma coisa muito esquisita.

― O que foi?

― Vi o vô agachado na beira do rio, e tinha um negócio agarrado no peito dele.

― Tu tá doido.

― Vamos lá.

Corremos para a beira do riacho que corria da Reserva Biológica do Tinguá, em direção a outros riachos que desciam para o rio Queimados. No local que pensei ter visto o vô agachado, havia marcas na lama, de pares de pegadas. De fato, pessoas estiveram por ali. Continuamos explorando as margens do riacho, com o espírito de aventura próprio das crianças. Ouvimos um barulho como o de uma árvore sendo derrubada, ao mesmo tempo em que algo pesado caía no rio, espalhando água para todos os lados.  Vimos um corpo branco, que possuía uma vasta cabeleira, deslizando pela água, mas que saiu rapidamente do nosso campo de visão. Aquele verão prometia.

Nosso sítio ficava numa localidade chamada Ponta dos Trilhos, no final da rua Dos Murmúrios, o local mais próximo da represa de Jaceruba. Essa represa data de 1883 e já foi considerada estratégica para o abastecimento de água para a cidade do Rio de Janeiro. 

Já era perto de treze horas quando vovô retornou, trazendo arroz, feijão, café, manteiga, linguiça e carne de porco. No dia claro, pudemos constatar o seu estado físico, estava magro, com profundas olheiras e respirava com dificuldade. 

Seja o que fosse que estivesse acontecendo, era óbvio que vovô tinha alguma relação com aquele ser. Decidimos que capturaríamos a estranha criatura. Na manhã seguinte, acordamos cedo e fomos, os dois, para a janela. Àquela hora, ainda persistia a penumbra da mistura da noite com o dia. Vimos o vô andar, devagar, em direção ao riacho. Alguma coisa já se mexia entre os arbustos, até que ele se agachou, na margem, com dificuldade. Vimos, assustados, um ser de formas femininas, com pele muito branca, uma cabeleira esverdeada, que caía por sobre seus ombros, e braços que terminavam em garras, e que se fechavam em torno dos braços do vô. Violentamente, a estranha criatura cravou seus dentes no peito do velho. Horrorizados, pulamos para longe da janela, quando ele virou os olhos em nossa direção. Quase ao mesmo tempo, ouvimos sua voz, vinda da cozinha:

 “Jaime, Juarez, venham tomar café.”

Como podia ele ser tão rápido?

Eu e Jaime passamos o dia cochichando pelos cantos da casa, fazendo planos de caça e captura daquela criatura. “Mas qual era o papel do vovô nessa história?”, perguntávamo-nos. À noite, depois da janta, fomos para debaixo da mangueira ouvir as histórias que ele contava, e aproveitamos o clima para lhe fazer perguntas. 

― Vô, o que é aquilo que te atacou na beira do rio?

O velho nos olhou bem dentro dos olhos e, depois de um longo silêncio, disse:

― Não se metam nisso, é muito perigoso.

― Mas o que é aquilo?

― Não sei ao certo. Existe uma lenda de Jaceruba, antiga, da época do Império, que conta que os portugueses vieram aqui para aproveitar a água e fazer aquedutos para a cidade do Rio de Janeiro. Eles encontraram alguns índios que tinham se refugiado aqui após o massacre na Ilha do Governador, ocorrido em janeiro de 1557. Os portugueses mataram os homens da tribo e pegaram uma pequena índia, para escravizá-la. A criança era neta do feiticeiro Tibiriçá e fez uma conjuração para se vingar. Ela se transformou no que chamam de Menino do Rio. Vivo aqui há muito tempo, acabei me aproximando dela. O que vocês viram não foi um ataque, pelo contrário, ela está tentando me curar de um problema cardíaco.  Não se aproximem dela, é muito agressiva.

― O que acontece com você, quando ela te morde?

― Me sinto melhor. A lenda diz que, se você conseguir se aproximar dela, ela pode te dar saúde perfeita e longevidade.

Aquele verão se transformou no verão da bruxa. Estávamos empenhados em capturar a criatura, apesar dos avisos do vô. Bolamos uma armadilha para laçá-la, no momento em que ela se aproximasse da beira do rio. 

Durante o dia trabalhávamos na armadilha, instalamos uma rede suspensa bem acima do local de encontro do vovô com a bruxa, com o cuidado de camuflá-la bem. Tínhamos certeza de que a rede era forte o suficiente para manter a bruxa presa. Tudo estava preparado, transformamos um dos quartos em uma cadeia e marcamos o dia da captura. Vovô passava o dia cuidando dos animais do sítio e das plantações, sem perceber nossas intenções.

O grande dia tinha chegado. A manhã estava particularmente calma, até os pássaros estavam em silêncio. Nossa pouca idade não permitiu que percebêssemos o perigo que estávamos correndo. Nessa manhã, não ficamos espiando pela janela, nos colocamos em um buraco próximo à margem do rio, protegidos por uma grossa camada de folhas secas. 

A criatura se ergueu lentamente em direção ao velho, era tenebrosa, possuía longas garras e dentes afiados. Já estava arrependido dessa ideia estúpida de capturá-la, mas já tínhamos ido longe demais. A rede caiu pesadamente sobre a criatura, que soltou um urro de gelar o sangue, na tentativa de se livrar. Ela rasgou o braço do vô de cima a baixo. Em um impulso corajoso, e sem me dar tempo de impedi-lo, Jaime saltou fora do buraco, para prender a rede com uma pedra, mas sem sucesso. A criatura, raivosamente, saltou sobre Jaime, cortando todo seu peito, com suas garras afiadas. Fiquei em choque. O monstro saltou para a água e sumiu, soltando um berro que ecoou no meu ouvido por anos a fio. Olhando para todas aquelas pessoas no sepultamento de Jaime, me sentia anestesiado. Assisti ao sofrimento de meus pais, meu avô resistiu apenas alguns dias. Perdi meu irmão e meu avô, aquela criatura ia pagar caro.

Dez anos se passaram, eu estava de volta. O sítio estava abandonado, a mangueira ainda existia, parte do telhado da casa tinha desabado. Fiquei parado diante do fogão a lenha e, por alguns minutos, fui transportado para o passado. 

Caminhei até o riacho, sentindo a dor que senti naquela fatídica manhã, com a morte de meu irmão. Estudei profundamente tudo relacionado com a lenda do Menino do Rio e os meios de proteção. A lenda fazia menção a poderes que o ser transferiria para quem o capturasse, talvez isso compensasse a minha perda. 

Planejei, cuidadosamente, como eu ia capturar aquela criatura. Cavei uma grande trincheira e, durante meses, eu esperei. Dormia todos os dias no buraco, ela ia aparecer, tinha certeza. O local estava coberto com ervas que, segundo a lenda, poderiam mantê-la afastada. 

A manhã esperada tinha chegado. Avistei a criatura à beira do rio, saltei em sua direção, armado com uma pistola que descarreguei em seu peito. A constatação de que era um recurso quase inócuo não me protegeu do violento contra-ataque. O monstro saltou em minha direção, rasgando minha calça.Tentando cravar seus dentes em minha perna esquerda, só tive tempo de correr para o buraco e rezar. 

Passei o resto do dia e noite entocado. Na manhã do outro dia, notei que a criatura se aproximara mais. Tentei mais uma investida, dessa vez com uma faca. Consegui feri-la, embaixo do que parecia ser o braço esquerdo. Paguei um alto preço por isso: fiquei bem machucado. Arrastei-me, com dificuldade, de volta para o buraco e mergulhei na inconsciência.

Abri, com dificuldade, os olhos. Fiz um rápido reconhecimento dos meus braços e pernas. Havia ferimentos causados pelas garras da criatura em toda a extensão dos membros, no tórax é que o estrago foi maior. Fechei os olhos, segurando o choro de medo e angústia. A lembrança dos últimos acontecimentos aflorou como fonte de água limpa em minha mente. Eu estava em um buraco coberto com folhas de Santa Maria e outras ervas protetoras, mas não tinha certeza se aquela proteção funcionaria por mais uma noite. 

Ouvi um forte barulho, como se algo grande tivesse caído nas águas do rio. Já tinha ouvido esse barulho antes, e isso indicava que a bruxa tinha ido embora, pelo menos por enquanto. Aproveitei para me arrastar para fora do buraco e, com muito esforço, chegar à casa em ruínas. Um dos quartos que tinha o telhado preservado serviria como refúgio para meu restabelecimento. Minha mochila tinha o básico para curativos, garrafas de água e muita carne seca. Os arrepios que eu estava sentindo podiam indicar início de infecção dos ferimentos causados pelas garras da criatura. Confrontar o monstro diretamente, quase custou minha vida. Pensando quais seriam os meus próximos passos, mergulhei em uma inconsciência agitada.  

― Jaime, acorda.

Com os olhos semicerrados respondi:

― Eu sou o Juarez, vô.

― Diabos, nem depois de morto eu consigo distinguir vocês dois.

Abri totalmente os olhos. Jaime estava ao meu lado, vovô nos observava, com um sorriso iluminado. Abracei os dois, chorando muito.

― Juarez, lembre-se de como os índios pegam peixe ‒ disse Jaime.

― Eles usam um curral feito de galho seco, isso é muito frágil, não segura o bicho.

Vovô e Jaime se afastaram, rindo, até desaparecerem, apesar dos meus chamados desesperados para que voltassem. Acordei molhado de suor, ainda com a forte impressão da presença dos dois.

Três dias já haviam se passado desde o último embate com a criatura, os ferimentos não apresentavam infecção séria. Passava horas pensando sobre o sonho e a sugestão de Jaime, não tinha sentido. Mas foi durante o banho de cacimba, totalmente ensaboado, que, acidentalmente, deixei cair o sabão dentro do balde. Observei o sabão derretendo na água, deixando ela com uma névoa esbranquiçada. O entendimento da sugestão da aparição do meu falecido irmão veio como um raio: timbó.

Timbó é uma planta que, macerada e jogada no rio, libera uma substância tóxica para os peixes, provocando um entorpecimento que os deixa completamente vulneráveis à sua captura. Essa técnica é muito usada pelos índios em todo o país. Agradeci a dica dada por Jaime e fiquei planejando o contra-ataque, restava saber se o timbó funcionaria contra o Menino do Rio. Passei o resto da noite lutando contra sombras e memórias trazidas pela brisa da madrugada.

Acordei sentindo fortes dores em alguns dos ferimentos, estavam inflamados e deles escorria uma secreção esverdeada, mas, ainda assim, estava disposto a botar em prática o meu plano. Tomei um café ralo, que deixou um gosto metálico na boca; me perdi em pensamentos, olhando o profundo céu azul daquela manhã. Saí do transe involuntário, provocado por um estado febril, recolhi algum equipamento e parti em busca da planta. Penetrei na mata fechada e úmida do maciço do Tinguá, impressionado com a exuberância da floresta, tão próxima de grandes centros urbanos. A magia da natureza sobrevivia com força e vitalidade. Esse era o problema: quanto mais exuberante e cheia de vida, mais perigosa.

Não sei se por estar febril ou por meu corpo estar inundado de adrenalina, eu percebia a mata em detalhes, os diferentes tons de verde das folhas, o canto dos pássaros e a gritaria das maritacas, a umidade cheirosa das folhas em decomposição, a brisa fresca, que provocava arrepios em minha pele dolorida. Achei a planta depois de horas de busca cansativa, recolhi o máximo que eu podia carregar, voltei para casa, já no fim da tarde. 

Percebi que eram pesadelos provocados pela febre. Apesar da noite, acordei um pouco melhor, recolhi uns poucos equipamentos, cordas e algumas armas, fiz um grande fardo de timbó e saí em direção à barragem. Foi uma caminhada difícil, andei por aproximadamente duas horas dentro de uma mata fechada e cheia de mosquitos. Minha roupa estava encharcada de suor, misturado com secreção purulenta, mas, para ter minha vingança, eu iria até o inferno. Eu mal sabia que era exatamente para onde estava indo.

A represa era abastecida por vários mananciais vindos do alto do maciço. Não era muito grande, mas a beleza do lugar era de tirar o fôlego. A construção, com mais de um século de existência, permanecia tão sólida quanto no  seu primeiro dia de funcionamento. Seu espelho d’água chegava a um palmo do topo do paredão de aproximadamente sete metros de altura, terminando no fundo da pequena ravina, onde se localizava sua vazão, aumentando o volume d’água, do que antes era um pequeno riacho, formando o rio que passava no fundo da propriedade de meu avô.  Seria lá que eu espalharia a planta, liberando sua substância tóxica. Com sorte, eu pegaria o maldito.   

Improvisei um rapel no concreto liso do paredão da represa. Infelizmente, subestimei minha precária condição física e, faltando alguns metros para o fundo da ravina, despenquei ruidosamente nas pedras do leito do rio. Alguns ferimentos voltaram a sangrar em abundância, porém eu não podia perder tempo cuidando deles, uma vez que estava nos domínios do monstro. Com muita dificuldade, macerei algumas folhas de timbó nas pedras e joguei-as na correnteza do rio. A substância tóxica da planta tingiu a água com uma coloração leitosa e se espalhou como nuvem pelas águas cristalinas. Sob o efeito da planta, à minha volta, os peixes começaram a boiar,  de barriga para cima, completamente vulneráveis. Cheguei a uma parte do tortuoso trajeto em que o rio se alargava e adquiria uma profundidade razoável, árvores com galhos finos se debruçavam sobre as águas, formando sombras fantasmagóricas. 

 Espalhei mais folhas maceradas, observando o líquido leitoso avançar pelas águas. Nesse momento, percebi o profundo silêncio na floresta, os pássaros pararam de cantar, as maritacas, inacreditavelmente, silenciaram, nada se movia. O terror invadiu a minha alma, tomei consciência de minha solidão e temi, sinceramente, pela minha vida. O som que chegou aos meus ouvidos era um misto de rugido de um felino com o grito de uma ave de rapina. Da correnteza leitosa, a criatura emergiu em um salto, espalhando água para todos os lados. Pela primeira vez, eu a vi em detalhes: longos cabelos verdes, olhos totalmente negros, pele branca, braços musculosos, que terminavam em garras longas e finas. Em sua boca, fileiras de dentes pontiagudos e serrilhados lembravam os dentes de grandes peixes predadores. Assisti, paralisado, aos grandes saltos que a criatura dava, sem perceber que ela se aproximava perigosamente. Joguei mais folhas na água, comecei a notar que o monstro parecia desorientado, o timbó estava fazendo efeito. Fiz um laço com a corda e tentei alcançá-la. No primeiro lançamento, a criatura conseguiu se desvencilhar, não sem demonstrar dificuldade de movimentos e orientação. Com mais sorte que habilidade, consegui jogar o laço em seu pescoço. Na tentativa de se livrar, o monstro dava voltas sobre si mesmo e gritava, o movimento só o fez se enroscar mais na corda. Aproveitei a sua imobilidade e consegui amarrá-lo com inúmeras voltas e nós. Ele estava capturado.

Segui pelo leito do rio, sempre jogando folhas maceradas na correnteza, não queria nenhuma surpresa. Cheguei ao sítio do meu avô à tardezinha, tirei a criatura da água e a arrastei até a mangueira velha no centro do terreno, onde a amarrei  no tronco nodoso da árvore. Tudo continuava em profundo silêncio, nem a brisa, muito comum naquela região, deu o ar da graça. Entrei na casa em ruínas, limpei mal e porcamente meus ferimentos, arranquei sanguessugas espalhadas pelo meu corpo e desmaiei.

Acordei com o sol queimando meu rosto, levantei de um salto, lembrando dos acontecimentos do dia anterior. Senti-me mais disposto, e meus ferimentos estavam com ótima aparência. Corri para a mangueira, onde estava a minha cativa. Seus cabelos tinham caído, seus olhos estavam vidrados como olhos de peixe, o odor de carne podre começava a se espalhar, mas a criatura ainda estava viva. Vi, com meus próprios olhos, meus ferimentos cicatrizarem como num passe de mágica. Meu vô tinha razão, a criatura transferia, para quem a capturasse, poderes de cura e quem sabe mais o quê. Por volta das dezesseis horas, o cheiro era insuportável, a carne se desprendia dos ossos e caía, aos pedaços aos pés da criatura e, em contraste, meu corpo ficava cada vez mais vigoroso. Por fim, a vida abandonou totalmente a criatura, e eu tinha minha vingança. Entrei na casa e arrumei minhas coisas, ia embora no dia seguinte.

Acordei bem disposto e com muita vontade de tomar um bom banho, dirigi-me para o rio e dei um mergulho nas águas frescas. Arranquei toda a minha roupa e brinquei na água, como criança. Um raio de sol da manhã iluminou meu braço, minha pele estava completamente branca, meus braços terminavam em dedos com unhas tomando a forma de garras, abri a boca e dela saiu um urro misturado com o grito de uma ave de rapina. Agora eu sabia no que eu me tornara.


Conto escrito por
Reginaldo Cerqueira

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Gisela Lopes Peçanha
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Tema:
Suspense Music

Intérprete:
Gabriel Andrade Produções


Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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