2x02 - As Flores de Lázaro
de Lucas Mercês
Lázaro segura o rolo de pisca-pisca com os olhos brilhando, como têm de brilhar os de todas as crianças. Olhando para cima, vê padre Anselmo, que desemaranha os fios de pé em uma cadeira, e já sem paciência para continuar decifrando qual ponta deve puxar, resolve deixar a última porção dos fios com o enigma intacto.
— Ah! — diz enquanto desce da cadeira. — Desisto! Não sei como é possível esses fios se embolarem dessa forma estando presos em uma caixa. Todo ano é a mesma coisa!
Lázaro ri das palavras do padre, pois ele é daquele gênero de homem tão encantador que simplesmente não consegue convencer ninguém do contrário ao se irritar com algo.
— Rindo de mim, não é? — pergunta o padre ao esfregar a mão nos cabelos do menino. — Continue assim, e quando aparecer alguém para lhe adotar, vou dizer que a única criança que temos está com defeito!
Lázaro conserva um olhar admirado e sorridente para o padre. Não apenas por suas piadas, que sempre dão a entender que quer mantê-lo ao seu lado, mas também pelo toque de sua mão, pois, apesar de pesada e robusta, é quente e gentil como o menino jamais sentiu em outra pessoa. E de fato nunca sentiu.
Ele foi deixado na porta da igreja há sete anos, quando ainda era um bebê. Os ventos calmos e a chuva fresca convenceram o padre a ficar acordado naquela noite; e acompanhado de um livro, tendo como iluminação a pálida luz da lua que entrava pela janela de seu quarto, assustou-se com batidas altas e fortes na porta da frente.
— Mas quem pode ser a uma hora dessas?! — perguntava-se irritadiço, não pelas horas, e sim pelo susto.
Com uma velha lanterna em mãos, o padre iluminava o caminho curto que levava do seu quarto até a entrada da igreja. Passou a chave e abriu devagar a porta de madeira, sobre a qual os entalhes agora podiam ser lidos: “Jó 38:11 Tu chegarás até este ponto e daqui não passará.”
Logo depois de olhar à altura dos próprios olhos e não ver nada além da mata, pôde perceber confuso que, a seus pés, um bebê se encolhia nu em uma caixa de papelão. Pálido e com o corpo molhado devido à chuva, o pequeno exibia cicatrizes finas e rosadas por todo o corpo, da base do pescoço até o dorso dos pés. Não havia sangue algum. Eram marcas que aparentavam ter cicatrizado havia muito tempo.
Paralisado e sem conseguir tirar os olhos dele, percebeu que quem o deixara ali ainda devia estar por perto. Sentindo uma ligeira raiva por não ter se lembrado disso antes, passou pelo bebê e desceu as escadas perscrutando a vegetação alta.
Alguns minutos se passaram enquanto tentava avistar alguém no escuro da noite, e quando ia se virando, convencido de que o responsável estava fora de seu alcance, o feixe de luz da lanterna iluminou uma figura vestida de preto que corria mata adentro.
Anselmo gritou por um tempo, mas o som da chuva que se chocava contra o chão mascarava sua voz, que já era tão audível quanto os coaxos dos sapos que ali habitavam. Como se esperasse alguém aparecer para lhe ajudar, ele continuou olhando ao redor de si, mas ninguém apareceu. O padre voltou seus olhos para o alto da escada, e subindo os degraus devagar, olhou mais uma vez para o pequeno que continuava calado.
— Meu Deus! — ele disse ao finalmente perceber a evidente hipotermia que tomara conta do bebê. — O que estou fazendo?! — Apanhando-o em seus braços e trancando a porta atrás de si, correu de volta para o quarto, onde o enrolou em um cobertor.
O padre o aninhou e o manteve aquecido o máximo que pôde, assim como rezou falando com a voz quente próximo de sua face. Sentia medo pela vida do menino, e com um sentimento tímido que crescia de pouco em pouco dentro de seu coração, conseguiu fazer com que a cor voltasse às suas bochechas. Um orgulho paternal nascia no padre e, sentando-se na cadeira onde estava lendo seu livro, percebeu, com a luz da lua reluzindo através do vidro, que as cicatrizes haviam sumido!
Revirou diversas vezes o cobertor com cuidado para ver o seu corpo, pois a lembrança dos cortes se conservava fresca em sua mente, de forma que não acreditava no engano de seus olhos. Foi então que, ainda absorto sobre o que poderia haver de errado naquilo, a voz do bebê ressoou pelas paredes. O padre chorou junto da criança naquela noite. Um amor forte e verdadeiro tomou conta daquele homem pobre e, convencendo-se de que ele era um presente de Natal concedido pelos anjos, acolheu-o como seu filho.
Mas foi uma tarefa difícil. Pois o padre, ainda que tendo a certeza de que aquela criança lhe fora entregue pelos Céus, não podia deixar de se sentir impotente por não lhe prover tudo o que precisava. O dinheiro que conseguia era muito pouco até para si mesmo, e sempre que tinha em mãos a quantia que sobrava para a própria alimentação, deixava a fome de lado e comprava o leite da criança. Quando uma de suas roupas rasgava e pensava em levá-la para a costureira, ia até a feira e comprava roupas para o menino, pois ele já havia crescido.
Assim os anos se passaram, com o padre se sacrificando pelo seu bem-estar, mas se sentindo recompensado todas as vezes em que aquele largo sorriso se abria para ele. Lázaro era seu filho! E nem mesmo a mais cruel das fomes poderia fazê-lo mudar isso.
Mas Lázaro não era cego. À medida que crescia e se tornava mais inteligente, passou a reparar nos sacrifícios do padre. Por que ele comia um prato de comida enquanto o pai dizia estar sem fome e comia nada mais que um naco de pão? Por que ele lhe comprava roupas quentes para as noites frias enquanto ainda usava o mesmo casaco velho havia tantos anos? A criança se entristecia ao perceber tudo isso; e o sentimento de impotência por não poder retribuir o amor daquele homem o angustiava.
Hoje é dia de Natal, e como foi nesse dia em que ele foi acolhido, também passou a ser sua data de aniversário. Lázaro sabe que, assim como nos anos anteriores, depois que terminar de ajudar o pai a enfeitar a igreja, a Ceia de Natal terá pouca comida. Ele não quer ver seu pai comer pão seco e mentir dizendo que não sente fome enquanto o filho se farta com a comida preparada com tanto esmero. Portanto, de uma forma ou de outra, decide que forçará o pai a comer também!
— Lázaro — seu pai diz, ajoelhando-se. — Eu queria te fazer uma surpresa, mas acho que não vou poder esconder. A irmã Judith vai passar o Natal conosco esta noite.
Os olhos do menino reluzem de alegria ao som dessas palavras. Pois, além de ela ser o mais próximo que já teve de uma mãe, sempre leva comida quando os visita. Lázaro então libera uma torrente de palavras de felicidade, já que seu problema está resolvido e todos comerão bem nesta noite. Os anjos mais uma vez intercedem por ele, e o menino se sente grato.
— Certo, certo! — repete o padre, que, mesmo contente com a alegria do filho, esforça-se para fazê-lo parar de falar. — Veja, eu quero que a irmã Judith se sinta em casa, pois ela sempre foi boa para nós. Então eu quero que você me faça um favor enquanto começo a preparar nossa ceia.
Os olhos de Lázaro lacrimejam e ele se esforça para não deixar as lágrimas caírem.
— Aqui em frente à igreja, perto das árvores que ficam logo no início da mata, existe uma flor vermelha muito especial chamada poinsétia. — O menino escuta com atenção a oportunidade de contribuir. — Ela também é conhecida como flor de Natal... você sabe por quê?
— Não — responde, lembrando-se de já tê-las visto quando olhava pela janela.
O padre sorri da forma adorável como o filho balança a cabeça e se sente satisfeito por poder lhe ensinar algo tão bonito.
— Ela se chama assim pois floresce apenas nos meses de dezembro e janeiro, e como sua cor é de um vermelho forte, muitos a associam ao sangue de Cristo, que foi derramado por todos nós.
Lázaro achou bela a história que seu pai contou, mas sem entender onde ele quer chegar, não pode disfarçar sua expressão confusa.
— Entendo! Faz sentido... — o menino responde, esperando o pai, que, divertindo-se com isso, continua calado. — Então?
Deixando escapar uma risada alta e alegre, Anselmo lhe aperta as bochechas antes de acabar o que quer dizer.
— Você não acha que seria uma boa ideia espalharmos algumas delas pela casa para quando a irmã Judith chegar? — diz finalmente.
— Sim! — responde maravilhado. — O senhor quer que eu pegue algumas, não é?
— Você pode? — pergunta o pai, que há muito nota o olhar cabisbaixo do filho quando ele repara em seus sacrifícios. — Aqui a tesoura. Cuidado para não se cortar.
— Certo! Eu já volto! — grita Lázaro, que, após apanhar a tesoura, já sai correndo pela porta da igreja.
Lázaro desce as escadas e atravessa a grama a passos largos. A imagem de sua casa repleta de flores vermelhas simplesmente não sai de sua cabeça; assim como também já pensa em contar para a irmã Judith sobre o porquê de ela se chamar flor de Natal.
— Será que ela já sabe? — ele se pergunta, ansioso.
O menino finalmente chega até onde viu as flores, mas então estaca, já que não há nenhuma ali. Lázaro olha confuso para os lados, e fitando por entre as árvores, se pergunta se não deve haver mais delas dentro da mata. Ele olha para trás em busca de seu pai, pois sabe que não pode entrar ali. A vontade de retribuir o amor do pai e o desejo de surpreender irmã Judith continua forte, e com tais sentimentos o motivando, dá o primeiro passo mata adentro.
Lázaro avança desviando dos espinhos e tentando se manter em linha reta para não se perder. Ele olha para trás de instante em instante, pois enxergar a igreja ao longe o reconforta. Mas então o tempo se passa e logo se sente frustrado por não encontrar flor alguma.
Com receio de que o pai saia para procurá-lo, ele se volta frustrado para trás. E então percebe que, inerte em meio à vegetação difusa, uma sombra com flores de Natal em mãos o observa. O menino se torna estático diante do horror que avança em sua direção, e impossibilitado de mover um músculo sequer, é abraçado pelo estranho.
*
Irmã Judith se aproxima da igreja nesta noite, e orgulhosa, tendo em mãos uma cesta repleta de guloseimas, sobe as escadas esperando ver Lázaro correr em sua direção, como ele sempre faz ao receber sua visita. Mas que estranho. A porta está entreaberta e os entalhes de madeira com o versículo de Jó estão caídos ao chão. Irmã Judith chama por padre Anselmo durante alguns minutos, e sem receber resposta, escancara a porta.
Ao entrar no corredor que reluz sob as luzes coloridas do pisca-pisca, seu grito irrompe o silêncio da velha igreja, pois ali, com os braços abertos sobre o assoalho frio, padre Anselmo tem seu sangue adornado por poinsétias frescas. O menino, repleto de cicatrizes abertas por todo o corpo, olha para o padre, sangue quente ainda pingando de suas mãos, como se olhasse para uma folha seca. Virando-se para a freira, aponta para o chão, onde a placa com as sagradas escrituras jaz partida. “Tu chegarás até este ponto e daqui não passará.”
Lázaro passa por Judith e, correndo em direção às profundezas escuras da mata, junta-se à amálgama de vozes cortantes e aterradoras, gritando em línguas que ela não entende.
Nunca desafie um demônio.
Conto escrito por
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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